O volante flamenguista Gerson alega ter ouvido do meia Ramírez, do Bahia, a frase “Cala a boca, negro” em um jogo do Campeonato Brasileiro em 20 de dezembro. A reclamação gerou um boletim de ocorrência na Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância; o colombiano nega a acusação.
Na mesma semana, após um torneio infantil em Caldas Novas (GO), Luiz Eduardo Bertoldo Santiago, de 11 anos, chorou depois de ter ouvido a frase “fecha o preto aí” em uma partida. Ele relatou o drama para os pais. Para especialistas e atletas, Gerson e Luiz Eduardo exemplificam um avanço na postura das vítimas de injúria racial no País: eles quebraram o silêncio, uma conquista da luta antirracista.
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“Em 2020, tivemos alguns avanços em função da maior manifestação dos atletas. Estamos conseguindo romper aquele silenciamento que era imposto aos atletas para que não falem sobre racismo ou discriminação. Além disso, eles estão falando do racismo na sociedade. Esse é um passo muito importante”, afirma Marcelo Carvalho, diretor do Observatório da Discriminação Racial, entidade que pesquisa e discute.
O zagueiro Paulão, capitão do Fortaleza, concorda. “As pessoas tiveram um pouco mais de coragem de falar sobre o assunto. Com isso, o assunto ficou mais vivo e tivemos alguns debates importantes”, diz o zagueiro de 34 anos. “Não dá para dizer que houve uma mudança significativa. Essas conversas aconteceram, mas a gente não vê a mudança de fato que é a lei. Para saber se esse debate realmente significa um avanço é preciso atitude. Não basta só a conversa”, completa.
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O silêncio ainda não foi totalmente quebrado. O Estadão tentou entrevistar sete atletas da Série A do Brasileiro. Paulão foi o único que topou. Um deles afirmou, por meio da assessoria de imprensa, que não se sentia à vontade para falar sobre o tema. Outro disse que queria deixar a “poeira abaixar”, numa referência à polêmica causada pela denúncia de Gerson. “Hoje, graças a Deus, eu tenho, como jogador de futebol, voz ativa para falar e dar força para que outras pessoas que sofrem racismo ou outros tipos de preconceito possam falar também”, disse o flamenguista nas redes sociais.
É preciso ser justo: alguns atletas se pronunciaram em outros momentos. Tchê Tchê, do São Paulo, foi além e compareceu a uma manifestação contra o racismo na capital paulista em junho. Engajado nas causas sociais, o volante tem duas tatuagens de símbolos históricos que lutaram contra o racismo: Malcolm X e Martin Luther King.
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“Hoje, temos o privilégio de ser uma voz no nosso país e ser alguém que as pessoas se espelham. Essas tatuagens eu fiz quando estava na Ucrânia. Se não me engano, depois de alguma situação que acabei sofrendo lá”, contou o são-paulino.
O esporte mundial viveu momentos importantes na luta antirracista em 2020. O último deles foi protagonizado por Neymar. O episódio aconteceu no jogo entre Paris Saint-Germain e Instanbul Basaksehir pela Liga dos Campeões no dia 8 de dezembro “Vai embora, preto” foi a frase que o camaronês Pierre Webó, integrante da comissão técnica turca, ouviu do quatro árbitro romeno Sebastian Coltescu.
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Após a reclamação, o árbitro principal mostrou cartão vermelho para o camaronês. O jogador Demba Ba, também do time turco, pediu que seus companheiros deixassem o campo. Liderados por Neymar e Mbappé, os rivais do PSG fizeram o mesmo. A partida parou no primeiro tempo e só continuou no dia seguinte.
O episódio em Paris marcou o dia em que atletas brancos e negros, de times diferentes, se uniram. Vale lembrar que o próprio Neymar acusou o zagueiro espanhol Álvaro González, do Olympique de Marselha, de racismo por tê-lo chamado de “macaco”, em partida entre as duas equipes pela terceira rodada do Campeonato Francês. O brasileiro reagiu dando um tapa na cabeça do rival e foi expulso.
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O episódio de união foi um ato simbólico que se somou a tantos outros contra a desigualdade racial. Indignados com o assassinato de George Floyd por um policial em Minnesota nos Estados Unidos, em maio, atletas como LeBron James, Lewis Hamilton e Naomi Osaka, entre outros, se uniram à revolta do país inteiro. Foram semanas de protestos. Em agosto, jogadores da NBA boicotaram uma das rodadas da liga. A decisão foi tomada como manifestação contra mais um ato de violência policial nos Estados Unidos: os tiros dados pelas costas em Jacob Blake, um homem negro de 29 anos.
O Brasil também registrou protestos, principalmente fora dos campos e das quadras. Mas o País ainda não registrou um ato como aquele de Paris. E não faltaram oportunidades, pois os casos de injúria racial continuam a acontecer. De 2014 a 2019, houve um aumento de 235% no número de casos de preconceito envolvendo jogadores de futebol brasileiros no país, segundo relatório do Observatório da Discriminação Racial.
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Depois de quebrar o silêncio, o próximo passo é apontar as razões estruturais do racismo, na opinião de Marcelo Carvalho. “Ainda precisamos avançar muito. A fala dos atletas precisa se voltar para a estrutura. Quem manda no futebol precisa agir aqui no Brasil”, avalia.
Neste contexto, a Frente Nacional Antirracista se reuniu com a CBF em dezembro para apresentar programas de combate ao racismo. Foram debatidas ideias de ações como campanhas publicitárias e ações afirmativas para a inclusão de negros no mercado de trabalho do futebol e projetos de formação antirracista.
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Para o cientista social Marcel Tonini, federações e clubes têm de reconhecer o problema social, o racismo em si, criando espaços para manifestações de jogadores, treinadores, árbitros ou funcionários, com autonomia e independência para desenvolver ações antirracistas. A partir daí, ele sugere a capacitação de ex-atletas negros para cargos em comissões técnicas e de gestão esportiva, além da adoção de políticas de cotas raciais.
“Para além disso, sugeriria que uma entidade independente representasse negros na denúncia e na cobrança pública por mudanças no esporte de modo que não sofram represálias por parte de clubes, federações e empresas. A ação coletiva tem um peso maior do que ações individuais”, completa o doutor em História Social pela USP.
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