Da sacada que fica na esquina mais famosa do Centro de Santa Cruz do Sul dá para ver a cobertura do Túnel Verde em toda a sua glória, além de parte da Praça Getúlio Vargas e da Catedral São João Batista. Mais do que isso, dali é possível sentir o coração pulsante da cidade no tráfego incessante de veículos e pedestres. Com certeza, muito mudou desde sua construção, e o prédio, concebido originalmente para abrigar a sede local do Banco Pelotense, foi testemunha do desenvolvimento admirável pelo qual a cidade passou no último século.
A edificação, à esquina das ruas Júlio de Castilhos e Marechal Floriano, completa 100 anos em 2022. Com área total de 823 metros quadrados, chama atenção por sua arquitetura única, em estilo eclético. A estrutura, que está em terreno de 19,10 metros por 18,10 metros, já abrigou também o Banco do Estado Rio Grande do Sul (Banrisul) e a Exatoria Estadual. Atualmente, nele está instalada a Associação Pró-Cultura, que denominou o espaço Casa das Artes Regina Simonis, em homenagem à artista santa-cruzense.
Em comemoração ao centenário de uma construção considerada por muitos a mais bela da região, a Gazeta do Sul visitou cada cômodo do imóvel para relembrar um pouco das fases deste que é um símbolo ainda ativo da história do município.
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Fundado em 1906 com capital voltado para as atividades agropecuárias, o Banco Pelotense chegou a possuir 38 agências, sendo sete fora do Estado. O contrato para construção da filial de Santa Cruz foi fechado em novembro de 1920 e executado pela firma local Schütz & Hoelzel. O trabalho foi realizado em ritmo acelerado para a inauguração em 1922, tendo como primeiro gerente Guilherme Burmeister.
O banco atingiu seu auge em 1928, com deterioração de patrimônio a partir do início da década de 1930. Apesar de a construção de filiais favorecer o desenvolvimento de uma arquitetura de qualidade, também implicou na imobilização de capitais. A criação do Banco do Estado do Rio Grande do Sul por Getúlio Vargas, em 1928, acarretou na perda do principal cliente do Banco Pelotense. A retirada do capital do governo causou uma crise financeira que acarretou a paralisação das atividades em janeiro de 1931.
Em sua dissertação de mestrado, o arquiteto e professor universitário santa-cruzense Milton Roberto Keller estudou a arquitetura eclética no município. Explica que o ecletismo surgiu no século 19, na Europa, e se manifestou em Santa Cruz entre 1886 e 1929. No período, a cidade ascendia e necessitava de infraestrutura urbana, fazendo surgir um amplo repertório de prédios públicos e privados. “Na segunda fase do movimento em Santa Cruz, se percebe de forma clara que o desenvolvimento econômico alcançado pela região projetou o novo ciclo arquitetônico do ecletismo como norma estética geral”, relata Keller, que hoje preside a Associação Pró-Cultura, mantenedora da Casa das Artes.
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Estes anos são de desenvolvimento na economia e aumento da população urbana, além de crescimento da industrialização e expansão do comércio. Além do prédio do Banco Pelotense, na mesma época se destacaram a construção do Colégio Distrital (na atual Rua Tenente-Coronel Brito), a nova Igreja Evangélica e a finalização da nova matriz, além de residências, prédios comerciais e industriais.
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A Associação Pró-Cultura de Santa Cruz do Sul foi fundada por um grupo de voluntários apreciadores de arte em 1988, com sede inicial no Centro de Cultura Jornalista Francisco J. Frantz, antiga Estação Férrea. Foi em 1994, por meio de um decreto do então governador Alceu Colares, que a associação passou a ocupar o prédio do extinto Banco Pelotense. No ano seguinte, a sede recebeu o nome de Casa das Artes Regina Simonis, em homenagem à artista plástica santa-cruzense nascida em 1900 e que foi a primeira mulher da cidade a ingressar no Instituto de Belas Artes do Rio Grande do Sul.
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Hoje, o local pertence ao governo do Estado, que o cede em comodato à mantenedora da casa, que abriga exposições de esculturas, desenhos e pinturas, além de oficinas, cursos e outros eventos culturais. A arquitetura rica em detalhes foi decisiva para que o edifício viesse a ser tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (Iphae), em 1991. Em 2000, com o apoio da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), foram iniciados restauros do telhado e de algumas salas.
Milton Keller, que está em sua segunda gestão como presidente da Associação Pró-Cultura, conta que o sonho de restauração e readequação do espaço acabou sendo protelado. Entretanto, muitas melhorias foram feitas para resolver questões estruturais da casa nos últimos três anos, incluindo reformas na secretaria, nos banheiros, na iluminação da sala de exposições e em um problema no escoamento da água. “Para o município, essa casa estando aberta é muito importante, e ela conta uma história. Mas sempre dá muita manutenção, por ser um prédio tão antigo”, explica o arquiteto. Também foi criado um Plano de Prevenção e Proteção contra Incêndios (PPCI) para o prédio e instalado um banheiro com acessibilidade.
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O plano original de restauração incluía remover todas as paredes de estuque do último pavimento, a inclusão de um elevador e uma nova escada. O espaço seria utilizado como auditório e seria fechado com uma cúpula. “O que seria viável hoje em dia era remover esse piso, verificar novamente o estado da cobertura, fazer a remoção de todas as janelas, restaurar as esquadrias externas e fazer um grande espaço de múltiplos usos”, relata Milton. A área seria utilizada para exposições, palestras e apresentações.
No momento, a associação aguarda por recursos provenientes da Secretaria de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul (Sedac-RS). De acordo com Keller, o projeto menciona o potencial histórico e a vivência cultural do prédio, a sua importância no imaginário da comunidade e na paisagem cultural da cidade. O valor será utilizado para restauração das fachadas e uma nova pintura externa. Outro objetivo é climatizar os espaços que já são utilizados no térreo.
A partir de 1932, o prédio que havia pertencido ao Banco Pelotense passou a abrigar outro banco: o Banrisul. Um dos funcionários que lembra bem do período é o santa-cruzense Lair Ipê da Silva, o Laia, que começou a trabalhar na agência em maio de 1976. “Com muito orgulho, posso dizer que na época fui o primeiro funcionário negro da agência de Santa Cruz do Sul. A gente tinha muito orgulho, gratidão e alegria por ter o privilégio de trabalhar naquele prédio, com uma arquitetura rica em detalhes”, destaca.
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O bancário, agora há três anos aposentado, guarda com carinho as memórias do período. “Nós tínhamos três pisos: o primeiro tinha a gerência, a retaguarda e a bateria de caixas; no segundo piso trabalhávamos na grande equipe do crédito rural, e ficavam os arquivos da agência; no terceiro piso era a casa do gerente do banco”, relembra. Segundo ele, quando a equipe batia as metas, a gerência pagava uma festa com churrasco para comemorar os resultados obtidos. Os funcionários apreciavam encantados a vista da sacada para o Túnel Verde e o movimento do Centro da cidade.
A criação do Banrisul foi a responsável pelo fechamento do Banco Pelotense e, por ironia, em Santa Cruz foi na sede que havia sido da outra instituição financeira que o Banco do Rio Grande do Sul comemorou seus 50 anos de existência. Lair Ipê lembra da confraternização realizada em 12 de setembro de 1978, reunindo os cerca de 50 funcionários da agência. O banco atuou no local até junho de 1982, quando foi inaugurada a agência da Rua Marechal Deodoro. A partir de 1983, abrigou também a Secretaria da Fazenda e Tesouro do Estado. Hoje, Ipê revisita as memórias do tempo em que trabalhou no local quando passa para conferir as exposições da Casa das Artes
Um dos mistérios que cercam a construção do edifício é a autoria do projeto arquitetônico, já que as plantas da agência de Santa Cruz do Sul nunca foram encontradas. De acordo com Milton Keller, acredita-se que o autor do projeto seja Theo Wiederspahn, que fez várias agências com características similares, incluindo a de Porto Alegre, em 1911, mas não há confirmação. O arquiteto e engenheiro alemão tem entre suas principais obras o Hotel Majestic, atual Casa de Cultura Mário Quintana; o prédio da Delegacia Fiscal, hoje Museu de Artes do Rio Grande do Sul (Margs); e a Agência Central de Correios e Telégrafos, hoje Memorial do Rio Grande do Sul.
Em local marcante da fachada do prédio na esquina, marcando o eixo de simetria sobre a sacada em alvenaria, está um conjunto de estátuas centralizado por Mercúrio. Na mitologia romana, a figura é um mensageiro e deus da venda, do lucro e do comércio. Seu nome tem origem na palavra latina merx, relativo a mercadoria, e suas características são emprestadas do deus grego Hermes, incluindo uma bolsa, sandálias e capacete com asas, uma varinha de condão e o caduceu. O patrono do prédio é o deus da eloquência, do comércio e dos viajantes, além da personificação da inteligência.
A arquitetura do prédio está composta em torno da entrada principal, que se abre para a esquina. Os dois pavimentos possuem altos pés-direitos, acrescentando imponência e monumentalidade à fachada. O primeiro espaço é a sala de exposições, que compreende também o cofre, onde são realizadas mostras menores. Nos fundos ficam os banheiros e um espaço de múltiplos usos com mesas e cadeiras para oficinas. À frente ficam a secretaria da associação e o espaço de atendimento ao público.
A entrada secundária junto à Rua Júlio de Castilhos era a garagem do gerente do banco. O espaço chegou a ser utilizado brevemente por uma loja de artesanato, mas, conforme a legislação de comodato, não é permitida atividade que não seja cultural no prédio e nem cobrança de aluguel. Milton explica que a ideia é realizar uma galeria em paralelo, voltada à captação de recursos para a Casa das Artes, mas atualmente está em aberto algum tipo de utilização do espaço. Acima deste cômodo, uma ampliação do prédio feita no período da Exatoria abriga atualmente o Espaço Acervo Regina Simonis, que contou com uma exposição, em dezembro, de desenhos e estudos da artista que pertencem à Pró-Cultura e são armazenados no local.
Subindo as escadas de mármore, o pavimento superior era a residência do gerente do banco, incluindo salas que foram reformadas pela Unisc e estão em melhores condições, e outras com o assoalho e as aberturas originais, atualmente com a madeira comprometida em função do tempo. Os cômodos do apartamento incluem um gabinete, sala de estar, sala de jantar, e uma série de dormitórios, além da cozinha e banheiros originais com pisos azuis.
Do lado de fora do prédio foi criada uma laje de concreto onde antes havia apenas uma passarela, que dá acesso ao terraço. A escada de ferro leva ao local, onde podem ser vistas as telhas francesas da cobertura.
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