Chega às livrarias uma nova edição de um romance que já se alçou à condição de clássico no âmbito da literatura de ficção que tematiza a colonização alemã no Brasil. A valsa da medusa, da santa-cruzense Valesca de Assis, agora está no catálogo da porto-alegrense Bestiário, por iniciativa do editor Roberto Schmitt-Prym. Esse relançamento acaba por marcar três circunstâncias simultâneas: os 25 anos desde a estreia dessa obra, em 1989, então pela editora Movimento; os 175 anos desde a chegada dos primeiros colonos alemães à Colônia Santa Cruz, em 1849; e, igualmente, os 200 anos de imigração germânica para o Sul do Brasil.
Uma segunda edição, revista pela autora, saíra também pela Movimento em 1994, quando dos cinco anos desde a publicação original. E uma terceira veio em 2009, comemorativa aos 20 anos desde o lançamento, e nesse caso em parceria da Movimento com a Edunisc. Esse esforço recorrente para manter o título presente nas livrarias é plenamente justificado: trata-se de uma das obras que retratam à perfeição o ambiente no qual as pioneiras colônias alemãs floresceram.
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E, no caso, a empreitada em questão é justamente a de Santa Cruz, que viria a ser a terra natal de Valesca. Ao propor uma história de amor, tendo como pano de fundo os primeiros anos de uma colônia alemã, a autora conforma um romance de época à moda clássica, com pleno domínio de ritmo e estilo narrativos.
No exato momento em que a região de Santa Cruz do Sul e o Rio Grande do Sul lamentam as perdas e os estragos decorrentes de uma enxurrada sem precedentes na história do Sul do Brasil, o relançamento do romance A valsa da medusa, de Valesca de Assis, reveste-se de uma profética e paradoxal atualidade.
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Nos primeiros anos da colônia alemã de Santa Cruz recém-instalada, em meados do século 19, uma enchente arrastara consigo lavouras, benfeitorias e a ainda incipiente infraestrutura local. É o que o leitor pode conferir em várias passagens da obra, nas quais as ações de desmatamento desenfreado e de implantação das primeiras lavouras em vales e morros provocaram inundações e muitos estragos em período de fortes chuvas.
A valsa da medusa constituiu a estreia de Valesca em narrativa longa. Nascida em 1945 e hoje radicada em Porto Alegre (é esposa do também romancista e professor Luiz Antonio de Assis Brasil), ela surgiu no ambiente literário quase uma década depois que sua conterrânea Lya Luft havia fixado seu nome no universo artístico, com o romance As parceiras, em 1980.
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No caso de A valsa da medusa, no centro da trama está a imigrante alemã Pauline Eick, estabelecida com o marido Jacob e com os filhos em área de terras em Rio Pardinho, ou a Picada Nova, criada em sequência à Picada Velha, a região pioneira da colônia, a atual Linha Santa Cruz. Pauline atrai a atenção do professor Tristan Waldvogel (sobrenome que significa “pássaro do mato”, em alemão), outro imigrante, que viera ao Brasil na condição de brummer, mercenário que lutou na Guerra contra Rosas, em 1851. Desmobilizados, esses soldados puderam escolher entre voltar à Europa ou ficar na nova terra, obtendo inclusive área em uma colônia alemã. Tristan fez essa segunda opção, e assim veio parar na Picada Nova.
Lá, enquanto assume de forma provisória como professor dos filhos dos colonos ali já instalados, na falta de uma escola, também se ocupa em abrir a sua própria área de terras, que é vizinha à dos Eick. O destino coloca frente a frente o aventureiro Tristan, sempre em busca de um lugar que venha a ser seu no grande mundo, e a sonhadora Pauline, já casada e mãe de três filhos. É em torno desses personagens, ficcionais, que se construirá o cerne do romance.
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Mas Valesca brinda o leitor ainda com um desfile de fortes e vigorosos atores reais, recuperados da história. É o caso do diretor da colônia, João Martinho Buff; do médico e viajante alemão Robert Avé-Lallemant, que efetivamente visitou a colônia, em 1858 (e, assim, tem-se o indicador da época em que a história transcorre); e do empreendedor norte-americano Wilhelm Lewis, o primeiro a fixar residência no núcleo urbano (atual área central da cidade de Santa Cruz) e que respondeu pela construção da primeira igreja católica.
O romance oferece igualmente um interessante diálogo literário, a começar com Tristão e Isolda, a partir do nome do professor. Este ainda presenteia Pauline com exemplar do Werther, de Goethe, que acaba por funcionar como outro intertexto natural. Com maestria, Valesca coloca o leitor no cerne dos acontecimentos de uma época que mudou para sempre a área central gaúcha. Confira um trecho:
“Despachado o requerimento, Buff se dirige aos homens ali presentes não mais como Diretor da colônia, mas na condição de agrônomo que é, e não como o engenheiro que dizem ser. Torna clara a sua preocupação sobre os reais motivos daquela enchente. Para ele, o descontrole da natureza foi provocado pela ação devastadora dos próprios colonos. Na ânsia de conquistarem mais e mais lavouras, abateram-se árvores, queimaram o suco da terra, desequilibraram os pratos da balança que controla as estações. A prosseguirem nesta voracidade, dali para a frente, só se ouviriam falar em chuvas ou secas, em secas ou chuvas. É preciso respeitar a ordem da Criação, adverte.
Assustados, os homens se despedem com votos de que a mal afamada burocracia nacional não espere uma nova catástrofe para enviar os recursos pedidos. E prometem refrear os colonos, em sua pressa por riquezas. Se puderem.”
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A valsa da medusa, de Valesca de Assis. Porto Alegre: Bestiário, 2024. 120 páginas. R$ 49,90.
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