Alceu Valença tinha um tio que “conversava” com um guarda-chuva. Certo dia, conta Alceu, o tio saía de casa quando o objeto lhe disse: “Você não vai me levar, não?”. “Não, é um dia de verão, esse sol azul”, retrucou o parente. “É, mas pode vir uma chuvarada por aí”, insistiu o acessório. “O mesmo aconteceu comigo. O violão, lá no canto da sala, me dizia: ei, você não vai me tocar não?”, diz Alceu. “Eu respondia: mas eu já lhe toquei hoje. Você quer mais um bocadinho, é?”
O chamado rendeu o disco Sem Pensar no Amanhã, que o cantor e compositor pernambucano lança agora nas plataformas digitais. Outros dois, também já gravados, estão nos planos para serem lançados até o fim do ano. Um terceiro, sobre o sertão profundo, deve ficar ainda para mais para frente.
Alceu diz que essa intimidade com o violão em casa é algo que ele só lembra de ter acontecido no final dos anos 1970, quando, residente em Paris, em uma espécie de exílio cultural, gravou o disco Saudade de Pernambuco, que, à época, foi vendido encartado no extinto Jornal da Tarde e virou artigo de colecionador até 2016, quando foi relançado pela gravadora Deck, a mesma que agora lança Sem Pensar no Amanhã.
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Nesta nova temporada, o instrumento só podia vir para os seus braços à noite. “De dia, tinha uma obra aqui perto de casa que produzia uma barulheira infernal. Fiz até uma sinfonia das britadeiras”, brinca. A mulher, Yanê Montenegro, também sua produtora, do quarto, mandava sinais de aprovação. Alceu se sentiu cada vez mais à vontade.
O próximo passo foi ir para o estúdio acompanhado apenas do violão e do produtor Rafael Ramos. Esse primeiro lançamento tem 11 faixas – 10 regravações e uma inédita, o samba que batiza o trabalho.
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“O violão queria tomar conta de tudo, rapaz. Ficou meu amigo. É gente finíssima! O meu tio, aquele do guarda-chuva, que tocava muito bem, sempre me disse que eu tinha uma mão direita maravilhosa. Nos meus discos, sempre toquei mais guitarra. Em um show muito grande, como os que eu faço, não dá para tocar violão acústico, ficar parado na frente do microfone. A plateia fica dispersa”, diz o compositor.
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Apesar de ser um disco majoritariamente de regravações, Alceu amarrou as canções como se fossem um roteiro cinematográfico. Procurou relações entre elas e novas sonoridades. Não queria nada solto. Ele detalhou o script para a reportagem do Estadão.
A viagem de Alceu começa na música que abre o disco, o hit La Belle de Jour. A inspiração da música nasceu de uma menina que ele viu dançando balé clássico à noite na praia. A mesma moça reapareceu dias depois, em uma noite em que conheceu um de seus parceiros mais duradouros, o guitarrista Paulo Rafael, o Paulinho. Ela é a mesma que se faz presente na segunda música, Mensageira dos Anjos, de cabelo lilás.
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Táxi Lunar, feita em parceria com Geraldo Azevedo e Zé Ramalho, ainda insiste no encantamento de Alceu pela moça. “Pela sua cabeleira, vermelha/ Pelos raios desse sol, lilás”, diz a letra. “Do táxi, eu acelerei para a Estação da Luz, em São Paulo, para percorrer o Brasil, sobretudo as praias do Brasil”, conta. É a quarta no roteiro.
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O passeio desse trem passa pelo Rio, pela Bahia, por Sergipe, Alagoas e para no Forte Orange, na Ilha de Itamaracá, onde Alceu dança a Ciranda da Rosa Vermelha, uma lembrança dos tempos de estudante de Direito.
A próxima parada é Olinda, no carnaval, representada pela inédita do disco, a faixa Sem Pensar no Amanhã. Alceu se demora um pouco por lá, nas duas faixas seguintes, Chego Já, na qual cita os blocos que tomam as ruas da cidade durante a folia, e Pirata José, um frevo lírico que narra uma história de amor típica da festa, a mesma temática de Beija-Flor Apaixonado.
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Nas duas próximas, Íris e Marim dos Caetés, volta para a estrada “Nessa hora posso estar em qualquer lugar do mundo. Em Berlim, Los Angeles, Vitória da Conquista, Caruaru, Lisboa, São Bernardo, Campina”, citando as diversas cidades nas quais já se apresentou pelo mundo.
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Alceu vive a quarentena em seu apartamento no bairro do Leblon, no Rio de Janeiro. Desde que começou a pandemia no Brasil ele não viaja para sua casa, em Olinda. Porém, o compositor diz não reconhecer o endereço no valioso bairro da zona sul carioca como sua morada. “Nunca tive intimidade com essa casa, sabia?”, diz.
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Pudera. Só em 2020, depois do carnaval, Alceu tinha uma agenda com 45 shows no Brasil até junho. Outros 16 estavam programados em uma turnê pela Europa. “Não paro em canto nenhum. Sou um caminhador. Minha mãe dizia que eu era um Óvni. Veja minhas músicas. Elas falam de estradas, trens…”
Alceu conta que já contraiu a Covid-19 um pouco antes do carnaval de 2020. Ao voltar da gravação do DVD Valencianas II, que fez junto com a Orquestra de Ouro Preto, na cidade do Porto, em Portugal, sentiu os primeiros sintomas.
No desfile do Bloco Bicho Beleza no Parque do Ibirapuera, sentiu um cansaço extremo no meio da apresentação. Pediu que o cantor Herbert Azul continuasse com o show. Precisou se deitar dentro do trio por alguns minutos. Foi para a folia no Recife e a tosse não o abandonava. A mulher e os dois filhos também apresentaram os sintomas. Tempos depois, um exame de sorologia mostrou que todos tiveram a doença.
Mesmo assim, aos 74 anos, não se descuida. “Estou totalmente resguardado. Saio para caminhar com uma máscara e uns óculos enormes de plástico. Não peguei na mão de ninguém nesse tempo todo. Só da minha mulher, claro”, diz.
Na expectativa de ser vacinado, ele brinca. “Depois de tomar a ‘vachina’, vou fazer uma excursão para a China. Esses dias uma chinesa fez um TikTok com uma música minha, acredita? Queria ver como é por lá. Fico encantado com a tecnologia que eles têm”, diz ele, para logo depois desanimar ao pensar na quantidade de horas que teria de passar dentro de um avião.
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