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Uma entrevista exclusiva com o filósofo francês Luc Ferry

Mesmo os que não têm o hábito da leitura de textos filosóficos – sendo, contudo, leitores – devem ter ouvido falar de Luc Ferry. Prestigiado filósofo, professor e escritor francês, reconhecido defensor do humanismo secular, é consultado com frequência por especialistas do mundo todo em temas de forte atualidade, como foi o caso do atentado à revista Charlie Hebdo, em Paris. Um de seus méritos consta em ter trazido a filosofia de volta ao cotidiano, numa linguagem mais acessível, menos hermética.

Aprender a viver, apresentado como “tratado de filosofia para uso das novas gerações”, é uma de suas leituras referenciais. Em dezenas de outros títulos, indagações como “o que é o amor?”, “o que é uma vida bem-sucedida?” ou “o que é o homem?” estão presentes. São perguntas que, afinal, nos fizemos cada um de nós. E as reflexões de Luc talvez nos ajudem a respondê-las com mais segurança ou com mais propriedade.

Aos 64 anos, completados no primeiro dia do ano, ex-ministro da Educação da França no governo de Jean-Pierre Raffarin, entre 2002 e 2004; foi inúmeras vezes premiado e é professor em importantes universidades, com destaque para a de Paris. A partir de correspondência trocada por e-mail desde 2014, acabou por aceitar conceder entrevista ao Magazine. Diante das questões propostas, reflete sobre a conjuntura social na Europa e sobre a atualidade de ideias centrais de alguns de seus livros. Ao final, leva a pensar na educação moral, diferente da educação escolar: “É na primeira infância, com os pais, que se aprende ou deveria aprender a polidez, as bases da ética, a distinção entre justo e injusto, em qualquer sentido que se defina. Se este não é o caso, o mal está feito”, refere.

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A tradução das respostas, enviadas em francês, é de Simoni Gollmann.

ENTREVISTA

LUC FERRY

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Escritor e filósofo francês

“Voto popular não tem a ver com justiça”

Magazine – Sr. Luc Ferry, em vários de seus livros o senhor enfatiza o quanto a filosofia, o cultivo da reflexão, é fundamental para que o homem aprenda a viver com mais harmonia. Diante do cenário de agressões, de intransigência e intolerância que vemos na Europa e em vários lugares, principalmente no Oriente Médio e na África, a filosofia segue dando conta de tanta angústia e de tantas ameaças?

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Luc Ferry – Sejamos claros e não se engane: a Europa é o continente mais doce, pacífico e democrático do mundo. Digo a velha Europa, aquela do Ocidente, que se tornou enfim democrática depois a Segunda Guerra Mundial. Em outros termos, a violência vem de outros lugares, essencialmente dos conflitos com o fundamentalismo religioso, que refratam junto de nós. Kant já dizia num pequeno texto de 1784, que eu traduzi em francês, “O que são as Luzes”: a civilização europeia, e o Brasil aí está muito ligado, por sua história e por sua cultura, é a civilização que “saiu da infância”, é a civilização da idade adulta, aquela onde homens e mulheres também têm direito à autonomia, não somente política, mas na vida privada. É, por exemplo, a civilização do casamento escolhido, o casamento do amor, em oposição ao casamento imposto aos filhos pequenos – haverá centenas de milhões ainda neste século, na Índia, no Paquistão, na África, basta ler sobre este item nos relatórios das Organização das Nações Unidas (ONU) sobre os casamentos forçados. Então, deste ponto de vista, conseguimos estabelecer a harmonia da humanidade europeia com ela mesma. O problema é que o nosso Estado nos apresenta custos muito altos, e que nos fazem correr o risco de sermos engolidos no plano econômico pelos países emergentes, a Índia, a China… e o Brasil, que avança magnificamente!

Quando o senhor escreveu e publicou “Aprender a viver”, como um guia de filosofia para os novos tempos, próximo a 2006, tínhamos cenário um tanto diferente do de agora, em 2015, quando reações étnicas contra muçulmanos em vários países da Europa projetam um tempo de atritos e de ataques mútuos. O que se precisaria aprender a mais, agora, em relação a quando o livro foi lançado? O senhor acrescentaria algo a esse livro?

O problema não é o das “reações étnicas contra os muçulmanos!” É necessário parar de inverter tudo. Onde você viu jovens católicos entrar em mesquitas para massacrar os muçulmanos com um Kalashnikov? Em lugar algum! Isso não existe, e eu não sei nem do que você fala. Há na França entre 5 e 8 milhões de pessoas de origem ou cultura muçulmana, e se não houvesse a loucura do [grupo terrorista] Daech, tudo aconteceria perfeitamente bem. O verdadeiro problema é a ascensão do anti-semitismo e do anti-cristianismo de origem islâmica e a refração de conflitos externos sobre o velho continente. Alguns judeus franceses não se sentem mais em segurança na França e partem para Israel. E uma minoria, que continua crescendo, de jovens islâmicos fanáticos querem ir fazer a Jihad na Síria. Esse é o problema, e não as reações “anti-muçulmanas”, que revelam uma fantasia.

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O Brasil, de onde lhe escrevo, tem sido mencionado como país multicultural e que lida relativamente bem com as multiplicidades. No entanto, mesmo aqui, onde se parecia ensaiar o desenvolvimento, a corrupção e a falta de projeto de governo (um governo de esquerda) conduz uma vez mais a protestos. Como avaliar a eficiência do sistema democrático em tais circunstâncias, quando mesmo governos envolvidos em escândalos e corrupção acabam sendo reeleitos pelo voto popular?

Seguidamente, o voto popular não tem nada a ver com justiça. Numerosos eleitos na França, que foram condenados pelo Poder Judiciário, foram reeleitos porque o povo julga diferentemente do que os juízes. É uma pena, mas infelizmente é comum em todas as democracias…

O senhor tem acompanhado de alguma forma os acontecimentos no Brasil e na América Latina, tem obtido informações a respeito? Como o senhor enxerga o Brasil no espaço político contemporâneo?

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Sim, interessa bastante o Brasil na França. É um país amigo e nós somos muito próximos, culturalmente, muito mais próximos do que com os Estados Unidos, por exemplo. Não quero entrar em brigas políticas, mas o que observo é que o Brasil está, apesar de todas as dificuldades que se poderia evocar, em pleno andamento. É um país que vive, que se move, e que vai progredir de maneira formidável nos próximos anos.

Os ataques à sede da revista Charlie Hebdo, em Paris, no início deste ano, evidenciam a crueza ou a crescente rudeza das reações de grupos fundamentalistas em relação a críticas ou a confrontos. Como nossa sociedade precisa aprender a lidar com tais grupos e com suas formas de ação?

É preciso não confundir muçulmanos e islamismo, religião e fundamentalismo. Um dos problemas atualmente é justamente lutar contra o fanatismo evitando confusões, e não é fácil. O islamismo fanático se parece um pouco com o nazismo, ao menos em cinco pontos principais. Inicialmente, um grande senso de humilhação, que o fundamentalismo vem desenhar na história da colonização, como a Alemanha de Hitler havia encontrado no Tratado de Versalhes. Em segundo lugar, uma miséria social e humana, aquela dos países devastados pelas guerras comunitárias, dos subúrbios pobres, similares em alguns aspectos ao marasmo da crise de 1929. Depois, uma ideologia forte, plena de significados e de um futuro brilhante, virgem, ou de retorno à época de ouro, em face a Estados laicos e neutros, deliberadamente desprovidos de ideologia oficial. Em quarto lugar, o fundamentalismo compartilha com o nazismo uma visão comunitária, ou, melhor dizendo, “holística” do mundo: o fanático não conhece o indivíduo, somente “membros”, no sentido biológico do termo, partes de um todo orgânico que não possuem nenhuma autonomia pessoal. De repente, a guerra opõe uma comunidade à outra numa perspectiva onde a pessoa não existe, não é mulher, nem criança, nem inocente que existe. É necessário erradicar a comunidade oposta “sem salvar os pequenos”, como já diziam os nazistas. Todas essas ideologias culminam numa verdadeira ojeriza do Iluminismo europeu, uma fúria hostil que, no nazismo, se enraizava no Romantismo alemão, mas que no fundamentalismo de hoje se cristaliza em Israel, braço armado do Ocidente em terra de Islã, um país democrático culpado de todos os pecados que acabam de ser listados.

Em mais de uma ocasião o senhor enfatizou que é o amor que dá sentido à vida. Como o senhor compreende o amor, nesse caso, e como situar esse sentimento em dias tão marcados pelo medo e pela revolta?

Como a consciência infeliz, tão bem descrita por Hegel, nós temos tendência a perceber na história os que caem ou morrem, quase nunca os que surgem ou ganham vida. Daí nossa propensão ao pessimismo, propensão ainda mais forte ao contrário, ao otimismo, que dá sempre um ar meio bobo. É verdade que as grandes causas mortíferas e os grandes motivos nacionais do sacrifício coletivo, violento e massivo, foram liquidados. Quem gostaria ainda hoje, ao menos na velha Europa e nos países ligados à sua cultura, morrer por Deus, pela pátria ou pela revolução? Ninguém ou quase ninguém. Mas onde está o mal? Na verdade é a melhor notícia do milênio. Champanhe! Tratando-se de guerras nacionalistas, como poderia eu lamentar, eu que fiz meus estudos na Alemanha, num tempo no qual meu pai se diria aos meus professores, e vice-versa? Quanto ao absurdo mortal do maoísmo, com suas dezenas de milhões de mortes em condições atrozes, quem, excluindo alguns intelectuais senis roídos pelo desejo de torná-las interessantes, não poderia se alegrar com sua liquidação? E se diz, portanto, que se vive a era do vazio, do desencantamento do mundo. De jeito algum! Não creio nisso. Aí está a ilusão por excelência desta consciência infeliz que ama tanto não amar. O que nós vivemos não é a anulação do sagrado, o eclipse de valores, mas sua encarnação em um novo rosto, o da humanidade. Pergunte-se sinceramente: por quem ou por que você estaria pronto a arriscar sua vida? Em outros termos, o que você considera sagrado, não no sentido religioso do termo, como digno de sacrifício? Resposta da maioria: é o humano que é sagrado, o próximo, mas também seu oposto, não as abstrações vazias da religião e das políticas tradicionais. Nós vivemos no Ocidente do nascimento de um novo rosto da humanidade, que não é mais aquele de Voltaire ou de Kant, dos direitos humanos e da razão, destas luzes que levaram a um vasto projeto de emancipação, mas também ao imperialismo e à colonização. Trata-se, ao contrário, de um humanismo pós-colonial e pós-metafísico, de um humanismo da transcendência do outro. Vamos precisar de novas categorias filosóficas para pensar sobre as armadilhas e as esperanças. Mas é pouco dizer que o jogo vale a pena.

A educação, a oferta de mais conhecimento e de ilustração cultural, em seu entender, podem contribuir para tornar o ser humano menos agressivo e mais receptivo à diversidade de pontos de vista e de opiniões? Como universalizar o acesso a esse tipo de conhecimento?

A educação moral não é uma questão de sabedoria, conhecimento, cultura. Ela pertence a outro registro. A prova? Os nazistas não eram nazistas porque não conheciam a história, ou não tinham educação. Heidegger foi sem dúvida o intelectual que mais soube do seu tempo, o mais profundo pensador de seu tempo, e nós sabemos, agora, graças à publicação de seus famosos “livros pretos”, que o que eu escrevi há mais de 20 anos foi correto, que ele era hitleriano e profundamente anti-semita. Além disso, a Alemanha dos anos 1930 era o país mais civilizado do mundo, a casa de Bach, Schubert e Beethoven, de Goethe e Kant, aquele cuja escola e sistema universitário foram os mais desenvolvidos e os mais eficientes. Nada ajudou, isso não o impediu de cair fortemente, com o apoio de uma grande maioria da população, na barbárie. O mesmo ocorre hoje no Islã radical. Bin Laden era tudo menos inculto, e líderes de organizações terroristas são recrutados frequentemente entre cientistas, advogados e estudiosos. Compreendo perfeitamente que esta descoberta possa incomodar. Ele contrapõe toda a herança do Iluminismo, a ideia querida de nossos enciclopedistas, Voltaire na ponta, que o progresso do conhecimento levaria a civilização consigo. O século XX mostrou-nos que não era o caso, que aos nazistas, bolcheviques ou islâmico não faltam, necessariamente, nem cultura nem educação. Vamos colocá-lo de forma mais clara: pode ser um camponês analfabeto e um cara bom, como pode ser um estudioso e um bastardo. O que deve levar-nos a refletir sobre o que é a educação moral. Ela realmente não tem relação com o ensino, com o conhecimento, as habilidades. Ela não vem principalmente a partir da escola. Mesmo se a encontrar com um mestre exemplar, como mostra a trajetória de um Albert Camus, isso pode representar um papel menor. É, antes de tudo, na primeira infância, portanto com os pais, que se aprende ou deveria aprender a polidez, as bases da ética, a distinção entre justo e injusto, em qualquer sentido que se defina. Se este não é o caso, o mal está feito, e, se acontecimentos exteriores não venham a corrigir a trajetória, o chamado “dever de memória” não vai mudar nada.

Em quais temas o senhor tem estado envolvido, em termos de pesquisas e de reflexões, mais recentemente? Há novos livros por chegar às livrarias agora em 2015?

Sim, escrevi recentemente um pequeno livro sobre capitalismo moderno, intitulado “A inovação destrutiva” e ficarei feliz que ele chegue em breve ao Brasil, um país que adoro e onde me encontro seguidamente. Obrigado a vocês.

TI

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