Se ser professor é um desafio em qualquer circunstância, o que dizer quando não se pode contar com uma estrutura física de apoio adequada. Não são raros os casos assim na rede pública, que padece de uma desigualdade crônica em relação à realidade do ensino privado no Brasil. Mas algumas situações se destacam pelo profundo descaso que perpassa gestões, como a da Escola José Mânica, que está prestes a completar uma década desde que o prédio principal teve que ser demolido e que ainda aguarda uma solução digna e definitiva.
Vinícius Finger acompanha de perto a história, amplamente conhecida pela comunidade santa-cruzense, desde que chegou ao Mânica, em 2014. Há um ano e meio, em plena pandemia da Covid-19, assumiu a direção. Segundo ele, a precarização impõe aos profissionais que estão em sala de aula muito mais criatividade, ao passo que exige dos alunos uma dose maior de engajamento. Mas não há o que romantizar: Finger não esconde a frustração por reconhecer que a escola, que não dispõe de laboratórios ou ginásio e sequer de uma biblioteca em condições suficientes, não oferece a qualidade a que os estudantes têm direito.
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Natural de Santa Cruz, Finger, aos 32 anos, diz que a vocação foi descoberta ainda na infância, quando brincava de escolinha com o irmão e primos mais jovens. “A ideia de ser professor foi uma coisa muito natural. Sempre tive isso, apesar dos vários avisos de professores de que é uma profissão ingrata”, conta. Sem professores na família, as referências foram encontradas nas próprias escolas onde estudou, como Guido Herberts, no Bairro Várzea, onde conheceu uma das professoras que mais marcaram a vida dele. “Quando eu cheguei no Ensino Médio, já tinha decidido que ia estudar História. As aulas dela eram excelentes, me cativaram. A culpa é dela”, brincou. Ainda passou pela Escola Ernesto Alves e pela Unisc, onde também fez mestrado em Educação.
Na entrevista à série Assunto de Professor, Finger afirmou que, mais do que ensinar ou inspirar, a missão de professor envolve ter cuidado com os estudantes e saber aprender com eles.
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Entrevista – Vinícius Finger, professor e diretor
- O que te encanta na atividade de professor?
A melhor parte é dar aula. Interagir com os alunos, a energia que os alunos nos passam, o aprendizado que temos com eles. Saber que o conhecimento é transmitido de geração para geração e fazer parte desse processo é uma sensação de contribuir com a sociedade. A gente realmente sente a importância do que está fazendo. A segurança, a saúde e a educação são as bases de uma sociedade. E se a segurança protege e a saúde salva vidas, a educação forma vidas. Em alguns momentos, percebemos o exato momento em que conseguimos ajudar um aluno a encontrar o seu caminho na vida. E com o tempo, vamos encontrando ex-alunos e vemos isso. Às vezes ouvimos relatos do tipo: “eu não sabia o que ia fazer e aquela sua fala marcou muito”. Isso é a melhor coisa que tem.
- E o que é o mais difícil?
Principalmente na rede pública, é conviver com a precarização do ensino e de nossa carreira, no sentido de termos formação para poder fazer mais e não conseguirmos por falta de estrutura e de ter vontade de estudar mais e não ter incentivo para isso. A grande maioria dos professores buscam ou desejam mais formação e não conseguem por falta de motivação ou capacidade econômica. E aqui na nossa escola, a estrutura física é o grande desafio: lidar com uma escola que está precarizada e improvisada.
- O que essa falta de estrutura impõe sobre os professores?
Muito se fala de práticas pedagógicas integradoras, transversais, tirar um pouco o aluno da sala de aula. Na nossa escola, se tirarmos o aluno da sala de aula, vamos levar para onde? Não temos laboratório científico por causa da falta de prédio. Como organizar uma aula de Química, Biologia ou Física, sem o aluno entrar em um laboratório durante os três anos do Ensino Médio? Ele não vai ver nenhum instrumento de medição, um microscópio, sequer uma mesa adaptada para isso. Como treinar corretamente um time de futebol para o Jergs (Jogos Escolares do Rio Grande do Sul) sem um ginásio? Como fazer um grupo de música se não temos espaço para isso? Como fazer um projeto de leitura se não temos um espaço correto para biblioteca e nem bibliotecário? Então, o professor que lida com uma escola precarizada tem que compensar na organização e planejamento das aulas. E contar com a ajuda dos alunos, que também precisam se esforçar e engajar mais para conseguir uma aula melhor. Por isso investimos muito na relação humana. Dependemos muito mais dos alunos e dos pais para ofertar uma escola de qualidade, já que não podemos contar com uma estrutura.
- Muita gente não tem ideia do quanto, em casos como o do Mânica, a mobilização de toda a comunidade escolar faz a diferença.
Uma escola que consegue funcionar há quase uma década sem o prédio principal, só não fecha porque a comunidade não deixa. O conselho escolar, o CPM, o Grêmio Estudantil. Temos pais que se dispõem a fazer serviços na escola, de reparos e melhorias. O CPM faz campanhas de arrecadação quando a verba não dá conta. Temos alunos que se engajam também. É esse histórico de manifestações e de busca de apoio na comunidade que mantém a escola funcionando. A comunidade precisa dessa escola, reconhece essa escola como necessária, é a única escola do Bairro Esmeralda, atende outros bairros ao redor, e é uma das únicas da zona sul, que é a região mais populosa da cidade. E temos apoio não só das famílias, mas também de vizinhos e comerciários da região, que continuamente se dispõem a ajudar, até porque a situação da escola é bem conhecida na cidade toda. Não há nenhuma voz do município que acha que a escola não é importante, pelo contrário.
- Em uma década, passamos por vários governos, o Estado foi administrado por vários partidos e os avanços foram poucos. É possível ter esperança?
Esperança nunca deixamos de ter. Nunca deixamos de lutar por nossa escola. Buscar esse prédio sempre esteve na nossa cabeça. Mas o sentimento que temos é de desconfiança. Foram vários governos e todos fizeram promessas de ação, mas nenhuma delas se cumpriu. O projeto que temos agora ainda é teórico, e a comunidade só vai estar satisfeita quando esse prédio estiver pronto, não apenas começado, porque vemos em outras escolas construções que são iniciadas mas não terminadas. Temos uma ideia muito realista de que não basta só promessas, mas ações. E infelizmente tivemos muito mais promessas do que ações. O que respeitamos são ações, promessas e justificativas não são suficiente.
- Falamos sobre o quanto a falta de estrutura exige dos professores. E nos estudantes, como o senhor acha que isso repercute?
É uma realidade muito triste de ter a educação deles colocada em risco, serem tratados como se tivessem menos direitos como cidadãos. Eles têm direito a uma escola de qualidade, como qualquer outro jovem. E mesmo se compararmos com a rede estadual da região, temos escolas com uma qualidade muito maior do que a nossa, que têm capacidade de ofertar ginásio e salas boas. No Brasil todo, temos um problema de desigualdade de oportunidade entre quem está na escola pública e quem está na escola privada. O Mânica sofre essa desigualdade em relação à própria rede estadual à qual pertence. Para um aluno, tem um impacto entrar em uma sala de aula com rachaduras ou ter que ir treinar no ginásio da comunidade que foi emprestado, porque não podem treinar na escola. Então, nossos alunos enfrentam uma realidade de abandono muito grande por parte da mantenedora. É uma tristeza ver uma escola que poderia ofertar muito mais e não consegue. Alunos que, em sua grande maioria, são filhos de trabalhadores e, no caso dos alunos do Ensino Médio, também são trabalhadores. É uma escola de periferia, no Distrito Industrial, que atua para trabalhadores e filhos de trabalhadores. Então, vemos também uma distinção social, do porquê a verba não consegue chegar e o processo não consegue se movimentar da forma como deveria.
- Qual é a principal característica de um bom professor, na tua avaliação?
Um bom professor tem que ter uma grande sensibilidade. Entender que, diante dele, tem uma pessoa. Uma pessoa jovem, mas complexa, com um histórico, com sentimentos próprios, que traz para a sala de aula a sua vivência e identidade. Um professor tem que ser uma pessoa que, imbuída de conhecimento e formação, também consiga constituir uma relação de respeito à diversidade e se permitir não só a autoridade de organizar uma sala de aula mas também a humildade de aprender com os alunos.
- O senhor falou sobre transmitir conhecimento entre gerações. Como é lidar com uma geração tão conectada?
Escutamos muito os pais e é interessante observar que houve uma grande mudança na forma como as crianças estão sendo educadas. Décadas atrás, as crianças encontravam na escola o primeiro acesso digital, se aprendia a mexer em um computador na aula de informática, principalmente em escolas de periferia, onde as famílias não tinham acesso em casa. Hoje, o aluno já vem com um conhecimento, um domínio da linguagem da internet, já tem um smartphone ou ao menos computador em casa. Em alguns casos existe, na nossa avaliação, até uma vida digital excessiva, o aluno fica no celular ou videogame até nos momentos de lazer, vemos muitos alunos que não brincam mais no bairro, não andam de bicicleta, não sobem em árvore. A escola tem que se adaptar a esse tipo de aluno. Uma grande proposta que temos na nossa escola é trazer para os alunos uma vivência comunitária. É a escola como um lugar para se integrar. Vivemos uma sociedade cada vez mais individualista e na pandemia sentimos muito isso, de alunos que ficaram dois anos sozinhos em casa, sem amigos. A aula digital, o EAD, é uma ação solitária. Por isso, esse ano nossa abordagem foi de tentar criar dinâmicas para integrar os alunos em sala de aula e os alunos e os pais com a escola. Penso que é uma avaliação da grande maioria das direções de que há necessidade de retomar a escola como um centro comunitário, como parte integrante da vivência do bairro e da comunidade onde está inserida, seja por eventos ou práticas pedagógicas que estimulam o trabalho em grupo e valores como cidadania, já que estivemos dois anos presos a uma dinâmica individual e digitalizada. Aprender no mundo digital também é não abrir mão de valores de vivência humana e comunitária. Temos que preparar os alunos para viver em uma economia 4.0, mas sabendo gerir sua inteligência emocional e relacional e gerir a si mesmo dentro de uma comunidade. Esse é um ano de reapresentar a escola aos alunos.
- O que foi mais difícil na fase mais aguda da pandemia?
Foi o distanciamento. Não conhecer o nosso aluno corretamente. Parte do ensino e da avaliação se dá por um conhecimento do professor sobre o aluno. Quanto mais o professor conhece o aluno, o seu jeito, sua história, mais consegue avaliar se houve um crescimento. Não avaliamos com uma regra fria todos os alunos. Fazemos uma avaliação humana de entender quem é esse aluno, de onde ele veio e o quanto ele cresceu. O distanciamento impedia esse olhar. Ficamos muito dependentes dos trabalhos entregues e, realmente, houve um déficit de avaliação. A grande lição da pandemia foi que o EAD jamais supera o presencial. A escola não lida só com conteúdo e formação, mas também com o crescimento da pessoa na comunidade, um crescimento político e emocional, por isso precisa ser presencial. Na verdade, quanto mais tempo o aluno passar na escola, melhor.
- O Congresso discute hoje a regulamentação do homeschooling e fala-se muito que o ensino remoto ou híbrido vai se popularizar após a pandemia. O senhor não acredita nesses modelos?
O homeschooling é uma anormalidade política e pedagógica. É contrário a tudo o que se pesquisa na área de educação contemporânea de alto nível. Considerando, entre outros dados, que, principalmente na primeira infância, a maioria dos casos de abuso e negligência provêm da família, a escola tem um papel importante. Quer dizer, todos os dias a criança vai encontrar profissionais com formação, que vão avaliar se ela está bem cuidada, bem alimentada, se ela tem hematomas. A escola tem um papel social de proteção da criança que nenhuma outra instituição faz. O Conselho Tutelar não consegue dar conta de observar as condições de saúde e psicológicas de todas as crianças de um município. Quem faz isso é a escola, é o professor que está em sala de aula e observa se há um aluno vindo sem uma roupa adequada para o frio em pleno inverno ou se está com fome. Isso é insubstituível. E o meu medo com o homeschooling é abandonarmos uma padronização de ensino e de cuidado com a criança e ficarmos dependentes de pessoas sem formação para isso. Outro ponto é que um aluno do Ensino Médio, que tem 12 disciplinas, vai ter contato na escola com 12 professores diferentes, formados em diferentes áreas, às vezes com pós-graduação ou mais. Por mais que um pai ou uma mãe tenha uma grande formação em uma área específica, jamais vai substituir 12 profissionais. E também na parte social: é natural do ser humano e parte importante do crescimento ter amigos, conviver com pessoas da sua idade, se engajar politicamente no Grêmio Estudantil, conhecer pessoas, viver socialmente. O homeschooling tira da criança o seu primeiro espaço de socialização, que é a escola.
- E como é lidar com a estigmatização, infelizmente difundida por alguns setores da sociedade, de que a escola é um ambiente de doutrinação ideológica?
Essa radicalização, no meu entender, vem de cima para baixo. Não é um movimento orgânico da população. Isso é disseminado por esses novos meios de comunicação e, como não há regulamentação, alguns grupos com dinheiro e com determinado projeto político se aproveitam desse excesso de liberdade para popularizar informações equivocadas. Em nenhum momento, isso se revelou como um movimento orgânico que vinha dos pais. Quando alguns pais apareciam na escola para fazer ponderações, se utilizavam de dados tirados da internet, de uma mensagem do WhatsApp ou de uma postagem do Facebook. Mas nunca tivemos um caso de um pai que pôde reclamar de algo real que o seu filho experienciou. Há alguns anos, tivemos aquela fake news do kit gay. Era algo que nunca chegou em escola alguma, foi algo trazido da internet e alguns pais que levaram a sério não encontraram materialidade alguma. É uma coisa produzida e que encontramos vozes que reproduzem, mas que no dia a dia não se sustenta.
- Já perguntei qual a característica de um bom professor. E de um bom gestor escolar?
Um bom gestor de escola pública tem que ter muita coragem de defender sua comunidade e seus alunos. É muito comum ficarmos presos a conversas e debates que beneficiam agentes políticos ou institucionais e não pensarmos na importância dos alunos. Durante a pandemia, quem mais sofreu foram os estudantes. Quem mais sofre com a falta de um prédio aqui na escola são os estudantes. O diretor tem que ter esse comprometimento e ter coragem de continuar lutando, mesmo enfrentando às vezes até a falta de interesse de investir na escola.
- Como o senhor gostaria de ser lembrado enquanto professor?
Como alguém que conseguiu se preocupar com os alunos. Como um professor que, quando via um aluno com problemas e precisando de ajuda, não ignorava esse aluno. Pensamos muito no professor inspirador, mas não sei se necessariamente um professor precisa inspirar um aluno. A inspiração vem de todos os lados. Às vezes os pais inspiram, às vezes uma celebridade inspira. Mas a questão é o cuidado. O professor precisa cuidar dos alunos, ver se estão bem, se precisam de algo e se prontificar para ajudar. Se eu quiser ser lembrado por alguém, eu gostaria de ser lembrado como alguém que cuidou dos seus alunos.
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