Jogado tradicionalmente por povos de cultura germânica, o jogo de cartas Schafkopf, também chamado de Schafkopf Bávaro, em função da origem na antiga Baviera e na Francônia, ficou conhecido na segunda metade do século 18 e no começo do século 19. No período anterior ao século 18, havia práticas locais, principalmente no Palatinado (termo usado por muitos estados dentro do Sacro Império Romano-Germânico), então chamadas de Alte Schoofkopp, Bauernstoss, Mucken e Bierkopf, que devem ser reconhecidas como exercícios socioesportivos introdutórios ao Schafkopf, não visto como um esporte, mas como prática social de lazer.
As regras, difíceis de serem compreendidas, são um desafio para que as novas gerações se interessem pela modalidade. No entanto, no interior de Santa Cruz do Sul e em municípios vizinhos, como Sinimbu, grupos ainda mantêm viva a tradição. Recentemente, a modalidade passou a fazer parte das Olimpíadas Rurais da Oktoberfest.
OPINIÃO: Romar Beling: “Para entender melhor o Schafkopf”
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Integrando as celebrações dos 200 anos da imigração alemã no Brasil, em 2024, o Schafkopf também é reconhecido como patrimônio cultural entre todos os imigrantes alemães e seus descendentes. Constitui um importante exercício social de reconhecimento da individualidade humana e da importância do diálogo – principalmente esportivo – para a constituição social e o respeito cultural.
Como esse carteado ganhou o mundo
O jogo de cartas acompanha as migrações humanas. Centralizada na imigração de várias culturas alemãs para o Brasil a partir de 25 de julho de 1824, a primeira colônia estrangeira no Brasil independente foi fundada em São Leopoldo, junto dos vales dos rios Sinos e Caí.
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Para entender melhor o Schafkopf (cabeça de ovelha, em tradução literal), a Gazeta do Sul conversou com o pesquisador e escritor Jorge Luiz da Cunha, que também atua como professor titular na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) desde 1996. Ele explica que é importante conhecer, refletir e entender a história da migração estrangeira no Brasil, que começa com sujeitos de diversas culturas alemãs. “Para entendermos qual a importância das práticas e das consciências sobre todos os aspectos culturais, inclusive o Schafkopf, é preciso entender um pouco da nossa história.”
No Rio Grande do Sul, inicialmente, foram fundadas as colônias de São Leopoldo, Três Forquilhas, São Pedro de Alcântara das Torres e São João Batista das Missões pelo governo imperial, a partir de 1824, sob as mesmas bases do estabelecimento dos colonos suíços em Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, a partir de 1818, com a concessão gratuita de terras, ferramentas e subsídios.
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O pesquisador ressalta que esses fatos deram início à primeira fase da colonização alemã no Estado. “O processo com imigrantes não portugueses foi pautado pela expectativa da supressão do tráfico de pessoas. Os grandes fazendeiros, mais capitalizados, compravam todos os escravizados que podiam, exatamente dos pequenos proprietários produtores de alimentos.”
A migração foi um período com aspectos trágicos e exploratórios. No entanto, diversas tradições foram repassadas para as gerações seguintes, e muitas são valorizadas até hoje. Uma delas é o jogo de cartas, que faz parte das regiões associadas com as culturas alemãs, principalmente os vales dos rios Sinos e Caí, Pardo e Taquari.
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Curiosidade
O maior torneio de Schafkopf foi realizado pela Prefeitura de Tupandi, em parceria com a Emater, em 2015. Na ocasião, estiveram reunidos 189 jogadores. A cidade do Rio Grande do Sul conquistou o título de Maior Torneio de Schafkopf do País. A oficialização do recorde foi feita pela RankBrasil.
O apreciado jogo de cartas e suas regras
As regras do Schafkopf sofreram muitas variações ao longo do tempo. Em Santa Cruz do Sul, normas do século 19 ainda se fazem presentes. Encontramos grupos que disputam as partidas da seguinte maneira: em uma mesa com quatro jogadores são utilizadas 20 cartas do baralho francês (carteado conhecido popularmente), com cartas do nove ao às dos quatro naipes. Cada pessoa recebe cinco cartas.
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A partida inicia-se com o jogador responsável por embaralhar; depois, outro retira a primeira carta de cima do monte e a deixa ao lado. Quem embaralhou divide as cartas entre os participantes e é ele que joga a primeira carta.
Nesse formato, o primeiro jogador pode lançar uma carta qualquer. Os demais, em ordem, devem mostrar uma com o mesmo naipe, se tiverem. A cada carta lançada, os jogadores “batem” na mesa – a ação faz parte da cultura do jogo. A pessoa que apresentar a carta de maior valor vence e joga outra, e assim sucessivamente, até que terminem as cinco. O vencedor será quem somar a maior pontuação, formando o chamado trunfo.
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Outra característica do jogo é que ele é realizado em duplas, mas elas variam a cada partida. O diferencial do Schafkopf é que os participantes não podem se revelar. As duplas somente são conhecidas ao longo da partida, quando lançadas as maiores cartas. Antes do início, também é possível optar por jogar sozinho contra os outros três, e, nesse caso, a pontuação é maior.
O Schafkopf sempre foi e continua sendo praticado com apostas, identificadas como tarifas de jogos de carta, para perdedores e ganhadores. Geralmente, os valores são pequenos e simbólicos, muitas vezes moedas.
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Uma tradição que é mantida viva em Linha Nova
Para ver de perto como funciona o Schafkopf na prática, a Gazeta do Sul foi em busca de jogadores no interior de Santa Cruz. A primeira parada foi no famoso Salão KS (Kappel e Silva), em Linha Nova, a 14 quilômetros do centro da cidade. Quem recebeu a equipe foram os proprietários do local, Lenir da Silva, de 69 anos, e Eugênio da Silva, de 67. Inicialmente, Lenir contou um pouco sobre a história do salão, que foi fundado em 1893 e, neste ano, completou 130 anos. “O local vem passando de geração em geração, sempre na mesma família.”
Lenir ressalta que o salão é conhecido por sediar muitas festas, bailes, jogos de sociedade e encontros. “Aqui, há cinco anos, criamos um grupo de amigos, entre homens e mulheres, que jogam Schafkopf e Dama.” O encontro ocorre sempre na segunda terça-feira de cada mês. “É um dia inteiro de descontração entre o grupo, que chega a quase cem pessoas. Cada integrante paga R$ 15,00, e tem direito a almoço e café da tarde”, explica.
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No local, o Schafkopf é praticado, em maioria, pelos homens. Quem falou pelo grupo foi o agricultor Elpídio Paulus, de 73 anos. Ele mora em Linha Áustria, comunidade próxima ao Salão KS. “O jogo proporciona esse encontro entre amigos. Para nós, que somos idosos, é bom para manter nossa mente ativa, além de preservarmos nossas tradições.”
Paulus comenta que os encontros iniciaram-se por causa do Schafkopf. “Aqui a gente joga, se diverte, tem almoço e café, e muita música de bandinha.” Já sobre ensinar o jogo aos jovens, ele destaca que é difícil. “As pessoas mais novas não conseguem compreender as regras; quem não sabe, não consegue acompanhar. Por isso, não há tantas pessoas interessadas em aprender.”
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Representando as mulheres, Salete Engler, de 67 anos, conta que elas também jogam Pife, Loto e Dama. “Cada partida vale uma certa quantia em dinheiro; quem vencer leva tudo.” Ela é natural de São Carlos, em Santa Catarina, e veio para o Rio Grande do Sul aos 8 anos de idade, com o pai. “Morei por 30 anos em Quarta Linha Nova Baixa e por 45 anos em São Martinho; hoje, moro em Linha Santa Cruz.”
Para ela, o encontro com as amigas para jogar é muito bom. Salete também aprendeu o dialeto alemão local após vir morar em Santa Cruz. Em alemão, ela responde: “Es war schwierig zu lernen, weil ich nichts wusste. Ich habe es von meinem schwiegervater gelernt”. O que, em português, quer dizer: “Foi difícil aprender, porque eu não sabia nada. Aprendi com meu sogro.”
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No cardápio do almoço: arroz, saladas, 25 quilos de galeto e 10 quilos de salsichão. De sobremesa, sagu com creme e outros doces.
Em São Martinho, preparação para as Olimpíadas Rurais
A segunda parada da Gazeta do Sul foi no Comercial Kelzenberg, em Linha São Martinho, a 32 quilômetros do centro de Santa Cruz, em frente à Escola Municipal de Ensino Fundamental Cardeal Leme. No ambiente estava um grupo de jogadores de Schafkopf preparando-se para o segundo torneio da modalidade na 38ª Oktoberfest, que faz parte da programação das Olimpíadas Rurais. A primeira competição ocorreu na edição passada da festa, com duas duplas; neste ano, serão oito.
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Na mesa, os quatro participantes estavam concentrados. Para acompanhar, eles bebiam cerveja. Os pontos de cada pessoa eram anotados em um caderno, e, entre uma jogada e outra, uma forte batida na mesa – tradição do jogo para soltar a carta. O jogador Octavio Schaefer, de 57 anos, explica sobre a competição na Festa da Alegria. “Nós, aqui, aprendemos a jogar o Schafkopf com nossos pais há muitos anos. Eles nos pediram para cultivarmos a tradição e não deixar o jogo desaparecer. Por isso, estamos participando da competição como forma de divulgação.”
A ideia de criar o torneio foi uma iniciativa do apreciador do jogo Décio Hochscheidt, que tem ampla participação na Liga de Integração do Futebol Amador de Santa Cruz (Lifasc), entidade que atua na preservação das tradições locais. Conforme Schaefer, eles receberam a “missão” de Décio para resgatar o jogo. “São seis comunidades envolvidas que pertencem à Liga de Integração São Martinho Paredão. Fizemos uma parceria com a Lifasc para essa divulgação durante a festa.”
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Hochscheidt atua também como secretário municipal de Agricultura. Para ele, o resgate do Schafkopf é uma maneira de preservar a cultura dos pais e avós. “Incorporar o jogo na Oktober é uma forma de dar notoriedade e destaque para as pessoas, e uma forma de incentivar novos jogadores,” ressalta. O segundo torneio de Schafkopf vai ocorrer no próximo domingo, 22, na final das Olimpíadas Rurais. Participam dos jogos as comunidades de Paredão São Pedro, Alto Paredão, Alto São Martinho, São Martinho, General Osório e Entrada São Martinho.
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