Redação de jornal, assim como ocorre nas demais plataformas de comunicação, é lugar de adrenalina. Parte-se de um planejamento prévio para não omitir ou deixar de cobrir os principais acontecimentos e temas de interesse da sociedade naquele momento, mas todos os dias são imprevisíveis. É do DNA do jornalismo.
Não raro, os fatos se sobrepõem ao roteiro desenhado. E, nestes momentos, o que prevalece mesmo é o talento, a superação, a capacidade do improviso.
Vou retroceder no tempo e desembarcar em algum dezembro do início dos anos 80. Véspera de Natal. As publicações anteriores da Gazeta do Sul já haviam noticiado projeções de vendas do comércio, falaram do horário estendido para as compras, da programação das igrejas para celebrar o Natal, do reajuste do IPTU, da eleição da nova mesa diretora da Câmara de Vereadores, da necessidade de economizar água porque o Rio Pardinho estava agonizando, da operação de fim de ano da Polícia Rodoviária para vigiar as estradas e etc e tal. Ah, e já havia discussões em torno do preço do fumo para a venda da safra logo mais.
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A edição de Natal, como de praxe, dedicava dezenas de páginas a mensagens de empresas e instituições a seus clientes e parceiros, histórias de leitores falando de seus natais inesquecíveis, das ações de solidariedade que amenizavam perdas e o vazio de pessoas pouco lembradas.
Chegara a hora de liberar a capa para impressão. Mas faltava algo essencial: a manchete, a principal chamada de uma edição tão especial.
O editor era o Guido Ernani Kuhn. Pessoa singular, de rara capacidade e muito perspicaz, não se convencia com nenhuma sugestão da equipe. Foi quando irrompeu na redação o Ernani Aloísio Iser. Homem do rádio, com uma voz grave inconfundível, foi logo dando seus pitacos.
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“O que temos de manchete de capa para amanhã? – ele quis saber. Ninguém se manifestou. “Como assim”, – protestou. “Vocês não têm manchete? Por que não colocam aí ‘De repente, é Natal’?”
Não sei se foi por respeito da equipe, se não havia algo mais factual que surpreendesse os leitores, ou se realmente se firmou convicção de que aquela havia sido uma boa sacada. Verdade é que a Gazeta circulou com uma manchete que, por muitos anos – até hoje não esqueci – era evocada em todos os natais na redação do jornal.
Tento entender a magia que o Ernani colocou naquelas palavras para sobreviverem por décadas na memória de tanta gente. Por certo não seria o anúncio de que era Natal. Mas o “de repente” deu outra conotação para aquela singela elaboração.
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Sugere que somos atropelados pelos compromissos, pelo trabalho estafante, e nem percebemos que já estamos às vésperas do Natal. Pode significar que nos preocupamos com tudo – com o presépio na casa, com as luzinhas na fachada, os presentes para os filhos, os afilhados e a todos que amamos, com a contagem regressiva para as férias – mas esquecemos do aniversariante, o Menino Jesus.
Ou seria algo visionário escrito para o nosso tempo: “de repente”, teremos um Natal muito diferente. Vamos precisar evitar tantas reuniões familiares, abraços e encontros, apartados pela ameaça de um vírus traiçoeiro, mas que nos impõe uma atitude mais responsável com a nossa vida e a dos que nos cercam. E a dar abrigo, mais do que nunca, à esperança, à superação e à solidariedade.
Talvez neste 2020, seu Ernani (de saudosa memória, assim como o mestre Guido) sugerisse algo como: “Apesar de tudo, é Natal”! O Salvador que torna a nascer, luz que nos guia, magia que não se esgota.
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Feliz Natal com saúde a todos!
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