Ao pé da letra, o termo fotografia significaria “escrever por meio de foto”. Tomando por base esse princípio, as imagens da exposição Fios d’Alma, que terá abertura neste sábado, 11, pela manhã na Casa das Artes Regina Simonis, em Santa Cruz do Sul, são mesmo muito eloquentes naquilo que transmitem ou traduzem. Salientam o olhar de mundo e a percepção de entorno da fotógrafa Tatiane Ertel, elevando seu trabalho à condição de arte.
A mostra, por iniciativa da Associação Pró-Cultura de Santa Cruz do Sul, mediada pelo reponsável pela agenda de eventos, Danúbio Zitzmann, permanece no local por um mês (confira o box de serviço). É a primeira apresentação de obras de Tatiane na cidade. Natural de Poço das Antas, no Vale do Taquari, aos 32 anos (aniversaria no dia 1º de julho), ela já tem no currículo exibições em sua região natal (Lajeado), em Porto Alegre e também no exterior (Paris). Atualmente, reside em Estrela, mantendo contato com a cidade natal, na qual moram seus pais, José Antônio e Veranice (tem ainda os irmãos gêmeos Anderson e Jeferson, de 30 anos).
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Por telefone, frisa que o interesse pelas artes lhe foi despertado por uma professora de teatro, Janete Flach, no Ensino Fundamental, em Poço das Antas. Mais tarde, cursou Licenciatura em Artes, na Ufrgs, e assim se transferiu para Porto Alegre. Concluiu em 2013. Foi nesse período, quando atuava como doméstica junto a uma família, para ajudar a custear despesas dos estudos, que a fotografia surgiu de vez em sua vida. Detalhes da rotina doméstica (efeitos da fuligem em uma chaleira, gotas d’água escorrendo em copos) passaram a ser fotografados. E, captando tais aspectos, foi capturada ela própria pela arte da fotografia.
Em passo seguinte, começou a fazer trabalhos esporádicos de fotos de pessoas, ou casais. Por volta de 2016, quando já fazia residência em Saúde Mental, inferiu que a fotografia era uma forma de captar ângulos ou aspectos das pessoas de maneiras que elas próprias nunca poderiam se enxergar. “Acreditei que eu poderia, sim, mostrar ou revelar o lado mais bonito delas, não só exterior, também interior”, frisa.
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Para Santa Cruz, traz 13 fotos, no tamanho de 64×44 cm. Têm como tema dominante meninas haitianas que fotografou no Vale do Taquari. As obras estarão à venda. O mesmo conjunto ainda em 2022 integrará uma exposição na Holanda, e outro acervo seu irá para Barcelona (ela planeja se fazer presente nos dois locais).
Um aspecto a destacar é o fato de as fotos, impressas sobre tecido dublado, trazerem detalhes bordados à mão por duas artesãs do Vale do Taquari: Lúcia Erthal fez intervenções em 12 das obras, e Sandra Perotti Ely em uma. São, como informa, trabalhos dos últimos quatro anos, e, como tal, descortinam olhar contemporâneo. Configuram fios d’alma que se estenderam entre a artista e as pessoas e os ambientes que retratou, e que agora se apresentam para alcançar o intuitivo e o afetivo do espectador.
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Gazeta do Sul – Tens um trabalho em fotografia concebida ou pensada como arte. Em que momento de tua caminhada esse olhar, da foto como arte, se acentuou, e por quê, ou despertado por qual motivação?
Tatiane Ertel – Quando eu fiz faculdade de Artes Visuais na UFRGS, tive uma disciplina obrigatória de fotografia, onde fazíamos muita leitura de imagem, mas quase nada de técnica. Um dos trabalhos exigidos pelo professor era fotografar algo de nosso interesse e posteriormente faríamos análises das imagens. Lembro que, para mim, pensar em fotografar de forma “óbvia”, apenas por registrar não me apetecia, então eu fiz uma composição de sobreposições de papel vegetal com recortes de revistas e pintura aquarela, e fotografei. Meus colegas me perguntavam se aquilo era foto ou se era aquarela/pintura. E esse jogo de provocar a imaginação, gerar curiosidade no outro foi algo que me motivava e ainda motiva muito. Há mais um fio nesse enredo que vale ressaltar: durante a minha faculdade eu trabalhava como doméstica na casa de uma família, e, portanto, não tinha como eu sair para participar de estágios para então descobrir em que área eu viria a me encontrar, e isso gerava bastante frustração e até angústia. Curiosamente, num dia em que estava lavando a louça, me deparei com uma panela de alumínio que “preteou” no fundo do lado externo (pois o gás estava acabando e soltou uma fuligem escura), que se mesclou com óleo e reflexos que vinham da janela. Aquilo saltou aos meus olhos: parecia uma pintura abstrata. Uau! Precisava fotografar aquilo. Fui buscar a minha câmera cybershot. Naquele instante virou uma chavinha, “vou fazer meu estágio dentro de casa”. Comecei a fotografar tudo, até a espuma nos baldes antes de faxinar os banheiros. Comecei a observar luz, sombra, textura, ângulos, distorções, reflexos. Fiz uma galeria de fotos “inúteis”. Iniciei algumas experimentações em programas muito básicos de tratamento de imagem para simplesmente “brincar” e ver quais eram as possibilidades. De forma muito orgânica e inicialmente nem tão consciente, a fotografia foi se tornando minha forma de expressar como eu via/sentia/percebia as coisas, pessoas e a mim mesma.
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Tuas fotografias, além de terem integrado mostras na região e no Estado, projetaram-se para fora do País. Como isso ocorreu?
Em 2017 comecei a enviar meu trabalho para alguns concursos no exterior, como Life Framer, Child Photo Competition, Shoot the Frame, Inspiration Photographers, National Geographic, Blank Wall Gallery. Para minha surpresa, inúmeras fotos e até mesmo o conjunto de obras começou a se destacar. Eu participava de uma galeria internacional on-line da National Geographic e também da PhotoVogue Italia, na qual os editores faziam a seleção das melhores fotos da semana, e inúmeros trabalhos foram ganhando destaque, ficando entre os primeiros colocados e sendo publicados. Em 2018 participei do concurso internacional “Travel Photographer of the Year” promovido pela NatGeo, e dentre milhares, uma obra minha foi a vencedora na categoria “People”. Essa premiação despertou o interesse de galerias no exterior, tanto que em 2018 fui convidada a expor meu trabalho na Feira Internacional de Paris, na França. A minha ida à feira resultou em contatos com galerias europeias, para as quais algumas coleções de trabalhos estarão indo ainda neste ano. Inclusive a coleção que agora está na Casa de Artes Regina Simonis irá para uma exposição na Holanda.
Hoje tens a fotografia como profissão, isso? E como a fotografia enquanto arte faz parte desse processo de atuação profissional? São trabalhos que tu própria planejas e defines, ou atendes também a clientes e demandas externas?
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Desde 2016 a fotografia tem se tornado minha profissão. Tenho duas linhas de trabalho, uma delas em que presto um trabalho mais comercial (ensaios de famílias, femininos, gestantes, etc); e outra que é voltada para a pesquisa e desenvolvimento de projetos autorais (meu trabalho artístico). O desejo de poder me expressar através de produções imagéticas já vem desde criança, quando amava desenhar e pintar. Depois, quando descobri a fotografia por volta de 2013, troquei os pincéis e lápis de cores pela câmera fotográfica, no entanto, sem perder o desejo de trazer aspectos pictóricos e influências da pintura para a construção estética do meu trabalho. Os meus projetos autorais eu mesma planejo e defino a partir de experimentações visuais, vivências e estímulos criativos nem sempre plenamente conscientes, mas que me provocam e instigam a criar.
O que levaste em conta na definição do acervo que estará na Casa das Artes Regina Simonis e qual é o fio condutor que perpassa esse conjunto?
Fios d’alma é uma série fotográfica que retrata a força, a profundidade, a fé, a simplicidade e o brilho de meninas haitianas que vieram com suas famílias para o Vale do Taquari. Estes retratos foram feitos nos pátios de suas casas. Cada encontro sempre marcado por brincadeiras e criatividade resultou em um trabalho de co-criação junto a elas, de modo que pudessem se expressar através da confecção improvisada de seus próprios figurinos aliados a elementos encontrados à nossa volta naquele momento.
Após ser provocada pelo que parecia ser uma trama de fios, fui instigada a pensar de que modo poderia provocar um movimento de demorar-se o olhar no momento de contemplar a criação, e do meu próprio fazer. Foi a partir disso que cheguei à ideia de bordar sobre as fotografias.
Esta exposição é um convite para desacelerar, dar-se tempo, conectar-se consigo, com o outro, com o divino. Especialmente em tempos em que estamos sempre correndo contra o tempo, em que tudo enxergamos, mas quase nada vemos; em que muito ouvimos, mas pouco escutamos.
Assim como alguns detalhes bordados só são percebidos ao deleitar-se com esmero e sem pressa, nas nossas relações humanas há riqueza de detalhes que somente são notados quando nos aproximamos do outro pacientemente, com dedicação desprovida de julgamentos e interesses.
As fotografias foram impressas por sublimação em tecido dublado, e após, bordadas à mão por duas outras mulheres, Lucia Erthal e Sandra Perotti.
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Qual tua ligação com Santa Cruz do Sul? Já tens também contato, parcerias ou interação com artistas locais de diferentes modalidades?
A minha ligação com Santa Cruz aconteceu recentemente, primeiramente quando fui conhecer o projeto incrível que é a EFASC. E posteriormente, através do contato com a curadora de arte santacruzense Carolina Knies e do vice-diretor Danúbio Zitzmann, que estão à frente da Casa de Artes Regina Simonis.
Alimentas projetos maiores em relação à fotografia, a exemplo de expoentes como Sebastião Salgado e outros? Como enxergas ou que espaço pretendes dedicar à fotografia e às artes em tua caminhada?
Com certeza, tenho alguns projetos itinerantes em andamento, em processo de desenvolvimento e que certamente levarão mais tempo para serem concluídos. Costumo compartilhar com pessoas mais próximas que criar – compreendo o meu fazer fotográfico como uma experimentação, criação que vai muito além de técnicas ou disparo de um botão – é o oxigênio que os pulmões da minha alma necessitam. Se eu não crio é como se sentisse o ar se esvaindo e perdendo o fôlego que gera vida dentro de mim. É algo intrínseco a mim e que pretendo me dedicar cada dia mais, organizando e planejando minha agenda para as pesquisas, realização dos projetos autorais, publicações e exposições.
Como avalias ou como entendes o papel da fotografia na vida das pessoas na atualidade, esse tempo em que com um celular na mão hoje todos registram quase tudo, em todo lugar? Em que momento a fotografia ou a partir de que elemento, além desses registros massivos, se torna arte? Esta é uma questão que suscita as mais diversas reflexões e que pode ser debatida levantando diferentes pontos de vista. Acredito que o celular tem oportunizado a qualquer pessoa em praticamente qualquer lugar a registrar a sua experiência, vida, cotidiano, momentos que, se pensarmos, até alguns anos atrás era restrito a poucas pessoas. Por outro lado, também percebo que por ser de tão fácil acesso “guardar” estes momentos, eles têm se tornado banais, quase que beirando o descartável. Uma vez que o armazenamento dos dispositivos é limitado, aqueles registros são apagados, se perdem. Além disso, são raras às vezes que nos voltamos aos nossos álbuns virtuais, diferentemente de como fazemos com nossos álbuns de fotografia impressa, por exemplo. Percebo também uma falta de apreciação em mão de via dupla, tanto no que se refere à contemplação do momento presente (em função da necessidade e do excesso de exposição no mundo virtual), quanto também à fruição dos registros realizados. Há uma falta de conscientização e educação dos nossos sentidos, especialmente do olhar (somos bombardeados por centenas de imagens diariamente). Numa era de filtros, consumimos sem filtro algum. Acredito que a fotografia se torna arte no momento em que ela cria ou se torna uma ponte de conexão de universos do tema fotografado com o público, com aquele que se propõe a explorá-lo, conhecê-lo, questioná-lo, a refletir sobre ele e a sua própria existência.
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