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Verde novo: Eva lembrada mãe de Líris

Das mãos, Eva e Líris fazem concha. Sorvem da água que brota. Observam o entorno. Estranhamente, a floresta passa a se vestir de verde claro, quase insistente. São as “uvinhas”, considera Eva. Aquelas que o médico Cristian dissera terem sido trazidas de fora, de terras que não as dali. Por certo, a mata “estrangeira”, logo adiante, daria lugar à originária. Eva avalia ambivalências. Estivesse ele ali, perguntaria ao dr. Cristian se apenas as “uvinhas” eram exóticas ou se muitos humanos assim poderiam ser considerados. Eva também questionaria sobre as árvores estranhamente mortas e ainda em pé como se estivessem perdendo lentamente seu vigor. Sim, já ouvira falar dos troncos perfurados por onde eram injetados o “óleo queimado” e venenos mortais. Para que ninguém desconfiasse da perversa maldade, os furos eram feitos em pontos discretos dos troncos, sinalizando possível morte natural, “o que torna o ato ainda mais cruel”, sentencia Eva.

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Aliviadas em sua sede, Eva aproveita a parada para conversar com a menina. “Que idade tens, Líris?”. Ao silêncio, Eva adivinha que talvez tenha 8 anos. “Pode ser. Eu e a bonequinha temos a mesma idade.” “Por que pensas isso?”, pergunta Eva. “É que a bonequinha sempre esteve comigo. A gente se escondia juntas naquele casarão. Até aprendemos a ler e merendar juntas.” “Posso pegar tua boneca?”, pergunta Eva. “Pode, só cuida para ela não ficar de cabeça para baixo. Ela entristece.” “Como sabes que ela fica triste, Líris?” “É só olhar nos olhinhos dela. Eles se enchem de água. Sei que choram.”

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Eva toma a bonequinha em seus braços mantendo sua cabeça erguida. “Os olhinhos dela falam”, sussurra Eva, a artista que ensinava trabalhos manuais aos hóspedes e pacientes do antigo Sanatório. Para ela, cada detalhe de um trabalho artesanal deveria ser uma obra de arte, especialmente os olhos das bonequinhas de pano. A intuição a impulsiona: “Eu ensinei tua mãe a fazer bonecas. Sim. Só pode ter sido a tua mãe. Você herdou os traços lindos dela. Até a voz é parecida. Mas os olhos são iguais. E os olhinhos da tua boneca têm um detalhe que eu fazia questão de acentuar. Observe. No cantinho, perto do narizinho, eu deixava um traço mais profundo, para dar a impressão de que seriam olhos de verdade.” Líris se atira nos braços de Eva: “Onde ela está? Para onde foi minha mãe? Tu sabes onde posso encontrá-la?” Eva teria feito de tudo para responder à torrente de perguntas da menina. Apenas consegue dizer: “Ela está, por certo, pensando em ti o tempo inteiro.” As duas, abraçadas, vertem as lágrimas mais límpidas da humanidade.

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Eva poderia ter acrescentado que a mãe de Líris havia sido conduzida ao Sanatório por pessoas estranhas, que simplesmente a deixaram ali. Poderia ter dito que fora duplamente abandonada. Já na infância, fora levada a uma família estranha. Quantas vezes ouvira que a então menina, ao se dar conta da situação, correra até a rua e vira, já ao longe, no alto da coxilha, a charrete que a trouxera se distanciar, sem sequer um adeus.

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“E o nome dela?”, pergunta a menina. “Irene, é o nome dela. Irene significa paz. Tua mãe buscava a paz, foi assim que a conheci. Ela se sentia bem fazendo bonecas. Ela fez esta para ti, só para ti.” Irene, mãe de Líris. Líris, filha de uma mulher sofrida, bela, esquecida dos seus e pelos seus, tanto em sua infância quanto em sua fase adulta. Líris, mãe da bonequinha de olhinhos profundos que alcançam distâncias que o tempo reconduz à amorosa atualidade.

Eva sabe que precisa voltar a andar. Ainda abraçadas, se erguem. “Posso ficar contigo?”, insiste Líris. “Claro”, nunca nos separaremos. “Eles escutaram”, brinca a menina, piscando para os peixinhos, que revoluteiam na poça de água a seus pés. “Sim. Olhe! Estás sentindo os pingos? Vem chuva por aí. Tua bonequinha não pode se molhar!” Apressam-se. Também os troncos semimortos as seguem. Uma aba de rocha à frente as aguarda.

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