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Santa Cruz do Sul

“Vai ter muita gente infectada ainda, mas não através de mim”, diz paciente com coronavírus

Foto: Rafaelly Machado

No último domingo, 5, a Prefeitura de Santa Cruz do Sul confirmou o primeiro caso de um paciente com o novo coronavírus na cidade. Em pronunciamento no mesmo dia, o prefeito Telmo Kirst ressaltou que a contaminação foi importada, e não comunitária. A Gazeta do Sul obteve o contato do homem, de 48 anos, que enfrenta esse diagnóstico. Ele aceitou conversar com o jornal desde que não fosse identificado.

O caminhoneiro, natural de Paraíso do Sul, veio com a família para o Vale do Rio Pardo há 13 anos em busca de mais oportunidades e melhores condições de vida. Em Santa Cruz, ele trabalhou na maior parte do tempo como motorista de uma empresa, até ser demitido há três meses.

Desde então, a rotina longe de casa, no comando de um caminhão, se intensificou. Na última viagem, para Imbituba, em Santa Catarina, o caminhoneiro ficou estacionado em um posto para conseguir carga e voltar ao Rio Grande do Sul. No entanto, após ter contato com outros motoristas, de diversas regiões do Brasil, os sintomas começaram a aparecer. Em uma conversa franca, o homem descreve passo a passo a sua rotina e detalha como tem sido a sua jornada desde o retorno a Santa Cruz do Sul,
no dia 24.

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ENTREVISTA

Paciente contaminado, 48 anos, caminhoneiro

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Gazeta do Sul – Onde o senhor acredita ter pegado o vírus?
Paciente – Estava em Santa Catarina a trabalho. Sou caminhoneiro. Trabalho com cargas em geral. Faz anos que eu “subo” (vou para Santa Catarina). É minha rota. Fiquei alguns dias em um posto, pois fiquei aguardando carga para poder descer, vir para casa com o caminhão cheio, para não perder a corrida. É um hábito comum de caminhoneiro, ficar em posto, em restaurante e oficinas. Comecei a sentir um mal-estar ainda lá. Quando cheguei em Santa Cruz do Sul, descarreguei, larguei o caminhão, cheguei em casa e já peguei o carro. De imediato fui buscar atendimento, fui atrás de ajuda.

Lá em Santa Catarina, em Imbituba, onde fiquei, o boato era que algumas pessoas estavam contaminadas, mas que não sabiam. Eu, na época, não tinha esse conhecimento, mas dias depois foi comprovado que eles estavam infectados. Esses outros caminhoneiros com quem eu tive contato, que estavam com a Covid 19, já estão recuperados, todos já voltaram a trabalhar. Fui também a São Francisco do Sul e ao porto, mas acredito que o vírus tenha sido propagado em Imbituba, pois os outros motoristas de lá também deram positivo.

Como foi o atendimento? O senhor foi direto ao ambulatório?
Fui no posto de saúde do Bairro Cohab e não havia médicos. Como não tive atendimento, busquei o ambulatório. Foi bem rápido, não havia muitas pessoas. Cheguei e logo fui atendido. Eu tinha dor de cabeça, dor no corpo, diarreia, sem paladar, não tinha fome para nada, e muita tosse seca. Sentia uma falta de ar, um aperto no peito quando fazia algum movimento ou alguma atividade de mais intensidade. Comecei a sentir isso enquanto lavava a carreta, lá pelo dia 20 de março. Fazia um leve movimento, uma força para limpar, e já ficava sem força, sem fôlego.

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Não é só pelos outros, é pela família. Não adianta, tenho de ter consciência da doença. Antes de ter o diagnóstico, eu já me mantive isolado no quarto, por consciência própria. Só recebo a comida na porta. Mal vejo minha família.

E a rotina, como tem sido?
Eu não tenho muito horário. Como todo caminhoneiro, acabo tendo horas alternativas. Tem dias em que de noite estou acordado, de manhã e de tarde acabo dormindo, é assim. O organismo ainda está se adaptando. Faz parte. Quando viajo, chego a ficar 30, 40 dias sem ver a minha família, fora de casa. Tenho de evitar o contato para não transmitir, para o bem de todos. Meu único contato é com o meu cachorro, que vem me animar.

Como o senhor tem acompanhado tudo isso, as notícias, os boatos de que o teriam visto em supermercados, andando pelo Centro?
Tenho evitado televisão, minha preferência é pelo rádio, que escuto volta e meia. Não tenho acessado a internet, são muitas histórias, boatos sem cabimento. As pessoas não têm preocupação com os demais, falam muitas inverdades.

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Tem gente que me viu no mercado, outros me viram no Centro, e não sei onde. As pessoas nem sabem quem eu sou. Como elas podem apontar e afirmar que me viram? Ninguém me conhece, eu não estava na cidade. Desde que cheguei, estou trancado no quarto, não tenho contato nem com a minha família, mal vejo esposa e filho.

As únicas vezes em que saí de casa foram para ir em consultas no Poliesportivo, no ambulatório. Em casa, minha rota é do quarto para o banheiro, do banheiro para o quarto. Fico até receoso em conversar (com a Gazeta do Sul), pois não é todo mundo que entende. Aqui em casa ninguém sai para a rua, com a ressalva de quando tenho de ir em alguma consulta. Mas, fora isso, todos em casa.

O povo da região (do bairro) sabe da minha condição, sabe que eu estou me cuidando. Há muita discriminação. Se na próxima semana eu estiver bem, já curado, e quiser sair, as pessoas começarão a olhar atravessado, ninguém quer chegar perto. Tem muito disso por aqui.

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Como é feito o acompanhamento?
Todos os dias a vigilância epidemiológica me liga para saber como estou, o que estou sentindo, se passaram as dores. Perguntam dos familiares, falam com eles também, questionam se algum apresentou sintomas. Todos os dias. Em alguns dias chegamos a conversar duas vezes, uma pelo início da tarde e outra à noite, mas nunca falha, sempre entram em contato.

Muitas pessoas tentaram contato comigo, políticos e pessoas da Prefeitura. Conseguiram meu contato por amigos, e no fim me ofereciam ajuda. O que eu quero é evitar essas fofocas, que eu estou na rua, que eu não estou me cuidando.

Muitos me procuram por politicagem, querendo mostrar apoio. Eu não posso falar mal da Prefeitura; houve algumas falhas, é humano, até por ser algo novo, que requer cuidado. No Poliesportivo fui bem atendido; a doutora que me atendeu entra em contato com a minha esposa e sempre pergunta como estou. A vigilância também sempre telefona; todos os dias fazem contato direto comigo.

Como é o lugar onde o senhor está?
É um quarto pequeno, com cama, guarda-roupas, uma mesinha e um sofá para que eu possa me sentar. Quando vou no banheiro, meu filho e a esposa saem, vão para outra parte da casa, onde eu não tenho contato. Depois que eu uso, faço minhas necessidades, minha esposa se protege, e vai fazer uma limpeza, uma desinfetação no local, para que o vírus não fique ali. Para evitar o contágio do novo coronavírus.

Como é ter o coronavírus, receber o diagnóstico?
Eu estava apavorado. A primeira semana foi a pior de todas. Eu tinha muita dor, por todo o corpo, e diarreia. Fiquei assustado, em pânico. Depois já começou a aliviar um pouco. Esse medo me levou a buscar mais vezes atendimento, quando eu piorei. Agora estou bem. Fiz na terça-feira, 7, uma tomografia, um raio-X do pulmão. De acordo com os médicos, está tudo “ok”. Na verdade, estou só por prevenção, para ficar mais uns dias. Estou curado, acredito eu. Ainda tenho bem pouca tosse, é quase nada; mas, por conta disso, vou ficando resguardado para curar bem. A princípio,
já venci o vírus.

Fui quatro vezes no ambulatório. Na última, os profissionais de saúde entenderam que eu devia ser submetido ao teste do novo coronavírus, no dia 30. O teste é bem rápido, incômodo, mas não dói. Eles usam uma espécie de varetas e raspam na boca e no nariz.

Quanto aos sintomas, falam que a gente só sente após os cinco primeiros dias; comigo foi diferente. Eu senti logo no segundo. Era muita tosse. Quem sente algo, eu reforço, procure ajuda e se isole para não passar para ninguém.

Desde o primeiro atendimento, a equipe de vigilância epidemiológica tinha conhecimento da sua situação, como possível contaminado?
Na primeira consulta, como eu tinha todos os sintomas, em estado, digamos, avançado, eles me pediram para já ficar em isolamento. Como uma precaução. Mas para eles era uma suspeita ainda.

Qual a condição da sua família hoje? Esposa e filho trabalham? Ganham algum benefício?
Eu sou caminhoneiro, sou autônomo, dirijo para outra pessoa. Não tenho salário, só comissão. Se trabalho, eu ganho; se não trabalho, não ganho nada. Agora estou sem. Eu trabalhava para uma empresa, três meses atrás. Desde então, venho seguindo nessa função, faço fretes e trago encomendas para a região. Antes do diagnóstico, eu estava fazendo bicos com o caminhão.

A Prefeitura me deu uma dose de tamiflu, um remédio caríssimo, de mais de R$ 200,00. Todos os remédios que eu precisei até agora consegui pela farmácia da Prefeitura. O primeiro foi o tamiflu, depois o paracetamol. No ambulatório me indicaram a dipirona. Na última semana, quando voltei a consultar, fizeram uma injeção e me deram um (medicamento) para dor no corpo, que aliviou o desconforto e minimizou a diarreia.

Hoje (quarta-feira, 8) paguei aluguel, estamos a zero praticamente, usando o cartão de crédito e tentando jogar as contas para frente. Eu tenho uma sobrinha que mora aqui perto, ela vai no mercado para nós, deixa as compras no portão para que meu filho e a mulher busquem. Vamos ver o que vai acontecer.

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Como o senhor hoje (quarta-feira, 8)? Recuperado?
Eu sou hipertenso. Emagreci cerca de 12 quilos nesses dias que estou em casa. Sou obeso. Minha alimentação tem sido sopa, canja, nada muito elaborado, nada pastoso. Não tinha muito apetite; além disso, sofri muito com a diarreia.

Eu tive contato com pessoas infectadas no dia 20, há 20 dias. Ainda não fiz nenhuma contraprova, um outro exame que ateste que estou curado; apenas a tomografia do pulmão. Essa tosse vem sumindo. Terça estava pior, hoje (quarta, 8) já está bem menor. Faz quatro dias que não sinto dor no corpo.

O isolamento lhe permitiu uma reflexão, algum sonho para sair do papel?
Sonhos eu tenho muitos, mas sou realista; sou pobre, não tenho muita opção, muita escolha. Então o negócio é se recuperar, levantar, sacudir a poeira e tocar tudo de novo. Não há o que fazer.

No começo do ano, eu e minha esposa tínhamos a meta de juntar dinheiro para comprar uma casa. Hoje nós pagamos aluguel. Já era difícil juntar dinheiro antes, imagina agora. É mundial esta crise. Vamos lutar, não tem o que fazer.

Minha esposa teve o contrato rompido por dois meses. Tem aquela lei que permite essa alternativa. Ela trabalha em um restaurante que está fechado. Ela vai encaminhar o seguro-desemprego dela; eu, na verdade, também encaminhei esse direito, consegui esta semana pela internet.

Empatia é o melhor remédio contra o novo coronavírus

Caro leitor, este aqui é o relato de um jornalista. Na conversa que tive, por telefone, com este homem, busquei a todo momento me colocar no seu lugar e me aproximar. Procurei ser transparente e trazer conforto para que o nosso bate-papo fluísse. Em muitos momentos, ele me relatou o medo, não só da doença, mas também do julgamento da comunidade; por esse motivo, pediu sigilo.

Assim como ele, outros milhares de brasileiros estão sendo valentes e lutando contra essa pandemia. Não basta ter de enfrentar sintomas que castigam o corpo e afetam a estima; esses pacientes ainda sofrem com boatos. Por isso, caro leitor, peço para que não compartilhe notícias falsas, não acredite em qualquer mensagem de grupo de conversa, mas que compartilhe empatia. Ao nos colocarmos no lugar do outro, entendemos sua limitação e buscamos ajudá-lo. Com amor, informação e responsabilidade, vamos vencer a pandemia. (L.F.)

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