Durante 231 dias, entre 1980 e 1989, as salas de aula das escolas estaduais ficaram fechadas no período letivo. As carteiras, antes ocupadas, permaneceram vazias. O quadro, até então preenchido com conteúdo didático, estava limpo, dando a impressão de que nem sequer havia sido utilizado recentemente.
Sem a movimentação de alunos pelas salas e corredores, o sentimento era de que as férias haviam sido prolongadas. Mas não. Nesse período, os professores ficaram nas instituições, que se tornaram “quartéis generais” de um importante movimento que mudaria o sistema de ensino gaúcho.
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Ao longo dos anos 1980, milhares de educadores da rede estadual saíram das classes e foram às ruas para reivindicar mudanças na educação e nos direitos da categoria. Ao longo das seis greves realizadas no período, os docentes se mantiveram unidos e solidários, demonstrando que, mesmo fora das salas, continuavam ensinando. “Tínhamos consciência que a nossa resistência, a nossa ida para a rua, também seria uma aula de cidadania para os nossos alunos”, afirma a presidente do Centro dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul (Cpers-Sindicato), Helenir Aguiar Schürer.
Das escolas estaduais de todo o Vale do Rio Pardo, incluindo Santa Cruz do Sul, docentes fretaram ônibus para ir a Porto Alegre durante as assembleias gerais, realizadas no Ginásio Gigantinho. Também marcaram presença nas manifestações em frente ao Palácio Piratini, trocando o conforto de suas residências por barracas montadas provisoriamente na Praça da Matriz.
Passados mais de 30 anos das manifestações, professores de Santa Cruz do Sul que participaram ativamente dos atos ao longo da década relembram momentos marcantes da época e refletem sobre o legado das ações.
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No fim da década de 1970, o Brasil parecia estar sentado em cima de um grande barril de pólvora prestes a explodir. Após o fracasso do “milagre econômico”, o regime militar estava desgastado. Com o anúncio da abertura “lenta, gradual e segura” da política nacional, anunciada pelo então presidente Ernesto Geisel (1974–1979), diversos setores da sociedade viram uma brecha a ser explorada na luta pela reivindicação de direitos.
O ano era 1979, e movimentos sindicais aproveitaram a oportunidade e iniciaram greves em todo o Brasil. No Rio Grande do Sul, então governado por José Amaral de Sousa (Arena), destacaram-se as promovidas pelo magistério estadual. “Essa insatisfação e a necessidade de conquistarmos novamente a democracia influenciaram muito nas realizações das greves dos professores no período”, avalia a presidente do Cpers, Helenir Aguiar Schürer.
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Na primeira paralisação da categoria, que durou 13 dias, pleiteavam o piso salarial e um acréscimo superior a 30% – além dos 40% já aprovados pela Assembleia Legislativa. Também contestaram os critérios para contratações fechadas que tinham validade entre os meses de março e dezembro, desamparando os docentes em janeiro e fevereiro.
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O ato surtiu efeito: 20 mil concursados foram nomeados e obtiveram 70% de reajuste salarial parcelado. Foi o estopim que faltava e que motivou uma série de greves realizadas pela categoria durante a próxima década.
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Em outubro de 1980, 16 meses após a primeira grande paralisação da categoria, milhares de educadores integrantes da rede estadual voltaram às ruas para mais uma greve. Dessa vez, foram 21 dias. A definição ocorreu após o governador descumprir o acordo estabelecido no ato anterior.
Com uma adesão maior em relação à iniciativa passada, os educadores puderam assegurar os reajustes salariais. Também garantiram abono de regência, 2,5 salários mínimos e 25% do orçamento do Estado para a educação.
Outras conquistas foram a inclusão dos docentes no Conselho Estadual de Educação, até então restrito, e novos critérios para as promoções do quadro de carreira. Diante das vitórias obtidas, a greve encerrou-se no dia 18 de novembro.
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Porém, em 1982, Amaral de Souza novamente descumpriu o acordo da greve. E assim os professores, mobilizados pelo Cpers, voltaram a fazer greve, que durou oito dias. O ato seria marcado pelas repressões contra os educadores, que ocorreram ao longo de toda a década.
Nas capas dos principais jornais gaúchos, o governo deixou explícito que os professores que não dessem aulas teriam seu ponto cortado. E os contratados que não comparecessem à escola para trabalhar poderiam ter os contratos rescindidos.
Elisabete Irene Dreher, de 65 anos, iniciou as atividades no magistério no início dos anos 1980. Por participar ativamente da maioria dos atos, vivenciou castigos administrativos para desmobilizar os manifestantes. Porém, mesmo no período em que era contratada – ou seja, não possuía estabilidade, como os concursados –, resistiu graças ao apoio e o encorajamento dos companheiros. “Apesar de ter sofrido algumas punições, como corte de salário, prejuízos na questão das promoções e outras coisas não tão boas que aconteceram em alguns movimentos, não me arrependo de ter participado de nenhuma das atividades sindicais”, afirmou.
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Três anos depois, o então governador Jair Soares (Partido Social Democrático) – escolhido como líder do Executivo gaúcho nas eleições diretas para governador em 1982 – não respeitou o acordo da última greve. Assim, o Cpers reuniu os professores no Gigantinho.
Estima-se que mais de 30 mil docentes ocuparam o ginásio. Conforme os presentes, era um “mar de pessoas”. “Não tinha como transitar nas arquibancadas”, recorda a professora da Escola Estadual Murilo Braga de Carvalho, Teresinha de Lima Rosa, presente nas manifestações ao longo de toda a década.
Com o grande número de participantes, a paralisação durou 60 dias, a mais longa até então. As greves eram previamente organizadas – nesse caso, antes de as aulas serem interrompidas durante dois meses, a comunidade escolar foi comunicada.
Entretanto, nem todas as famílias apoiaram a iniciativa. Teresinha viveu momentos de tensão ao explicar aos pais por que os alunos deveriam ficar em casa. “Mas nunca furei a greve em função das ameaças”, afirmou. Mesmo afastados das funções, os professores permaneceram durante o período nas escolas. “Não ficamos passeando”, garantiu. O tempo era aproveitado para estudos, palestras, acompanhamento das notícias sobre a greve e debate das propostas aos governantes.
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Tais atividades foram essenciais para a construção de uma unidade entre os colegas. “Foi necessário nos mantermos sempre unidos para ninguém desanimar e desistir”, afirma a educadora Elisabete Irene Dreher. A unificação da categoria resultou na presença massiva de grevistas em atos no interior do Rio Grande do Sul e na capital gaúcha. Diante da histórica mobilização, o governo garantiu o 13º salário e eleições para diretores das instituições. Até então, a escolha era feita pelo governo. Além disso, 35% da receita precisava ser destinada à Educação.
Para a educadora Júlia Rejane de Souza, 71 anos, que na época atuava na Escola Estadual de Ensino Fundamental Gaspar Bartholomay, as conquistas foram muito além da questão salarial. Uma das mais importantes foi a autonomia, não só para escolher a direção das escolas, mas para gerir recursos. Até então, o governo os enviava para distribuir entre as regiões. No entanto, eram escassos, e muitas vezes os próprios professores compravam a merenda e até material de limpeza. “Há sempre um leque de reivindicações, pois não basta receber o pagamento, mas precisávamos ter boas condições de trabalho”, afirma.
Eleito governador do Rio Grande do Sul no ano anterior, Pedro Simon (PMDB) assumiu o cargo com expectativas altas entre os docentes, que votaram em peso no político após as promessas de valorizar a categoria.
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Porém, ainda no início do mandato, veio a frustração. Conforme representantes da categoria, Simon não cumpriu a lei que determinava o piso de 2,5 salários mínimos, contrariando o discurso de anos anteriores ao avalizar a legislação. “No momento em que ele tirou o que havíamos conquistado após muita luta, nos sentimos apunhalados”, relata o atual diretor da Escola Estadual de Ensino Fundamental Felippe Jacobs, Renato José Araújo.
Mais uma vez, a categoria saiu pelas ruas de todo o Rio Grande do Sul entoando o hino Avante, professores de pé. Iniciava-se a mais demorada greve da década, que duraria 96 dias. O fato de o Brasil já estar vivendo um regime democrático beneficiou as manifestações. “Foi uma longa greve, de muita luta, no auge da rebeldia da nossa categoria, vital para alcançar as vitórias”, afirmou a presidente do Cpers-Sindicato, Helenir Aguiar Schürer. Atos marcantes ocorreram durante os três meses de paralisação. Entre elas, a marcha com 40 mil pessoas do Colégio Júlio de Castilhos até o Palácio Piratini.
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Outro evento memorável foi o acampamento na Praça da Matriz. Pelo menos 75 barracas foram armadas para abrigar docentes de todo o Estado, que se revezaram ao longo da greve. Entre eles, estavam os de Santa Cruz do Sul, que testemunharam cenas de solidariedade que ficariam eternizadas em suas memórias.
Para Teresinha de Lima Rosa, uma das mais marcantes foi o apoio de moradores do entorno da praça. “Senhoras faziam bolinhos, levavam lá e ficavam conversando com a gente”, relembrou. Enquanto estava acampada, encontrou uma professora do interior do Estado. Ela estava olhando em direção aos policiais militares que ficavam próximos ao acampamento. Então, virou para Teresinha e disse. “Você sabia que ali naquela fileira eu tenho um filho?” Embora não consiga recordar o nome da colega, a professora nunca mais esqueceu a fisionomia daquela mãe, que lutava pelos seus direitos enquanto o filho fazia parte do aparato de segurança para conter os manifestantes.
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No ato, as sinetas escolares ganharam um novo significado. Eram tocadas durante a manhã para acordar os acampados. “Incomodou tanto os governantes que se tornou um símbolo da nossa categoria, servindo como um despertar para a educação“, afirmou a presidente do Cpers-Sindicato.
A paralisação encerrou-se sem a conquista dos 2,5 salários. Porém, garantiram a manutenção do Plano de Carreira, paridade dos aposentados e a readmissão de demitidos.
Em 1988, os professores voltaram a declarar greve após entregar, em agosto, um pedido de reposição de 61,65%; 15% de ganho real e aumentos mensais. O governo apresentou como contrapartida uma antecipação de 70%. Mas a proposta foi rejeitada em assembleia geral, realizada no dia 19 de outubro.
Assim, mais uma vez, foram às ruas. No entanto, no dia 23 do mesmo mês, o Estado apresentou nova proposta, de 96%, além de um cronograma de promoções. A oferta foi aceita e, no dia 27, aprovada pela Assembleia Legislativa. Em nove dias, a greve foi encerrada.
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No ano seguinte, a paralisação voltou a acontecer. Na busca por aumento salarial e por assegurar as conquistas anteriores, ficaram 42 dias. Ainda no início da carreira, a educadora Rejane Maria Nunes Frantz Henn, na época com 18 anos, participou da manifestação. A primeira de muitas, que seriam marcantes não apenas pelos resultados conquistados, mas também pela represália dos governantes.
“Os governos descontaram salários, mesmo tendo havido a recuperação dos dias letivos. Foi necessário buscar a Justiça e, felizmente, tiveram que voltar atrás e pagar os dias recuperados”, recordou Rejane, afirmando que esses governantes jamais serão esquecidos pela categoria.
Foram diversas rodadas de negociação entre o governo de Pedro Simon e o magistério. As relações acirradas, no entanto, resultaram na rejeição de três propostas apresentadas. A situação se agravou após o corte de pagamento, no dia 5 de junho, que durou 14 dias. Mas a pressão levou Simon a recuar novamente. A ação gerou resultados satisfatórios. Entre as conquistas, garantia de 54% de reajuste em três parcelas, não acumulativos; nomeação de 3 mil professores e a agilização de pagamentos.
Na visão dos educadores que participaram das manifestações sindicais ao longo da década de 1980, a categoria teria muitas dificuldades em realizar atos tão marcantes como aqueles de 30 anos atrás.
“Nunca mais vi no magistério a mesma união e solidariedade daquela época”, diz Teresinha de Lima Rosa. Para ela, a categoria está muito acuada.
Para a professora Elisabete Irene Dreher, é necessário que toda a classe faça sua parte e não espere apenas reação do sindicato. “Gostaria muito, mas muito mesmo, que os professores que hoje estão na ativa entendessem o quanto é importante fortalecermos o nosso movimento e o nosso sindicato, que nos representa nas horas boas e nas horas não tão boas”, afirma.
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Ex-diretora do Sinpro/RS e do 18o Núcleo do Cpers-Sindicato, Rejane Maria Nunes Frantz Henn avalia que hoje as formas e o engajamento dos professores e funcionários de escola não são os mesmos da época em que começou a atuar. “Muitos delegam a luta aos dirigentes sindicais, quando o compromisso e o engajamento deveriam ser de toda a categoria”, conclui.
Os atos de 1989 encerraram uma década marcada por seis greves. Mais de 30 anos depois, os professores de Santa Cruz do Sul que atuaram no movimento refletem sobre as consequências dos atos.
Para Júlia Rejane de Souza, a principal lição deixada pelos movimentos é de que os direitos só podem ser conquistados com muito empenho. “Aprendemos que pela mobilização podemos conseguir. E isso nos dava vontade de continuar lutando. Entendemos que não podemos ficar parados e precisamos batalhar, porque não vai cair do céu.”
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Ao lembrar de ver milhares de colegas unidos no Gigantinho para as assembleias gerais, Renato José Araújo não conseguiu conter a emoção. O rosto ficou vermelho enquanto as lágrimas escorriam. “É um momento em que tu sentes que nunca mais esquecerá, pois sabe que ajudou a construir uma página da história de um Estado, de um País. É emocionante lembrar”, afirma.
Para ele, as greves despertaram uma conscientização de luta na categoria, que seguiu reivindicando seus direitos no decorrer da década seguinte. “Nenhum governo vai te dar nada de mão beijada. Tem que lutar por aquilo que tu quer e que tu merece.”
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