Era mais um final de tarde de domingo, no verão de 1941. Diante de um rancho, no entroncamento da estrada geral de Iruí, 5º distrito de Rio Pardo, entre a prainha banhada pelo Arroio das Palmas e o distrito de Pederneiras, a conversa rolava solta. Seu Agenor Alves dos Santos assava uma carne para a família, em frente ao seu boteco, construído junto à sua casa. Esmerando-se em, de tempos em tempos, virar os espetos, o rio-pardense servia seus clientes no balcão. Dentre eles, um fazendeiro chamado Luiz já parecia ter passado do ponto na bebida.
Seu Agenor então pediu a ele para ir embora e evitar qualquer discussão mais acalorada, após brincadeiras ácidas sobre apostas em carreiras de cavalo. O pedido não foi muito bem aceito, e um bate-boca entre os dois se formou em frente ao bolicho. Os gritos de desacato já haviam sido trocados por um turumbamba agressivo. Na força do braço, em meio à balbúrdia, seu Agenor conseguiu se desvencilhar e colher um peso de balança, de 5 quilos, e jogar com toda a força no rosto de Luiz. O impacto estraçalhou os dentes do fazendeiro.
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Tomado de fúria, com a boca escorrendo sangue, Luiz prometeu que voltaria ao local para se vingar, e desapareceu no seu Dodge Dart cor verde imperial, rumo a sua fazenda, que ficava a cerca de três quilômetros dali. Os momentos que se seguiram foram de tensão entre familiares e clientes de Agenor, presentes no entorno do boteco. Cerca de 20 minutos após o ocorrido, as luzes do Dodge apontaram em meio à fumaça e à poeira, que subia ao longo da estrada de chão. Em uma velocidade impressionante, segundos depois o veículo já estava diante do boteco de Agenor. Luiz desceu do carro empunhando um revólver Smith & Wesson cano longo, calibre 38.
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Ao seu lado estavam os empregados e os filhos do homem. A partir dali, uma sucessão de tiros foi disparada pelo fazendeiro em direção ao dono do boteco. Familiares e clientes correram, e seu Agenor procurou se abrigar dentro do seu casarão, para onde as balas foram direcionadas, de forma atabalhoada, dado o estado alcoólico de Luiz. Algumas passaram rente ao berço onde Leci, filha de Agenor, de 2 anos, estava acomodada. Percebendo a tragédia que se anunciava, os filhos e os empregados do fazendeiro seguraram-no pelos braços, tiraram a arma de suas mãos e o levaram à força para casa.
Quando a história se torna arte
Anos se passaram após a peleia. Por volta de 1953, bate na porta do velho casarão de Iruí um jovem de 26 anos, vindo do município de Rolante, no Vale do Paranhana, interior do Rio Grande do Sul. Vítor Mateus Teixeira era operador de máquinas no Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem (Daer) e trabalhava na construção da BR-290, em Rio Pardo, nas proximidades do distrito. Buscando um canto para se abrigar entre os dias de trabalho, foi bem-recebido por Agenor. O boteco ao lado da casa mais do que servia. Em meio a doses de vermute, no balcão do estabelecimento, compunha e ensaiava sua grande paixão: a música.
“Naquela época, apesar do sonho de viver da música, o Teixeirinha ainda não fazia shows. Nos períodos de intervalo dos trabalhos na BR-290, ele se apresentava em circos de Rio Pardo, Santa Cruz, Cachoeira do Sul e Encruzilhada, mas só na trova”, comenta Manoel José Machado Konzen, o popular Caneco, de 70 anos. Casado com Luci dos Santos Konzen, de 71 anos, irmã de Leci, Caneco se lembra com saudade do sogro e de quanto ele ajudou Teixeirinha antes mesmo de este iniciar sua carreira profissional.
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“Nessa época das trovas, quando o Teixeira fazia um bico nos circos, o Agenor transportava ele de caminhão e de jipe pelos municípios da região. Ele sempre foi muito grato ao velho por isso”, ressalta. De acordo com Caneco, que agora administra o antigo boteco, Teixeirinha considerava seu Agenor como um pai. “O Teixeira perdeu o pai dele muito cedo, aos 7 anos, e então via no Agenor uma figura paterna.” Encorajado pelas apresentações que já fazia pela região, em 1955 Teixeirinha saiu do Daer, e começou a alçar voos mais altos. Depois de três anos cantando nas estações de rádio, em 1959 Teixeirinha recebeu um convite para gravar um disco. “O Gaúcho Coração do Rio Grande” foi lançado um ano depois, em 1960. Após sucessos como “Tordilho Negro”, “Coração de Luto” e “Gaúcho de Passo Fundo”, o artista já alcançava mais de 1 milhão de discos vendidos. Em 1961, ele conheceu a acordeonista Mary Terezinha, que o acompanharia por 22 anos.
Na década de 1970, a carreira musical de Teixeirinha alcançou projeção nacional e internacional. Mesmo com a fama, jamais esqueceu daqueles que o ajudaram. “Em uma das visitas dele ao Iruí, o Agenor relatou a peleia que havia acontecido em torno do velho casarão. O Teixeirinha guardou essa narrativa na cabeça, e, como sabia romantizar como ninguém, criou uma música a partir da história, chamada de ‘Velho Casarão’”, comenta Luci dos Santos Konzen, filha de Agenor.
Dentro da casa, ela lembra de detalhes das visitas dos amigos famosos. “A Mary Terezinha ficava sentada perto da caixa de lenha e gostava muito de tirar fotos junto com a gaita ou o violão”, relata Luci. No local, foi filmada parte do filme “Na Trilha da Justiça” (confira vídeo acima), de Teixeirinha, lançado em 1977. O apreço por seu Agenor era tanto que o artista convidou ele para fazer uma participação no longa, sendo o administrador de apostas e dando a largada nas carreiras de cavalo, já fazendo uma referência ao enredo contado por Agenor.
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A música sobre a histórica peleia em torno do velho casarão veio dois anos mais tarde. Em 1979 foi lançado o disco “20 Anos de Glória”. Intitulada “Velho Casarão”, a música possui uma dedicatória em seu início: “Estes versos quero oferecer para o meu irmão e amigo, Agenor Alves dos Santos”. A gravação original (confira o vídeo acima), com a homenagem, é rara e pouco encontrada, mesmo na internet. A versão mais famosa, que é tocada na maioria das rádios, e que não conta com a citação a Agenor, foi lançada em 1984, no último disco em vida lançado por Teixeirinha, “25 Anos de Sucesso” – seu último LP, “Amor aos Passarinhos”, chegou às lojas em 5 de dezembro de 1985, um dia após sua morte.
O último ato de amizade
Sem esquecer detalhes característicos da peleia e do casarão, Teixeirinha dramatizou a briga de seu Agenor e do fazendeiro. Em versos como “Velho casarão, já quase tapera, da grande figueira sombreando o telhado”; “Nas suas paredes tem furo de bala, serviu de trincheira a varanda e a sala”; “Ali meu avô doze filhos criou, meu avô morreu e ficou o meu pai, mandando na estância pela vida inteira”; “Lá do meu berço eu saí engatinhando, pra ver e ouvir a bala zunindo”; “Ali fiquei moço faceiro e pachola”; e “Meu pai me ensinou a ser bom cantador”, todos fazem referência à história contada por Agenor, e ao tempo em que Teixeirinha passou pelo Iruí.
“Esse rancho era do fazendeiro Lauro Silveira. O pai trabalhava para ele e acabou se criando por aqui e assumindo a casa. Entre filhos legítimos e de criação, fecham os 12 filhos citados pelo Teixeirinha na música”, conta Luci dos Santos.
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Acostumado a buscar o considerado pai adotivo para levá-lo junto em shows que fazia em cidades da fronteira, como Uruguaiana e Bagé, Teixeirinha foi responsável por um ato que, na visão dos parentes de Agenor, prolongou a vida dele por mais de 20 anos. A filha Luci conta que o pai sempre disse que quando tivesse uma doença grave, iria se matar.
“Em 1984, descobrimos que ele tinha câncer e o médico de Rio Pardo disse para nós que era para ele ir pra casa, que não adiantava mais; afinal de contas, ele não queria se tratar. Ligamos para o Teixeirinha buscar o pai, fazer de conta que estava passando para levá-lo a um show na Fronteira e levá-lo para tratamento”, frisa Luci.
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“Ele saiu de Porto Alegre, veio aqui, buscou ele e não contou nada ao pai. Levou direto para o médico pessoal dele em Porto Alegre. Só assim o pai aceitou se tratar e operar o tumor que tinha no estômago. Se o Teixeirinha não tivesse feito isso, ele não teria durado mais de 20 anos ainda, como aconteceu”, complementa.
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Seu Agenor morreu em 20 de janeiro de 2007, vítima de uma parada cardíaca. Já o filho adotivo, Teixeirinha, triste pelo fim de seu relacionamento com Mary Terezinha e debilitado por um linfoma, faleceu em 4 de dezembro de 1985, aos 58 anos, apenas um ano após ter salvado o pai adotivo de uma morte quase certa. “Meu pai foi no velório do Teixeirinha em Porto Alegre. Foram dias tristes para ele quando soube do acontecido”, relata Luci.
SEU CANECO, O HOMEM DAS MUITAS HISTÓRIAS
A fala rápida de seu Caneco revela uma ânsia de contar as infinitas histórias que possui em sua mente. Em uma delas, a vontade de revelar um “causo proibido” de Teixeirinha, durante a gravação do filme “Na Trilha da Justiça”, venceu a vergonha. “Ele me chamava de Canecão. Um dia, chegou aqui no boteco e me disse: ‘Canecão, quero que tu me empreste a tua casa e a tua cama, e não deixe ninguém ir lá, que eu quero aproveitar que a Mary tá junto aqui na Campanha’”, conta Manoel, abrindo um sorriso. “Como ele estava mais acostumado com apartamento, ele queria uma coisa diferente aqui no interior. Eu só disse que a porta dos fundos estava aberta, e se foram”, lembra o administrador do boteco.
Ainda durante a filmagem, ocorrida em 1976, Caneco era responsável por buscar o lanche para a equipe de produção, que chegava a 50 pessoas. “O ator Jimmy Pipiolo sempre me pedia para deixar uma garrafa de bebida meio escondida no mato para de vez em quando ele dar uma bicada”, conta Manoel. Das relíquias do tempo, ele guarda até hoje o peso de 5 quilos (foto) que Agenor jogou no rosto de Luiz, durante a briga histórica que foi retratada na música “Velho Casarão”. A bebida também era uma das paixões de Teixeirinha. “Quando ele era mais novo, bebia vermute. Depois da fama, só queria saber de uísque. Já a Mary gostava era de caipirinha.” Em 1978, Caneco resolveu fazer um baile em um engenho nas proximidades. Ele e Agenor foram a Porto Alegre e convidaram Teixeirinha para tocar.
“Cheguei na rodoviária e liguei para ele. Mandou um motorista nos buscar. Quando perguntou o que queríamos, eu disse: ‘quero que tu toque um baile lá no Iruí. O pessoal duvida que tu vai lá’. Ele ligou para a secretária, que confirmou que ele tinha show marcado em Curitiba. Na hora, mandou cancelar e disse que ia. Eu calculo que umas 2 mil pessoas foram ao evento. Até o Agenor subiu no palco com ele”, relembra Caneco. Outra história lembrada por Manoel ocorreu em 1981. Nos dias próximos de seu aniversário, no mês de março, Teixeirinha deixou escapar para Mary Terezinha que seria um presente se o seu Agenor fosse à sua festa, em Porto Alegre.
“A Mary mandou o motorista vir nos buscar. O Teixeirinha chorava abraçado no velho”, ressalta Caneco. Quem também lembra das histórias é Beloni Silveira Gomes, de 58 anos, neta de criação do rio-pardense. “Lembro de vir passar as férias do colégio aqui e ouvir os contos do avô”, ressalta ela, que em 1986 conheceu seu marido, Baltazar Gomes, mais conhecido como Chico, no boteco do seu Agenor. “Esse local também guarda parte da minha história.”
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