Após mais de cem dias após a enchente que assolou o Rio Grande do Sul, os danos causados não só permanecem na memória, mas transformaram a realidade de inúmeras famílias. Os moradores de Vila Mariante, no interior de Venâncio Aires, por exemplo, tentam recomeçar em meio aos destroços e às marcas deixadas pela cheia do Rio Taquari que ocorreu em maio, mas também em setembro e novembro do ano passado.
Após os episódios climáticos, os moradores foram ajudados de muitas formas, mas a situação ainda é preocupante. Antes mesmo de chegar à região mais povoada de Mariante, o cenário é dramático. O asfalto que cedeu na RSC-287 e as árvores caídas ao longo de boa parte da margem da rodovia demonstram a fúria das águas que inundaram a área.
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Logo na entrada da localidade, a condição é ainda pior. Além do asfalto danificado em quase toda a extensão da rua principal de Mariante, quem passa pelo local vê casas parcialmente ou completamente destruídas, sujeira e muitos itens perdidos. Há também casas abandonadas que expõem os sinais deixados pela cheia, como as marcas nas paredes onde a água barrenta alcançou. Apesar da situação desanimadora, alguns moradores retornaram para seus lares e empreendimentos, buscando se reerguer após a catástrofe.
Ao andar por Mariante, ainda é possível ver que o movimento de moradores que realizam limpeza e reforma de imóveis é constante. Na tarde de terça-feira, o aposentado Vanderlei Luis Schuck, de 59 anos, vistoriava a reforma do prédio pela qual é responsável. Com o volume de água que invadiu a localidade, o espaço teve avarias e a varanda foi derrubada.
O local abrigava o Restaurante Souza, que teve seu funcionamento prejudicado em razão da cheia, mas reabrirá nos próximos dias. Segundo ele, a água adentrou apenas na parte inferior do prédio, não alcançando o segundo andar. Ainda conforme seu relato, pessoas próximas tiveram prejuízos maiores. É o caso do irmão dele, que perdeu um galpão que teve mais de R$ 700 mil de investimentos.
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A perda foi ainda mais severa para o aposentado, que teve sua casa levada pela enchente de maio. Vanderlei morava há cinco anos no local e disse nunca ter visto nada parecido. Ele já havia passado por outras cheias, como a de setembro e novembro do ano passado, mas considera o evento climático deste ano como algo atípico. “Foi um dilúvio, subiu pelo menos 35 metros. Dentro da minha casa chegou a três”, relembra.
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Por não haver possibilidade de reconstrução no local, proibido através da Lei Complementar 128/2018, Vanderlei optou por residir em Venâncio Aires, onde possui outra propriedade. Agora restam as incertezas sobre como será o futuro. “Muitos não querem voltar por medo, outros possuem raízes e não querem abandonar seus empreendimentos”, conta.
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O aposentado também lembra que os moradores aguardam pelos recursos prometidos pelo governo federal, que até agora não alcançaram todas as famílias. “A prefeitura está ajudando como pode e dessa maneira vamos seguindo. Mariante não deixará de ser Mariante.”
Ainda que Mariante tenha reduzido o número de moradores devido à situação, alguns retornaram, mesmo temerosos, para seus empreendimentos. A proprietária da Agropecuária Paraíso, Leonize Garcia da Rosa, vive o seu recomeço após a enchente de abril. Aos 51 anos, nunca viveu algo parecido antes. “Em maio, levantamos as mercadorias da loja e saímos. Achamos que se a água entrasse, seria pouco. Mas, acabou passando do forro, o estrago foi grande.”
Na enchente de setembro, a água chegou a 70 centímetros dentro da loja de Leonize, trazendo prejuízos materiais. 60 dias depois, o parâmetro foi parecido, mas as perdas foram menores. “Algumas coisas carregamos e levamos para casa, outras levantamos e conseguimos manter mais ou menos o que tínhamos na época”, relembra. Na cheia deste ano, todas as mercadorias foram afetadas, mas foi possível recuperar alguns itens como ferramentas e outros utensílios.
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A comerciante diz que o recomeço está sendo difícil. Segundo ela, o movimento baixou bruscamente após o ocorrido. “Hoje contamos com 20% dos clientes que tínhamos antes da enchente. A esperança é de que vamos recuperar aos poucos”, comenta. Ela também teve sua casa, onde morava com o marido, atingida pela cheia do Rio Taquari.
Na época, o casal estava realizando a construção de uma moradia às margens da RSC-287, próximo a Mariante, e moravam em um galpão improvisado atrás da obra. No entanto, precisaram se abrigar na casa da filha, em Venâncio Aires, quando ocorreu a inundação. Leonize e o marido continuam com ela e aguardam a conclusão da obra para se mudarem para a casa. A moradora acredita que a situação deve melhorar nos próximos meses. “Graças a Deus estamos bem e com saúde. Dificuldade teremos, mas torcendo para que possamos caminhar.”
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Ainda mais triste do que passar por uma enchente, é ver a vida sendo levada pelas águas três vezes. Este foi o caso de Daniela Guedes, de 36 anos. Em setembro de 2023, Daniela morava com os pais, Marlene Aires Guedes, 72, e Juarez Antônio Guedes, 78, em uma casa em Mariante que ficava próximo à beira do rio. Naquela primeira inundação, o imóvel foi levado pela força das águas.
Após o ocorrido, a família buscou abrigo na casa do tio, que morava a poucos metros. No local, eles superaram a enchente de novembro. Com a ajuda de amigos e conhecidos, adquiriram uma casa e se instalaram lá três meses antes da enchente de maio. A residência acabou ficando submersa pela água, o que obrigou a família a buscar abrigo em Venâncio Aires, onde ficaram instalados na casa de outro familiar durante três meses.
Há pouco mais de uma semana, a família retornou a Mariante e está residindo temporariamente na casa de uma amiga de Daniela enquanto realizam a limpeza e a reforma da residência. A cuidadora de crianças lembra das dificuldades enfrentadas pela família no intervalo de nove meses entre as três cheias. O que resta para a família é a esperança de dias melhores. “Nós perdemos tudo dentro de casa, mas conseguimos algumas coisas através de ajuda. É bem difícil esse recomeço, mas é o que a gente tem”, declara.
Um dos cenários mais impressionantes é do que restou da Escola Estadual de Ensino Médio Mariante, que teve seu prédio invadido pela enchente. A estrutura resistiu a cheia, mas os mobiliários e equipamentos da instituição foram completamente destruídos, impossibilitando o retorno dos estudantes até que seja realizada uma reconstrução.
Em contato com a reportagem da Gazeta do Sul, o coordenador da 6ª Coordenadoria Regional de Educação, Luiz Ricardo Pinho de Moura, informou que cerca de 90 alunos da escola estão tendo aulas na Escola Estadual de Ensino Médio Adelina Isabela Konzen, em Estância Velha. “Outros foram para escolas da rede estadual de Venâncio Aires, uns até para a rede municipal. Há também alunos em outros municípios de abrangência da 6ª CRE”, afirma.
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Ainda conforme Moura, não há previsão para o início da reforma do prédio que abrigava as atividades da escola. “Se trabalha dentro de um planejamento sobre como se dará o gerenciamento das novas obras”, explica o coordenador.
Em razão dos eventos climáticos que atingiram em torno de 23.647 pessoas e 5.900 famílias, foi declarado Estado de Calamidade Pública através do Decreto Municipal 10.149, de 2 de maio de 2024. Para recuperação de diversos âmbitos, o município contou com uma receita de R$ 17.775.911,43. Destinando recursos para inúmeros setores, como segurança pública, habitação, saúde e outros, o governo teve despesa de R$ 16.401.315,61. Os números são da tarde de sexta-feira.
O município aguarda ainda R$ 27 milhões para recuperação de 21 pontes e demais recursos que serão utilizados para construção de UBS em Linha Estância, construção de 255 unidades habitacionais que estão em análise pelo Governo Federal e pagamento do auxílio reconstrução. Mais detalhes sobre as receitas e despesas relacionadas à enchente podem ser conferidos no site venancioaires.rs.gov.br, na aba Transparência.
Conforme informações da Prefeitura de Venâncio Aires, a enchente de setembro de 2023 afetou as áreas de abrangência do Rio Taquari, sendo o 2º e 9º distritos, enquanto a calamidade deste ano atingiu também o Arroio Castelhano, com consequências em demais áreas.
As localidades mais afetadas pela cheia de maio foram as dos distritos, região serrana – onde ocorreram deslizamentos de terra – além dos bairros União, Centro, Morsch, Brígida, São Francisco Xavier, Santa Tecla, Diettrich e Battisti. Segundo a administração municipal, o evento climático deste ano foi o que mais afetou o município.
Para recuperação das áreas afetadas, o município ofereceu apoio humanitário imediato através de resgates, atendimentos e abrigo. Os trabalhos de limpeza ocorreram em seguida com a desobstrução de estradas e vias interditadas, reparos em pontes, vias secundárias para garantir locomoção e transporte escolar. Além disso, foram reforçadas equipes de saúde nas localidades afetadas e realizadas campanhas de doação.
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O município também abrigou quase 400 pessoas que foram distribuídas em três abrigos. O último em vigência foi desativado no fim de junho. Após mais de cem dias da enchente, o trabalho de recuperação se concentra atualmente no rescaldo de entulhos que ainda estão sendo retirados em alguns pontos. Também estão sendo elaborados processos para encaminhamentos de projetos habitacionais.
Segundo a administração municipal, pelo menos 302 famílias estão em aluguel social, sendo a maioria dos requerentes moradores da região de Vila Mariante. Os moradores poderão contar ainda com novas casas que serão construídas na região do antigo Instituto Penal de Mariante, no distrito de Estância Nova. Serão 72 unidades entregues às famílias. A previsão é de que até o final do ano as moradias sejam entregues pelo Governo Estadual, que vai custear a construção.
Além disso, uma empresa credenciada fará a apresentação de um projeto na Caixa Econômica Federal, para a construção de 30 casas aos atingidos pelas calamidades de setembro. A expectativa é de que as obras iniciem ainda neste segundo semestre. Os imóveis serão construídos nos bairros Brands e Battisti.
Com a enchente de maio, a Secretaria de Meio Ambiente de Venâncio Aires realizou o resgate de centenas de animais perdidos ou abandonados. No momento, o município conta com um abrigo em funcionamento, onde estão sendo albergados os animais resgatados em abril, maio e junho. Mais de 200 animais passaram pelo local, entre adultos e filhotes. Alguns retornaram para seus lares e outros foram adotados. Atualmente, o abrigo, localizado no Parque Municipal do Chimarrão, conta com 25 cães.
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