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REPORTAGEM ESPECIAL

VÍDEO: Sem valor para uns, sustento para outros

Todos os dias, às 6 da manhã, Ângela Maria Nunes, de 56 anos, acorda para começar a rotina que ela mantém há mais de 20 anos. Tem a certeza de que somente os dois filhos são donos do primeiro lugar no amor que ela sente. Depois deles, vem o trabalho. Com muito orgulho de ser catadora, Ângela segue para o Bairro Dona Carlota, para um dos pontos de operação da Cooperativa de Catadores e Recicladores de Santa Cruz do Sul (Coomcat). 

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O material de serviço da coordenadora de produção da Coomcat é algo que pode ser inútil para muitas pessoas. Contudo, para ela e para outras dezenas de trabalhadores de Santa Cruz, é fonte de renda e de desenvolvimento. Os resíduos recicláveis são tão importantes que, no início de junho deste ano, a palavra lixo ganhou um novo significado no dicionário Houaiss. Assim, o lixo, que era definido como “objeto sem valor ou utilidade que se joga fora”, passa a significar “qualquer material que ainda não pode ser reciclado, reutilizado ou compostado”. O fato é que, para Ângela e para tantos outros, nunca foi lixo.

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Mudança de vida

Eu não digo lixo, eu digo luxo, porque a gente tira o nosso sustento através do lixo”, enfatiza Ângela. “Nunca foi lixo. É que as pessoas não dão o devido respeito”, complementa. Com essas falas, a coordenadora de produção e articuladora política da Coomcat inicia a conversa com a reportagem da Gazeta do Sul, ocorrida na última terça-feira.

O dia amanheceu marcando dois graus no termômetro em Santa Cruz do Sul, a neblina e a geada acompanhavam Ângela enquanto ela esperava para contar sua história. Aos 56 anos e com saúde e disposição de sobra, ela relembra do início de tudo, há aproximadamente duas décadas. “Eu estava passando bastante necessidade, tinha perdido minha mãe recentemente, com marido alcoólatra e dois filhos para criar. Eu não tinha nada para dar de comer para meus filhos. Foi quando passou uma pessoa abençoada e me ofereceu uma oportunidade de trabalho. Ela disse para mim: amanhã de manhã esteja lá. E eu fui.”

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Naquele momento houve uma grande mudança. “A partir dali, meus filhos não passaram mais fome. Eu comecei a ser catadora.” Além de toda dificuldade que a condição financeira proporcionava a ela, ainda convivia com o marido alcoólatra em uma relação abusiva, sempre com a esperança de que um dia tudo iria ficar bem. O fim da relação veio, ao passo que nenhuma melhora foi percebida. “Felizmente, hoje não estou mais com ele e posso dizer que sou uma mulher empoderada. Criei minha filha, que hoje tem 20 anos, e tenho um filho de 26, que também trabalhou comigo por oito anos e conseguiu ser alguém na vida.”

Foi a Coomcat que, segundo Ângela, proporcionou uma vida melhor ao filho mais velho. “Meu filho hoje tem carteira de carro, de caminhão, tem curso de retroescavadeira, e eu devo tudo isso para a Coomcat. Ele não está mais na cooperativa, mas, se hoje ele é alguém, foi por isso.” A cooperativa foi fundamental também para que Ângela pudesse estudar. Quando criança e adolescente, não teve incentivo aos estudos e foi pelo Núcleo Municipal de Educação de Jovens e Adultos, o Cemeja, que pôde “sair da escuridão”, como ela mesma define. 

A Coomcat tem 13 anos de existência, e Ângela foi uma das fundadoras que perceberam a importância de um movimento que, além de colaborar para o sustento digno de dezenas de famílias, também é parceiro do meio ambiente. “Naquela época era uma associação, mas éramos só uns oito. Começamos a querer ter uma coleta seletiva porta a porta. Naquela época, foi muito difícil porque ganhávamos muito pouco. Foi muito sacrificado, abrindo lixeira por lixeira para tirar cada material reciclável”, recorda. 

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Tudo o que viveu, carregando muito material pesado, faz com que ela lembre bem do passado. “A gente não consegue esquecer de onde veio. Eu sei que é por causa desse trabalho e dessa época que eu sou alguém. Se hoje tenho comida para botar na mesa, foi por esse trabalho.”

Ao visitar a cooperativa e conversar com os recicladores que lá atuam, fica visível e bastante claro o que o trabalho representa para cada um. Há quem conte que conseguiu realizar o sonho do primeiro carro e, agora, não precisa mais levar a filha pequena debaixo de chuva para a escolinha. Há também o caso de quem teve a oportunidade de fazer a carteira de habilitação, como o jovem Luis André de Oliveira, de 19 anos. “Comecei incentivado pelos meus pais, que também trabalham aqui. Lá em casa, as três rendas são da Coomcat”, relata.

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Mulheres que se apoiam

Dos 50 catadores e recicladores da Coomcat, 80% são mães solo que mantêm suas famílias com a reciclagem. O alto índice de mulheres chefes de família faz com que umas apoiem as outras. “Eu preciso empoderar elas para não viverem num casamento abusivo porque nós, mulheres, não podemos sofrer violência. Temos que entender que conseguimos viver uma vida perfeitamente bem sozinhas”, frisa Ângela.

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Uma das colegas motivadas por ela é Jocelaine Machado, de 37 anos, mãe de duas meninas, uma de 18 e outra de 9 anos de idade. “Eu passava muita necessidade com minhas filhas, água e luz sendo cortadas, não conseguia pagar as contas. No momento que eu comecei a trabalhar aqui, consegui dar um pouco mais de auxílio para elas.” 

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Responsável por sustentar sozinha as filhas, o trabalho é de fundamental importância para ela. “Todas auxiliam muito a gente. Como eu venho de relacionamento abusivo, recebi apoio da minha coordenadora, das colegas, e consegui caminhar mais pra frente, foi muito bom.” Assim como para Ângela, para Jocelaine, os resíduos recicláveis são tudo. “É ouro para nós. É de onde tiro meu sustento e consigo dar um pouco mais de estabilidade e conforto para minhas filhas.”

Educação

Em 5 de junho foi celebrado o Dia Mundial do Meio Ambiente e, por isso, a Coomcat realiza, durante este mês, atividades e palestras em várias escolas de Santa Cruz do Sul. A educação ambiental, conforme Ângela, é uma das chaves para um futuro próspero. “Sempre digo para as crianças a importância de fazer a separação para ter um mundinho melhor, porque é assim que elas entendem.”

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As conversas com as crianças são muito positivas. “Elas ficam bem impressionadas, a gente vai às escolas e vemos bastante acolhimento. Aqueles toquinhos perguntando um monte de coisa para a gente. Ali tem a mudança, através deles! São eles que vão fazer diferença para nós.” Ângela acrescenta que é importante que as escolas chamem os trabalhadores da Coomcat para conversarem com os alunos.

Direitos

O procurador-chefe do Ministério Público do Trabalho do Rio Grande do Sul (MPT-RS), Rogério Uzun Fleischmann, explica que os catadores e recicladores que se organizam em regime de cooperativa têm seus direitos previstos na Lei 12.690/2012. “A legislação prevê, entre outros direitos, salário mínimo, limite de jornada, repouso semanal e anual e remuneração pelo trabalho noturno e insalubre.” Conforme o procurador, na prática, muitas vezes esses direitos não são observados. Para garantir a sua efetivação, de acordo com Fleischmann, tanto o Ministério do Trabalho quanto o Ministério Público do Trabalho têm atribuição para fiscalização.

“Onde eles coletam, o percentual de reciclagem é maior”

Para a engenheira ambiental e embaixadora Lixo Zero Santa Cruz do Sul, Débora Leonhardt da Silva, é preciso reconhecer o valor da Coomcat no município. “Vai muito além de atender um requisito legal; é dar voz para aquelas pessoas que realmente fazem. Temos que vangloriá-los, porque eles adotam escolas, realizam ações, são engajados. A gente vê que onde eles coletam, o percentual de reciclagem é maior do que quando tem a empresa que faz a coleta convencional”, salienta. 

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Nas palestras que Débora costuma realizar, ela já comentava a necessidade de mudar o significado da palavra lixo. “No meu entendimento técnico, e de pessoa mesmo, precisava mudar, porque dizer que lixo não tem valor não condiz com a realidade. Pagamos para descartar resíduo perigoso, para descartar resíduos da coleta pública, e alguns a gente consegue monetizar, como é o caso dos recicláveis.” 

A engenheira ambiental explica também que, em alguns lugares, já acontece o “retorno” financeiro para o consumidor que, de certa forma, pagou por embalagens e outros materiais. “Alguns lugares têm plataformas com um ponto onde você entrega seu resíduo. É tipo um cartão de crédito onde colocam saldo na sua conta por resíduo e eles pagam por quilos de material.” Existem programas para coleta de resíduos orgânicos, como no caso do município de Santiago, em que o cidadão recebe um “pila verde”, que pode ser gasto na feira de produtores rurais.

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O Lixo Zero é uma organização sem fins lucrativos, com sede em Florianópolis (SC), e que veio para o Brasil em 2010. “Eu comecei as atividades em 2019. Realizamos ações voluntárias de disseminação do conceito lixo zero, ou seja, fazer com que o maior número de pessoas entendam que precisamos conhecer os resíduos que a gente gera e tentar gerar o mínimo possível a ser enviado para o aterro sanitário, fazer a gestão disso, reciclagem e compostagem.” Neste ano, em Santa Cruz do Sul, a quinta semana do Lixo Zero será realizada em outubro.

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