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Viver em completa harmonia

Pensei em escrever um texto sobre o silêncio. Sempre chega uma hora em que falar cansa. Porque já existe ruído demais, muita gente falando ao mesmo tempo. Mas aí seria um texto demasiado curto.

Escrever, então, um texto sem razões. Todos defendem suas razões, que diferença pode fazer mais uma gritada em público? Tantas pessoas se agredindo por suas verdades. Cansado disso também.

Nestas horas de desencanto, sinto que eu poderia me transformar em Leonard Zelig, o protagonista do filme homônimo de Woody Allen, lançado nos cinemas em 1983. É um “falso documentário” que conta a história de Zelig, um homem desajustado que, na década de 1920, desenvolve um mecanismo para se proteger da solidão: ele consegue absorver totalmente a personalidade, a identidade e até a aparência das pessoas com quem se relaciona.  

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Por exemplo: se estiver ao lado de intelectuais, Zelig se transforma em intelectual e pode falar quantos idiomas a situação exigir. Mas o que mais impressiona é a mutação física: quando Zelig conversa com orientais, seu rosto ganha feições asiáticas; se o interlocutor for negro, em questão de segundos a pele escurece e o cabelo encrespa; se for obeso, sua barriga logo começa a inchar, etc. 

O mimetismo absurdo do “camaleão humano” chama a atenção dos cientistas. Sucedem-se tentativas de descobrir uma causa fisiológica para o distúrbio – todas elas frustradas. O caso, então, vai parar nas mãos de psiquiatras, mas os encontros com o paciente nunca resultam em nada. Assim que se senta em frente aos psiquiatras, Zelig começa a imitá-los e a falar sobre Freud, Jung e as últimas teorias da moda. Ninguém é capaz de fazer um diagnóstico. 

Zelig é, certamente, doente. A fantástica estratégia que desenvolveu para ser aceito e amado lhe custou muito caro: ele não tem personalidade, não tem um “eu”. Acostumou-se a ser apenas o reflexo de quem está ao lado; sozinho, é quase um vegetal. (Tudo teria começado porque, na escola, colegas lhe perguntaram se havia lido Moby Dick e ele mentiu que sim, para não passar vergonha. Desde então, nunca mais parou de fingir e responder o que queriam ouvir.) 

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Zelig é uma comédia, como quase todos os filmes de Woody Allen, mas séria e cheia de críticas que dificilmente vão perder a validade. Afinal, como já disse Erich Fromm, “as pessoas temem mais ser rejeitadas do que morrer”. Parar de dar murro em ponta de faca, aparar as arestas que ferem e se fundir em um “todo mundo” sempre harmonioso. Isso parece um alívio?

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