Mais de três anos se passaram desde que, em dezembro de 2019, poucos dias antes do Natal, o escritor e professor santa-cruzense Flávio René Kothe promoveu o lançamento de volumes de sua autoria em sua terra de origem. Naquela ocasião, em evento na Iluminura, apresentara quatro títulos de sua produção recente, todos pela editora paulista Cajuína, que, desde então, edita e reedita suas obras, algumas já clássicas no universo da teoria e da crítica literária. Kothe apresentara novo volume de poesia, Sem deuses mais; outro de contos, Segredos da concha; e dois de ensaio ou teoria, Literatura e sistemas semióticos e Fundamentos da teoria literária.

Concluída a visita de final de ano a Santa Cruz, mal havia retornado a Brasília, onde reside e atua junto à Universidade de Brasília (UnB), e o país (a exemplo do mundo todo) fora surpreendido pelo recrudescimento da pandemia de Covid-19, que, como bem sabemos, motivou um crescente e prolongado distanciamento social. Assim, cumprindo o isolamento orientado pelos organismos da área da saúde, e ainda dedicando-se às atividades da docência e, em paralelo, à produção de sua obra literária, ficou por uma longa temporada sem vir a sua cidade natal.

Agora, finalmente fez essa viagem, na ânsia de rever a sua mãe, dona Edith Ritter Kothe, que está com 95 anos, além de outros familiares e amigos. E, o que já se tornou uma tradição sua, trouxe na bagagem mais uma obra, que leva a sua própria bibliografia além das três dezenas de títulos. Um novo livro de contos, Rio do Sono, acaba de sair pela mesma Cajuína, e enfeixa um sólido e abrangente conjunto de 29 narrativas curtas, algumas até um pouco mais longas.

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Aos 76 anos (nasceu em 20 de novembro de 1946), Flávio é um dos mais respeitados e inspirados intelectuais contemporâneos no Brasil. Junto à UnB, ingressou em 1974, em uma primeira passagem que se estendeu até o final de 1977, quando foi afastado, por 15 anos, pelo regime militar. Então esteve na Europa, onde se aperfeiçoou e lecionou, e teve como interlocutores alguns dos maiores nomes da filosofia, da literatura e de outras ciências humanas.

Retornou à UnB, como anistiado, no final de 1992, e com direito a pedido de desculpas formal do Estado pela perseguição de que fora alvo. Seguiu lecionando, para gerações de alunos de Letras, Filosofia e Estética, até 2022, quando se aposentou. Não deixou, porém, de ensinar: hoje, ainda é pesquisador sênior junto à instituição.

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Um clássico dos estudos literários é reeditado

Além do lançamento de Rio do Sono, seu novo livro de contos, o escritor e professor Flávio Kothe testemunha o esforço de reedição, pela editora Cajuína, de vários de seus títulos referenciais em teoria literária ou estudos críticos nessa área.

Um dos textos que está em meio a editoração, informa, é O cânone colonial, primeiro volume de uma trilogia que se seguiu com O cânone imperial e O cânone republicano. O primeiro foi lançado pela primeira vez em 2003, pela UnB, que editou igualmente os outros dois, mas as tiragens foram se esgotando. Portanto, em meio à passagem dos 20 anos do primeiro da trilogia, Kothe promoveu uma revisão e uma ampliação dele, sendo que, desse modo, um novo O cânone colonial em breve chegará às livrarias.

E, muito provavelmente, deverá motivar uma repercussão não menos intensa do que a da edição original, até pela curiosidade em torno das adequações ou das complementações de reflexão que o autor agora promove.

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Foto: Albus Produtora

No início do século e do milênio, o primeiro volume e a trilogia como um todo tiveram ampla acolhida de crítica e de leitores em geral. Em iniciativa corajosa, Flávio sugeria e promovia uma leitura, ou releitura, a contrapelo, de boa parte do cânone literário consagrado em cada uma dessas épocas, mas apontando, iluminando (ou denunciando) circunstâncias nas quais se evidenciava a rendição dos autores ao status quo político ou de poder.

Premiado justamente pela sua determinação e pelo fôlego em reler e re-iluminar o amplo cânone, quase que aceito de forma unânime nas academias brasileiras, Kothe também teve de lidar, como seria de prever, com desafetos ou críticos junto à academia. Isso em nada o inibiu ou o afastou de seu curso de reflexão ou de raciocínio. Muito pelo contrário. Seguiu se dedicando com empenho a outros esforços editoriais, inclusive como tradutor. É dele, por exemplo, a versão para o português de um clássico da literatura, O perfume, de Patrick Süskind. Na filosofia, na literatura e na filosofia, traduziu nomes de peso, como Walter Benjamin, Theodor Adorno, Nietzsche, Marx, Paul Celan, Kafka, Heinrich Mann e vários outros.

Em paralelo, empenha-se em divulgação cultural e literária e na integração entre pares, da academia e de fora dela. É um engajado e voluntarioso organizador e editor de revistas culturais, como a Revista da Academia de Letras do Brasil, cujo volume 8 também trouxe na bagagem.

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Para semear a sabedoria

Além de seu trabalho junto à academia, enquanto professor e pesquisador, o santa-cruzense Flávio Kothe é um acadêmico também no sentido de integrante de agremiação literária. No seu caso, há 26 anos, desde quando completara seu meio século de vida, é o titular da cadeira de número 36 da Academia de Letras do Brasil (ALB), fundada em 1987, com sede em Brasília, e que é uma espécie de coirmã da já centenária Academia Brasileira de Letras (ABL), criada por empenho do escritor Machado de Assis e sediada no Rio de Janeiro.

rio do sono, de Flávio Kothe. São Paulo: Planeta, 2023. 348 páginas. R$ 70,00.

Junto à ALB, Kothe foi presidente por vários anos, em sucessivas gestões, e liderou uma série de iniciativas artísticas e culturais, entre elas a organização e a edição da Revista da Academia de Letras do Brasil, que em maio de 2022 teve impresso o seu volume 8. Nessa publicação, que circula duas vezes ao ano, os acadêmicos são convidados, instados ou desafiados a contribuírem com um eclético e bem selecionado recorte de suas produções em contos, crônicas, poemas, ensaios, resenhas ou traduções.

Com tal diversidade, a revista torna-se de interesse e com apelo não apenas junto aos pares, aos quais ela funciona como um repositário ou uma publicidade de seus temas de interesse na circunstância, mas para o público em geral. A exemplo da ABL, a ALB dispõe de 40 cadeiras, atualmente todas ocupadas por titular, e nela têm assento importantes nomes da produção literária, intelectual e acadêmica nacional.

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Kothe tem como patrono o poeta e escritor Vinicius de Moraes, e um de seus confrades, um dos que mais recentemente foi integrado à entidade, é o escritor, geólogo e ambientalista José Alberto Wenzel, colunista da Gazeta do Sul. Este foi eleito para ocupar a cadeira 7, cujo patrono é o escritor carioca Lima Barreto.

Natural de Cerro Largo e radicado em Santa Cruz do Sul, município do qual já foi prefeito, Wenzel atua junto à Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam). Ao longo de décadas, produziu obra que se ocupa de promover a reflexão em torno de temáticas ambientais, como o Cinturão Verde e o Lago Dourado de Santa Cruz, bem como publicou romances e ensaios. É essa produção, voltada ao meio ambiente e à sustentabilidade, que ele também leva agora para a ALB, na companhia de Flávio Kothe.

O pesquisador sênior da UnB, vinculado ao Núcleo de Estética, Hermenêutica e Semiótica, lembra que, além da publicação da academia, ele ainda organiza e edita a Revista de Estética e Semiótica, justamente para a universidade. Em sua passagem por Santa Cruz nesta semana, concedeu entrevista à Gazeta do Sul, publicada à direita, e neste sábado participará de reunião da Academia de Letras de Santa Cruz do Sul, na condição de sócio correspondente, e da qual é membro fundador (Wenzel também a integra, bem como à Academia Rio-grandense de Letras).

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ENTREVISTA

Magazine – O senhor acaba de lançar novo livro de contos. Que temáticas ou interesses estão mais salientes nesse novo conjunto de narrativas curtas?

Há muito de Santa Cruz escondido nos subterrâneos deste livro novo, Rio do Sono, escrito nos últimos anos. A pandemia apenas extremou o processo de isolamento a que tem de se submeter quem estuda e escreve. Rio do Sono é o nome de um rio que corre do Jalapão ao Tocantins e é também o nome de um hotel em frente ao palácio do governo em Palmas. Eu me hospedei lá quando fui dar um curso na Universidade. Lá também ficou o meu amigo DJ Oliveira, quando foi instalar dois grandes painéis dele no Palácio dos Girassóis. Ele fez o projeto para um painel destinado ao hotel, mas que nunca foi executado. O não e o não feito fazem parte do real.
Quando adormecemos, imagens do inconsciente nos visitam, chamam a atenção para o caráter simbólico de cenas e coisas que havíamos olvidado. A maior parte disso retorna ao esquecimento, mas algumas memórias se mantêm, são reelaboradas pela fantasia em novas unidades. O escritor precisa aprender a sair de si, deixar-se guiar pelo instinto, estranhar o vivenciado, ver o que poderia ser significativo para outros. Chega o momento em que ele não mais escreve: a obra se inscreve através dele, dita o que quer que seja dito. A obra se obra pelo autor. Isso é necessário para que ela possa se desprender e ter vida própria.
Publiquei nos últimos anos alguns contos no jornal da Associação Nacional de Escritores e na revista da Academia de Letras do Brasil. Leitores que são escritores gostaram, insistiram que eu continuasse. Havia um projeto de fazer um livro de contos. Quando a editora manifestou interesse em concretizar a obra, eu disse que havia mais textos: e o tamanho triplicou. Temas fundamentais do nosso tempo e mesmo da história de Santa Cruz estão presentes lá, mas com uma consciência trágica e cômica distanciada. O importante é que os textos sobrevivam por si, por serem interessantes.

Como é a relação do senhor hoje com Santa Cruz e que impressões têm de sua cidade natal no que tange a relevância no ambiente cultural, artístico e literário?

Eu amo a cidade, ela viverá em mim enquanto eu viver, mas mudou muito. Onde as pessoas moravam, há lojas, comércio, serviços. As pessoas mudaram para fora da cidade. A mim fazem falta os riachos, as matas, os açudes e quero-queros que havia pela cidade. Acho que em torno de 1950 a cidade perdeu a última chance de fazer um plano diretor que preservasse a topografia e a natureza, gerando melhor qualidade de vida aos moradores. Passaram a chamar de progresso o que era, sobretudo, destruição.
Eu sou a favor de preservar e aumentar o Cinturão Verde, não só manter as espécies ameaçadas, mas reintroduzir espécies de animais e plantas que foram aqui extintas. A vida na Terra é um feliz acaso. Nunca iremos alcançar vidas em outros planetas. Estamos em solidão total, por mais que a science fiction e as religiões inventem companhias compensatórias: são fantasiosas, por menos que se queira.
Quando escrevi os cânones, o que me ajudou foi a consciência de que somos uma etnia diferenciada, com uma cultura que tem o seu valor. Não significa esperar que a Alemanha nos queira de volta ou o Brasil nos aceite plenamente. Temos de aprender a sermos o que somos. Pensar é pensar a diferença. Quem apenas repete – esse pensa que pensa, sem pensar.

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