Benhur Luiz Maieron *
Especial para a Gazeta do Sul
benhurmaieron@yahoo.com.br
Desbravar a Amazônia, em uma cicloviagem de mais de 10 mil quilômetros, foi algo que sempre esteve nos planos de Benhur Luiz Maieron, 66 anos. O militar, capitão da reserva, é natural de Sobradinho. Desde 1997 reside em Brasília, Distrito Federal. Embora não seja atleta profissional, completou recentemente mais um ciclo de viagens de bicicleta, desta vez justamente perfazendo a rota Brasília– Transamazônica–Brasília.
Maieron conta que o interesse por viajar de bicicleta teve início aos 39 anos, após ter descoberto que um grupo de ciclistas de Sobradinho fizera o percurso até a Patagônia. Foi o incentivo de que precisava. Nos últimos anos, ele completou mais de 28 mil quilômetros sobre duas rodas, conhecendo diversos estados e países que fazem fronteira com o Brasil.
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“No Exército, participei de algumas manobras com os blindados próximo da fronteira com a Venezuela, mas, por questões políticas internacionais, não podíamos chegar muito próximo. O máximo permitido eram uns 20 a 40 quilômetros de distância. Sempre fui louco para conhecer e, ao ler uma matéria sobre os ciclistas da minha cidade de origem, tomei coragem, me preparei e fui”, explica.
Casado, pai de dois filhos, avô de um neto (outro deverá nascer até o próximo mês), Maieron disse que não pretende parar de se aventurar. Realizou quatro viagens ciclísticas longas, a primeira em 1994, de Manaus até a Venezuela (2.000 km); a segunda em 1997, Manaus/Bolívia/Brasília, (4.820 km); depois em 2013/2014, Brasília/ Oiapoque/Chuí/Brasília (11.640 km); e a última em 2020, Brasília/ Transamazônica/ Brasília (10.076 Km).
Agora, a bike será aposentada. Os percursos passarão a ser feitos de motocicleta. “De bicicleta, esse foi o encerramento. Era um sonho. Eu já fiz uma cruz no Brasil, fui de Leste a Oeste, de Norte a Sul, e a idade está pegando. Agora, de moto, enquanto eu estiver vivo estarei andando. Dentro de alguns dias irei para o Acre de moto, e vou passar também pelo Mato Grosso. Em novembro pretendo ir para o Sul, e uma de minhas paradas será em Santa Cruz do Sul, onde pretendo visitar os amigos da Gazeta”, anuncia. Acompanhe agora o relato deste aventureiro pela Amazônia.
O roteiro
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O começo
No projeto de percorrer a rodovia BR-230 Transamazônica, de bicicleta, havia três deslocamentos distintos, em sequência: de Brasília a Lábrea (AM), de Lábrea a Cabedelo (PB), cidades localizadas nos estremos oeste e leste da via; e de Cabedelo a Brasília, fechando o círculo. No entanto, uma malária contraída no meio do caminho provocou a interrupção da viagem por quase um ano.
A partida, em Brasília, ocorreu em 2 de agosto de 2019, com um itinerário-padrão de deslocamento: Barra do Garças, Cuiabá, Cáceres, Comodoro, Vilhena, Porto Velho, Humaitá e Lábrea, onde a Transamazônica termina. No primeiro dia de setembro, teve início o deslocamento pela maior rodovia brasileira no sentido leste-oeste. Dentro do Amazonas, a estrada é de terra, com 831 quilômetros, exceto em alguns trechos urbanos asfaltados, até chegar à divisa do Pará. Plana e praticamente sem curvas, é boa de pedalar, com abundância de água em toda a extensão. O grande contratempo é a poeira levantada pelos veículos, que paira no ar durante muito tempo. No Pará, a via muda totalmente, tornando-se extremamente irregular, com aclives e declives íngremes, que parecem não ter fim.
O pior trecho está entre Jacareacanga e Itaituba, um verdadeiro suplício, onde caminhões carregados não conseguem vencer as ribanceiras. Era impossível subir pedalando ou descer em velocidade, devido ao perigo do cascalho solto, pois o revestimento é de piçarra. Os raros trechos relativamente planos também exigem cautela. Assim, a média diária de deslocamento é muito baixa. Com uma semana dentro do Pará, começam os mal-estares, que foram se intensificando com o passar dos dias. Eu só tomaria conhecimento do motivo ao interromper a viagem e regressar a Brasília, dias depois. Duas semanas antes de chegar a Uruará, dia 2 de outubro, vivi um verdadeiro infortúnio: falta de apetite, dificuldade em evacuar, dor de cabeça, tontura, fadiga extrema, tremores, pés inchados, furúnculo nas nádegas, hemorroidas e 11 quilos a menos.
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Na cidade, descansei por alguns dias e fiz exames hospital municipal. Com os resultados em mãos, que não indicavam a real causa dos sintomas, medicamentos receitados e sugestão de cirurgia para uma das patologias, a continuidade da jornada tornou-se totalmente inviável. E a triste decisão de encerrar a viagem foi tomada, após 67 dias na estrada e 4.618 quilômetros pedalados desde Brasília. A frustração foi amenizada um pouco pelo fato de terem sido percorridos mais de 90% do trecho de terra da Transamazônica, de quase 1.600 quilômetros.
Para não pagar excesso de bagagem no voo de retorno a Brasília, quase todo o material, como bagageiro, ferramentas, material de acampamento etc., foi doado às pessoas da cidade. A bicicleta foi encaixotada, e providenciei passagem aérea para o trecho Santarém/ Brasília. Viagem de ônibus de Uruará a Santarém num dia e no outro, o voo de regresso para casa. Em Brasília, internação por seis dias no Hospital das Forças Armadas, dois deles em UTI, onde se descobre, por agentes da Vigilância Epidemiológica do DF, a doença que provocou todo o contratempo: malária. Quase um mês de tratamento com cloroquina e primaquina, mais dois meses de acompanhamento e enfim a boa notícia: curado. A ideia inicial seria a “aposentadoria” no ciclismo de longa distância. Mas, meses depois, pedalando com o vigor de um adolescente numa rua próxima de casa, o “vírus” do inconformismo pela desistência falou mais alto e imediatamente veio a decisão de concluir o percurso.
O recomeço
A bicicleta foi reequipada com novos alforjes, bagageiros e outros itens, desmontada e encaixotada para o voo Brasília/Santarém e para o trajeto de ônibus Santarém/Uruará (PA). No reinício da viagem ciclística, em 18 de agosto de 2020, tive a companhia do filho Douglas, que comprou em Uruará uma bicicleta para fazer o percurso de terra de 106 km até Medicilândia (PA). Daí para a frente, segui sozinho. Nessa fase, todos os pernoites foram em hotéis, pousadas ou dormitórios, ao contrário da anterior (2019), em que colchonete ou rede foram utilizados em postos de combustíveis, casas (habitadas ou abandonadas), reservas indígenas ou varandas de bares, restaurantes e comércios.
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Dia 25 de setembro de 2020, às 11 horas, cheguei a Cabedelo (PB), para a tradicional foto junto à placa do Km 0: “Rodovia BR-230 – Aqui começa a Transamazônica”. Assim, eu realizava o velho sonho de percorrer de bicicleta, de ponta a ponta, essa mítica rodovia, mas tão pouco conhecida. Nela percorri 4.433 quilômetros, 1.569 de terra, em 65 dias efetivamente pedalados, no ano passado e neste.
Terminada a etapa principal, restava o retorno para casa. Dois dias de descanso em João Pessoa, com apoio da sobrinha Márcia Barbosa, eis-me novamente na estrada, agora em percurso já conhecido de outras viagens de carro ou moto: Caruaru, Garanhuns, Tucano, Seabra, Ibotirama, Correntina, Posse, Formosa e Brasília, com chegada em 21 de outubro de 2020. Desde o início, no ano passado, foram percorridos 10.076 km em 118 dias efetivamente pedalados e 28 pneus furados. Durante todos esses meses na estrada, a alimentação foi somente aquela encontrada no trecho. Nada de suplementos, energéticos ou outras porcarias artificiais.
A rodovia
A BR-230 Transamazônica se estende de Cabedelo (PB) a Lábrea (AM), num total de 4.260 quilômetros. Em números aproximados, tem 2.600 quilômetros asfaltados e 1.660 de terra. No trecho de terra, praticamente inexiste tráfego de veículos no período mais chuvoso (meses próximos a fevereiro). Em compensação, no menos chuvoso (antes de agosto), a poeira é constante e, em alguns trechos, formam-se atoleiros de pó, chamados “puaca”, que derrubam ciclistas/ motociclistas como se lama fosse.
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A construção da rodovia na Região Amazônica começou em 1970 e a inauguração foi em agosto de 1972, com presença do presidente Médici. Balsas na travessia de cinco rios ainda são usadas. Os trechos dela no Nordeste já existiam desde longa data. Há sobreposição de designação em alguns trechos, como a BR-230 e a BR-101 ocupando o mesmo leito. Atravessa sete estados: Paraíba, Ceará, Piauí, Maranhão, Tocantins, Pará e Amazonas.
A ocupação da estrada
Muitos acreditam ser a Transamazônica uma trilha abandonada que liga “o nada a lugar nenhum”; outros, que ela se transformou num deserto, com margens devastadas e todo ano gerando imensos incêndios. Nada disso! A rodovia, em seu trecho de terra entre Lábrea (AM) e Medicilândia (PA), com extensão de 1.600 quilômetros, está revestida de piçarra e sua conservação, exceto em poucos quilômetros, pode ser considerada excelente, com várias equipes fazendo a manutenção. Seus ocupantes provém de diversos estados e se dedicam a atividades como transporte, comércio, agricultura, pecuária, extração de madeira, garimpo e pesca.
Cidades a partir de 20 mil habitantes são consideradas “grandes”, como Lábrea, Humaitá, Apuí, Jacareacanga, Itaituba e Uruará, todas no trecho de terra. Existem muitos povoados, vilas ou habitações isoladas, perto uma das outras, em torno de 5 a 10 quilômetros. Não há longos trechos desabitados, exceto dentro do Parque Nacional, que é área de preservação. As fazendas são raras e pequenas, e no período chuvoso a atividade agrícola é pouca ou nenhuma. Na parte asfaltada, entre Cabedelo (PB) e Medicilândia (PA), há várias cidades de grande porte, como Marabá, Estreito, Carolina, Balsas, Floriano, Picos, Pombal, Patos, Campina Grande e João Pessoa.
Áreas de preservação
O Parque Nacional da Amazônia fica a oeste de Itaituba (PA). Dentro dele, a Transamazônica tem extensão de 120 quilômetro e não há nenhuma habitação, apenas selva. Recebi recomendações de não pedalar nele, por ser um santuário de animais selvagens, especialmente onças.
Também escutei relatos, logicamente exagerados, sobre andarilhos que foram devorados por elas. Nos 20 anos em que morei no Amazonas, participei de inúmeras missões militares na selva e nunca tive contratempos, mas lá eu estava em equipe e com um fuzil na mão. Agora, sozinho e armado apenas de um facão… Mas um motivo mecânico me levou a fazer a travessia da reserva embarcado: a corrente da bicicleta patinava na coroa e seria impossível chegar a Itaituba pedalando.
Consegui vaga numa picape cabine dupla que faz transporte regular na região, pagando a tarifa tabelada de R$ 120,00; o transporte da bicicleta não teve custos. Em Itaituba, as peças desgastadas foram trocadas. Ao longo da rodovia, também no Nordeste, existem outras áreas de preservação.
Pelo trajeto
Índios – A Transamazônica atravessa a reserva indígena da etnia Tenharim, num trecho de 58 quilômetros, a meio caminho entre Humaitá e Apuí (AM). Esses índios frequentaram muito os noticiários anos atrás, devido a um ilegal e extorsivo pedágio montado por eles. Em 2013, assassinaram três pessoas inocentes, um vendedor, um professor e um funcionário da Eletrobras, acusados de terem atropelado um índio encontrado morto na estrada. Num ritual místico de pajelança, um pajé teve a “visão” de que um carro preto fora o causador do atropelamento. Para azar dos três, o veículo deles, o primeiro a passar pela aldeia após a pajelança, era preto. O comentário geral, no entanto, é de que o índio, bêbado, caiu da motocicleta que pilotava. Houve revolta da população, casas e prédios de apoio a indígenas foram incendiados e o governo federal teve que intervir. O pedágio foi suspenso. Durante a travessia pela reserva, não tive problemas.
Calor – O calor foi constante em todo o trajeto, desde a partida até o retorno para casa. Na Transamazônica, por ser uma rodovia no sentido leste/oeste, o sol está sempre sobre ela e não há sombra de árvores. O consumo de água é enorme, tanto para beber quanto para molhar o corpo. Na Amazônia há abundância de rios e igarapés, com água que não necessita de tratamento para consumo, Porém, no Centro-Oeste e Nordeste a deficiência hídrica é enorme, exigindo-se o transporte de muitas garrafinhas de água.
O melhor amigo – No Pará, pernoitei numa fazenda que não produz nada. Seus ocupantes, todos homens, dedicam-se à extração de madeira. Café da manhã tomado, continuei a viagem. Uns 500 metros à frente escutei barulho de animal de porte no mato, ao lado da estrada. Fiquei apreensivo, pois quem anda na selva passa o tempo todo pensando em onças. De repente, o animal pulou na estrada: era um dos cachorros da fazenda que resolveu me acompanhar. Tentei, em várias ocasiões, fazê-lo voltar, sem sucesso. Cerca de 20 quilômetros adiante, parei no boteco da D. Maria, às margens do igarapé Jacaré II, para almoçar. E o cachorro, reconhecido pela proprietária, sempre junto. Ele me acompanhou por mais 2 quilômetros, quando entrou na selva e não o vi mais. Deve ter voltado à fazenda.
Manutenção mecânica – A manutenção preventiva da bicicleta foi adotada como norma, com troca de peças ainda em boas condições. Isso até chegar a Porto Velho. Daí para a frente, a dificuldade de encontrar oficinas e peças passou a ser constante. Ao contrário das motocicletas, que existem em abundância, as magrelas não fazem muito sucesso nas pequenas cidades da região Norte e Nordeste.
Apoio recebido – O povo do Norte/Nordeste é simples, receptivo e prestativo. Em quase todos os contatos, a empatia era automática. O meu pedido era sempre o mesmo: água. Claro, eu tinha um “trunfo”: traje adequado, capacete, bicicleta equipada com alforjes, bagageiro e bandeiras. Tudo isso chama a atenção, e em várias ocasiões fui parado e entrevistado. Mas a admiração vinha mesmo ao mostrar o mapa do roteiro e as cópias dos jornais com publicações das viagens anteriores. Em várias casas, recebi convite para almoçar, jantar e até pernoitar.
Aposentadoria – Eu já havia feito três longas viagens ciclísticas, desde 39 anos de idade: Manaus/Venezuela, em 1994 (2.000 km); Manaus/Bolívia/Brasília, em 1997 (4.820 km); e Brasília/Oiapoque/Chuí/Brasília, em 2013/14 (11.640 km), e havia decidido que esta seria a última. Um encerramento com chave de ouro, sem dúvida, visto que era o meu grande sonho. A partir de agora, estrada só de motocicleta (minha grande paixão) ou carro.
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