Desde a fundação, em 1849, a Colônia Santa Cruz atraiu uma série de viajantes, em especial os de origem germânica. Quando em visita ao Sul do Brasil, estes, ainda no século 19 (mas também nas primeiras décadas do século 20), vinham conferir como viviam os conterrâneos que para cá haviam migrado. Nem bem meio século de existência da comunidade havia sido alcançado quando chegou o pastor Alfred Funke.
Nascera em Wellinghofen, junto a Dortmund, em 22 de abril de 1869, e não tinha 30 anos quando se fixou, ao lado da esposa, em Rio Pardinho, no interior de Santa Cruz, em 1897. Permaneceu na localidade por cinco anos, e a partir dela testemunhou a chegada ao século 20, ficando na região até 1902. Porém, não deixou de viajar por todo o interior gaúcho, pelo Brasil inteiro e até para o exterior. Tão logo voltou à Alemanha, de imediato publicou, ainda em 1902, em Leipzig, o livro Aus Deutsch-Brasilien (Do Brasil-Alemão), jamais traduzido para o português. São 287 páginas sobre Santa Cruz.
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Seguiu publicando memórias e ficção ao longo de décadas, até falecer em Friedenau, Berlim, em 9 de outubro de 1941. Uma das obras, Brasilien im 20. Jahrhundert (Brasil no século 20), de 1927, é considerada um dos melhores relatos de viajantes já escrito sobre o Brasil. Novamente, inédito em português. É desse livro que o professor e historiador Martin N. Dreher, em gentileza e parceria, traduziu para a Gazeta do Sul, com exclusividade, um trecho das lembranças de Funke sobre a região. É uma homenagem especial da Gazeta do Sul aos 144 anos de emancipação de Santa Cruz do Sul.
História do Pastor Alfred Funke no período em que esteve na cidade
Quando cheguei à Colônia Santa Cruz, junto ao Rio Pardinho como ‘alemão recém-saído da casca’, imaginava que os agricultores alemães também deveriam sofrer, de quando em vez, de saudades da querência. Pois um alemão recém-saído da casca ainda carrega consigo todo um pacote de sentimentos e concepções em relação às quais legítimo agricultor das picadas dá risadas.
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Na época visitei meu vizinho de então, Jakob Scherer, homem esforçado e inteligente que possuía propriedade considerável e a mantinha em ordem e cultivada. O vizinho Scherer recebeu-me amavelmente e fez breve passeio comigo. Primeiro passamos pelo quintal atrás da casa de pedra caiada de branco, separada por área plana de capim que servia de potreiro, distante da estrada. Muro de pedra erguia-se ao longo da estrada. No cimo da casa arrulhavam pombas brancas e limpavam suas penas, no pátio ciscavam galinhas e pavão se pavoneava, enquanto galinhas de angola gritavam seu eterno ‘patak!, patak!’ e os gansos grasnavam concorrentes abaixo no riacho.
Os galpões da propriedade que outrora serviram de primeira morada estavam repletos de espigas de milho, nas pocilgas dos porcos havia gordos animais, enquanto porcos e porquinhos soltos cavavam e escavavam à sombra das laranjeiras. Junto à cerca de madeira da horta caseira cumprimentei a senhora vizinha que mirava satisfeita seus canteiros de verduras, e cheguei à plantação propriamente dita.
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Campos de alfafa espalhavam-se em verde suculento, o milho estava amarelo, a cana de açúcar balouçava qual junco altaneiro, a mandioca apresentava as folhas de verde escuro em forma de dedos presas a hastes vermelhas, as morangas e melancias amadureciam nas ramas entre os pés de milho, o arroz que dobrava as espigas aguardava a foice e os campos de tabaco já colhidos, pois os fardos já estavam pendurados nos galpões, aguardavam novo plantio; avançamos subindo em direção à mata virgem que cobria as montanhas.
E, lá de cima, o velho apontou com sua mão calejada e nodosa em direção ao vale repleto de bênçãos, para o potreiro cercado no qual vacas e cavalos pastavam, para sua linda propriedade, para sua terra que se estendia do alto do morro até o vale junto ao distante rio prateado, e seu rosto brilhava orgulhoso, quando calmamente falou: “Tudo isso me pertence, ao Jakob Scherer, que outrora peregrinou com bolsa de couro e bengala pelo mundo que não lhe reservava mísero pedaço de chão – e aí ainda era para mim ter saudade da querência? Não, senhor. Eu amo a pátria alemã. Mas o torrão que conquistei com minha própria mão da mata bravia, esse amo muito mais. Esse é minha verdadeira querência.”
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Nada disse acerca dos calos que tinha nas mãos, testemunhas de longa, incansável luta com mata bravia e todos os inimigos do agricultor, da formiga ao gato do mato. Pude, então, ver com os próprios olhos o que o colono alemão que é colocado na floresta tem que realizar, se pretende progredir; desde o dia da primeira machadada até a festa da cumeeira da casa cômoda de tijolos que é praticamente o anúncio da prosperidade alcançada pelo agricultor.
Desde então, esboço sorriso compassivo quando, em casa na querência alemã, ouço muito espírito que se pretende empreendedor dizer querer ir para a floresta para se tornar “fazendeiro”; vivendo ante os portões de Berlim talvez tenha seis cabeças de alface e sete girassóis em sua horta e que com base nessa sua sabedoria agrícola se considera especialmente vocacionado para cultivar bananas e abacaxis na mata brasileira, pegar colibris e papagaios. Pois bananas, abacaxis, colibris e papagaios estão relacionados ao Brasil assim como o conhaque à cerveja.
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Câmera fotográfica é indispensável, rifle Suhl ou escopeta, pois como se haveria de caçar tigres e macacos? E o “agricultor tropical” recém-saído do forno que, em casa, junto a sua mesa de taverna já está a prometer o primeiro fardo de tabaco, fica muito e pesarosamente surpreso, quando finalmente tem que trabalhar como senhor e proprietário em sua nova e recém- adquirida colônia com machado e foice, produzindo espaço para sua primeira roça, quando em sua primeira cabana de emergência feita de troncos de palmeira e de palmas vem a conhecer as alegrias da primeira agricultura “tropical”.
Contudo, e talvez o melhor nessa descoberta fatal, é que ele não pode mais retornar, é que agora ouve: te vira! Mostra que és camarada autenticamente alemão! E consola-te com o fato de que os outros, que se encontram sob bom teto, no início não estiveram em situação melhor que a tua, talvez até pior!
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E ele procura por auxiliares fortes, lenhadores. Sozinho não consegue derrubar a mata. Pois esses gigantes que invadem o céu, cujos galhos e ramos entrelaçados com centenas de cipós não são qual lisas faias e abetos que se derruba com serra e machado sem perigo na floresta alemã. Aqui, na selva brasileira, tem que se aprender a primeiro derrubar a mata. E muito homem valente se machucou quando da queda de uma dessas árvores gigantescas, quando a árvore derrubada, impedida por fortes cipós, caiu em outra direção que a planejada.
Mas, finalmente, o emaranhado de troncos e galhos está no chão, finalmente a faixa entre a mata derrubada e o matagal não atingido que serve de proteção contra o fogo para a mata selvagem pode ser limpada e o sol resseca os louros, grápias, angicos, batingas e outros nomes. E se o vento é favorável e o céu está bem claro, o fogo é ateado nos gigantes da floresta derrubados e a chama vermelha vai devorando a confusão, o fogo crepitante pula de tronco em tronco; chora e assovia, range e explode, uiva e corre qual tormenta, crepita e racha e a fumaça se alça ao céu como a que sai de terrível altar sacrificial. Cinza cobre após dias de queimada o solo calcinado, sobre o qual a vegetação rasteira foi consumida, tocos de árvores se erguem lúgubres e desconsolados, galhos semiqueimados encontram-se como restos de imensa fogueira entre os tocos, tem início a limpeza dos maiores empecilhos, e na cinza, sem levar em conta os restos das árvores, o colono deposita os primeiros grãos de milho, os primeiros feijões.
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E o solo da mata virgem lhe agradece. Durante séculos a queda de árvores e o apodrecimento das folhas cobriram esse solo com húmus de um metro de profundidade que produz vinte, trinta colheitas de milho sem rodízio de solo ou adubação. Mas com a segunda colheita também cresce a erva daninha, vêm as formigas que a queima destruíra, apresentam-se todos os inimigos do agricultor, do pulgão que devora as jovens plantas do tabaco até os bandos de verdes papagaios que pilham as espigas de milho, e o bugio preto que é dos ladrões mais atrevidos.
O colono tem que trabalhar incansavelmente. O sonho do “agricultor tropical”, do “fazendeiro” há muito se foi. Dia após dia, o feijão preto é posto à mesa e não é sem razão que a capacidade de comer todos os dias feijão com arroz e farinha é designada de pressuposto básico da vida colona. E quando o primeiro tabaco está na lavoura, quando sob o sol tórrido de janeiro tem início a poda do tabaco, quando a pessoa atormentada está no meio dos arbustos cercados por ar sufocante quebrando os brotos das flores, para que a força do crescimento vá para as folhas, quando corre o suor e o suco gosmento cobre mãos e braços, ele sabe que é gostoso encher o cachimbo com fumo de colheita própria, mas é muito mais cômodo comprar pacotinho de tabaco picado na venda do que depositar o primeiro fardo de tabaco de sua lavoura na balança do vendeiro da floresta.
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A natureza, os humores do tempo, as pesadas tormentas se lhe tornam conhecidas em sua linguagem original. O que é uma tempestade, uma chuva lá em casa em comparação à pesada tempestade na mata virgem brasileira! – O grito estridente da araponga, do “ferreiro da mata”, o anunciou no emaranhado, as galinhas d’água gritaram, as formigas se amontoaram nervosas, moscas cinzentas zumbiram, os gansos se apresentam extremamente agitados – tudo é indicativo da tempestade que se avizinhava, e os bugios gritam muito alto. A gritaria dos macacos soa qual raivoso e distante trovão na mata fechada.
O colono observa o céu, no qual se apresenta nuvem estreita e profundamente cinzenta com bordas prateadas. Rugido distante perpassa o silêncio. Os pássaros silenciam. Sopro de vento atravessa o calor escaldante e o bafo sufocante do solo fervente entre as hastes do tabaco. “Tormenta vem aí”, diz o vizinho experiente que corre em direção a seu galpão de tabaco. Pois não demora muito até a primeira pancada do temporal chegar.
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Som silencioso, raivoso passa por sobre as copas da mata. O primeiro trovão ameaça como se fosse rugir de onça faminta. Sombra vem do oeste por sobre a encosta do morro. Qual ressaca pesada movimentam-se os cimos das árvores. Preto-azulada a parede de nuvens se ergue, incandescente, em chamas. Rugido e gemido distante se ergue como revolta iminente de povo raivoso. Surdas batidas ecoam entre raios na planície. O sol se esconde atrás de lúgubre véu, seus raios pálidos aparecem como costelas de leque aberto à beira de nuvens azuladas. Alta, cada vez mais alta, entremeada por breves raios, ergue-se a parede que surdo troveja. Escuridão cobre mata e rio. Cada vez mais rápidos corusqueiam pequenos raios como serpentes que se esgueiram nas árvores.
Os gritos dos grilos, o berreiro dos macacos some no rugido da mata. Sobre o espelho verde-escuro do rio corre a tormenta, revolvendo a profundeza que busca galgar os juncos e espinheiros. Ali – raio corusca, azul e brilhante! – Um estouro como se explosão de espingarda fosse e chicotada! Chorando e resfolegando, choramingando e berrando, assoviando e gritando ruge a tempestade nos cimos que se dobram e inclinam, depois jogam os galhos que correm para o alto e, outra vez, inclinam os galhos, assim como homem desmaiado deixa cair seus braços. Mais céleres e rápidos seguem os raios, interrompidos por trovões. Qual finos cipós descem ao longo da verde parede da mata. Qual longas raízes do prazer aparecem entre os troncos.
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Luz mágica de cor azulada clara, que cega, envolve tudo em brilho tenebroso, sobrenatural, terrível. A isso acresce a tempestade tresloucada, destruidora, ululante, o gigante da floresta já quebradiço tomba, batendo nos galhos da vegetação rasteira. Então começa a chover. Gotas pesadas, isoladas formam bolinhas no pó da terra ressequida. Seguem-se espessos vapores, qual salvas de canhão jogadas contra a mata e a plantação, fustigadas por tempestade gritante, iluminadas por raios azul-cinzentos do fragor que diminui. Ruge e flui, corre e vem aos cântaros, como se mar atravessasse um dique sem qualquer defesa. Ondas vermelhas de barro encapelam o rio que sobe, pouco a pouco sobe sua torrente, sempre mais alta. A chuva cai uniforme. Por mais tempo, mais distante, profundo, urra o trovão como o leão após o salto, quando segura a presa sob as patas.
Não há mais o que fazer no dia de hoje. Quando a chuva continua a cair, quando cada regato se transforma em arroio caudaloso, quando o rio cobre as margens, quando troncos desenraizados disparam em seu leito na direção do vale, quando as abóboras gigantes, amarelas são arrancadas das ramas e boiam aos milhares na água rumo ao vale, não é nada agradável encontrar-se sob o teto do primeiro abrigo improvisado do colono.
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Se antes havia o sol escaldante, agora é a chuva aos cântaros que passa inclemente pelas frestas do pobre telhado e que mergulha, em cores não desejadas pelo jovem colono da floresta, o romantismo do “agricultor dos trópicos”. Mas o colono aprende a aceitar também tais dias, armar-se de um fatalismo que faz parte da vida na mata virgem assim como o arroz faz parte do feijão. Pois, alguma vez, virá o dia quando estará sentado com sua casa de alvenaria e admirará o tempo através dos vidros das janelas, indiferente, seja ele bom ou mau. Até lá talvez tenha aprendido muita coisa que outrora nem sequer imaginava. Os anos de aprendizado do colono são anos duros.
Tradução a partir do alemão: Martin N. Dreher
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