Esteve em Venâncio Aires na semana passada o professor, pesquisador, escritor e ator indígena Daniel Munduruku. Ele foi um dos palestrantes convidados do 17º Fórum Nacional e 13º Fórum Internacional de Educação, realizados na Capital do Chimarrão, e falou por mais de uma hora para uma plateia que lotou o Clube de Leituras. Na sequência, apresentou e autografou alguns exemplares dos mais de 60 livros publicados e concedeu entrevista exclusiva à Gazeta do Sul. Durante a conversa, tratou sobre temas como educação, pesquisa, cultura e importância dos povos originários.
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Entrevista – Daniel Munduruku, professor, pesquisador, escritor e ator
- Gazeta do Sul – Com que frequência visita o Rio Grande do Sul e qual a sua relação com os gaúchos?
Daniel Munduruku – Tenho tido passagens pelo Rio Grande do Sul já há muitos anos, mas confesso que nessa região do Vale do Rio Pardo eu ainda não tinha vindo. Na região da Serra, sobretudo Caxias do Sul, onde as feiras literárias são mais frequentes, eu estive mais vezes, além de Porto Alegre e Região Metropolitana. Uma coisa que sempre me impressiona é que há aqui uma ânsia pelo conhecimento. Embora exista um estereótipo, vejo que o Sul do Brasil se preocupa muito com a educação, formação e escolarização das suas crianças. Isso sempre me surpreende aqui, é uma região viva e que está em constante movimento, e isso só faz bem para todos. - Qual o seu contato e relação com os povos indígenas daqui?
Já visitei muitas vezes aldeias Caingangue e Guarani. Aqui no Sul, do Paraná para baixo, eu tenho frequentado encontros e eventos em aldeias e comunidades indígenas. - O senhor menciona com frequência a questão dos estereótipos acerca dos povos indígenas. Na sua visão, como isso reflete na sociedade?
Na verdade, o preconceito é uma coisa, digamos, natural nas pessoas. Nós somos educados sob uma visão “X” de vida e, portanto, tudo aquilo que não se encaixa no nosso jeito de ver o mundo, nós acabamos desprezando. É o conceito prévio que se tem de outras pessoas, outros povos, outra gente. O preconceito por si só não é um problema, para isso nós temos escola, a educação serve para extirpá-lo. O problema maior é quando o conhecimento gerado pela escola resulta em atitudes racistas, aí é uma preocupação que devemos ter. O preconceituoso não é violento, ele simplesmente não sabe, mas o racista sabe que está cometendo um ato de violência e mesmo assim continua. Se para o preconceituoso existe escola, para o racista existe a prisão, a punição. Para esse, não tem mais jeito porque ele sabe o que está fazendo. É importante fazermos essa diferenciação para não se pensar que todo preconceito é ruim. É simplesmente vista fechada, alguém precisa ir lá e destapar aqueles olhos para que a pessoa enxergue com mais clareza. É um trabalho que não tem fim e é cada vez mais necessário, porque as crianças vão nascendo, crescendo e indo para a escola. Se essa escola não for atualizada e tratar isso de uma forma consistente, as novas gerações vão continuar preconceituosas e racistas. - O senhor tem se dedicado a percorrer o Brasil em fóruns, seminários e outros eventos literários para difundir as suas obras e indicar outras leituras. Como tem sido a receptividade com o seu conteúdo e as suas propostas?
Eu fico sempre muito orgulhoso de toda essa movimentação que consigo gerar, de fazer com que as pessoas olhem para a temática indígena de maneira mais qualificada. Assim, os meus livros e a minha literatura acabam se tornando um complemento para as minhas falas e a receptividade é sempre muito boa, muito positiva. Quem vende o produto é aquele que faz o produto, aquele que sente a energia de fazer. Um escritor é o melhor vendedor do seu produto. Quando eu venho em um evento como esse, claro que não venho para vender livros, mas trazê-los ajuda as pessoas a visualizarem o todo das coisas e isso se torna para elas uma lembrança, um souvenir da conversa que tivemos. Sou muito feliz, porque tenho mais de 60 obras publicadas e já vendi mais de 10 milhões de cópias pelo Brasil inteiro. Posso dizer que sou um autor realizado. - Para quem não tem esse conhecimento, de onde é originário o povo Munduruku e de que questões culturais vocês se ocupam?
O Brasil tem 305 povos indígenas, o povo Munduruku é somente um deles e está espalhado por três estados brasileiros: Mato Grosso, Amazonas e Pará, que é de onde eu sou. Nasci em Belém, mas já moro em São Paulo há mais de 30 anos. É um povo que tem um contato de quase 400 anos com a sociedade brasileira, portanto um povo que já conhece muito bem a dinâmica da sociedade e procura se manter atualizado a respeito dela. Nossa população é de aproximadamente 15 mil pessoas e nós somos um povo valente, forte e bonito, como você pode ver (risos). - Como o senhor avalia o tratamento que os povos indígenas receberam no Brasil nos últimos anos? Foi um assunto envolto em muitas polêmicas, sobretudo no que diz respeito à etnia Yanomami, então como o senhor vê o que está ou não está sendo feito em torno disso?
Olha, os povos indígenas são abandonados pelo Brasil desde 1500. Mais do que abandonados, eles foram perseguidos e isso não mudou muito. Houve sim uma melhora, e isso tem muito a ver com o tipo de governo que está no poder. Alguns deles olham para os povos indígenas como uma solução, enquanto outros enxergam como um problema. Assim, dependendo de quem está no poder, a política vai mudar. Eu diria que nos últimos quatro anos, antes do atual governo, os indígenas foram um problema e toda a política desenvolvida para esses povos foi de extermínio, a exemplo do que já havia acontecido em diversos outros momentos da nossa história. A questão Yanomami revelou exatamente esse abandono e o problema que eles representavam para o então presidente brasileiro. Hoje, se pensarmos nesses últimos seis meses, os indígenas ganharam uma visibilidade imensa. Quero deixar bem claro que não estou defendendo este governo, mas é notória toda essa mudança. Nós deixamos de ser problema e, até este momento, estamos sendo solução no tocante à questão ambiental, capitalização de recursos para a proteção da Amazônia e dos povos originários. É um outro olhar, totalmente diferente, embora também não vá resolver todas as situações pendentes. - Todos nós gostamos de crer que a sociedade evolui. Como o senhor vê as próximas gerações? Acredita que elas já virão mais conscientes sobre a questão indígena ou esse trabalho realizado hoje terá de continuar por tempo indeterminado?
A tendência do mundo é andar um passo para a frente e três para trás. Analisando o Brasil hoje, o risco é que daqui a pouco apareça outro governo que faça andar para trás tudo o que estamos lutando para andar para a frente. É só você ver o que é essa reforma do Ensino Médio, foi uma mudança pensada para criar autômatos, robôs, como os militares faziam nos anos 1970. Se deixar isso prosseguir, daqui a pouco nós teremos adultos completamente automatizados, sem consciência e sem formação crítica. Se isso vier a acontecer, o Brasil terá sérios problemas no futuro. - Como as novas tecnologias chegam aos povos indígenas e como elas são utilizadas para comunicar angústias, anseios e demandas à sociedade brasileira?
Eu costumo dizer que os povos indígenas são povos do presente, nós somos contemporâneos, estamos aqui e agora e ponto final. Assim, para tudo o que aparece de inovação e tecnologia, os povos indígenas estão lá para aprender. Nós fazemos isso sozinhos, não precisa ter professor, da mesma forma que uma criança aprende a mexer em um telefone celular. Hoje nós utilizamos as ferramentas que estão disponíveis. Eu mesmo uso a literatura, mas também tenho meu canal no YouTube e minhas redes sociais, porque acho importante complementar o meu conteúdo através desses meios. Agora, isso requer recursos, formação, preparo e tudo mais, e nem sempre os indígenas têm acesso. Aqueles que têm, no meu ponto de vista, utilizam muito bem essas ferramentas para comunicar. Eu não sei dizer se isso gera profundidade nas pessoas, porque eu procuro não ficar na superfície, mas um Instagram, um Twitter são superficiais e isso empobrece a experiência das redes sociais. - O senhor está em uma das maiores vitrines possíveis da mídia brasileira, que é uma novela da Globo em horário nobre. Que impacto é possível provocar a partir de um meio tão importante como esse?
O núcleo indígena da novela é pequeno, tanto em personagens como em participação na trama. Eu costumo dizer que sou um educador, essa é a minha formação. Naquele momento, também estou como um educador e uso aquela ferramenta para educar o pensamento das pessoas. Na medida do possível, consigo modificar o texto e incluir algumas palavras que acho importante os telespectadores fixarem. Acho que a novela em si não tem um papel educativo, mas o meu personagem sim, então é isso que eu tento fazer dentro do que me é permitido. - Quais leituras e outros conteúdos o senhor indica consumir para quem deseja entender melhor a questão indígena, tirar a venda dos olhos, como mencionou anteriormente?
Se alguém tiver disponibilidade para ler algumas obras minhas, eu escrevi livros para adultos, professores e muita coisa infantojuvenil. Existe a Livraria Maracá, um site especializado em literatura e temática indígena. Lá tem muitos autores acadêmicos e literários que podem ajudar as pessoas. Me seguir nas redes sociais também é uma boa, porque eu difundo muita informação e recomendo muitas coisas.
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