Tu acreditas nisso?

“E a Marisa Letícia, onde está?” A pergunta partiu de um desconhecido que me abordou de repente em frente à superintendência da Polícia Federal do Paraná. Era abril de 2018 e eu estava em Curitiba para cobrir a prisão do ex-presidente Lula para a Gazeta. Ele era um dos muitos curiosos que perambulavam por ali. Sem entender muito bem, lembrei ao cidadão que já havia se passado mais de um ano desde o falecimento da ex-primeira dama. “E tu acreditas nisso?”, devolveu ele. Devo ter feito uma cara de surpresa, pois ele logo emendou, com uma seriedade absoluta: “Não percebeste que era um boneco no caixão? Ela está agora em uma ilha, vivendo cheia de luxos”. Perplexo, até pensei em questioná-lo onde ficaria a tal ilha, a troco de quê a morte teria sido forjada e a origem daquela tese desajuizada, mas acabei por encerrar o papo e sair de perto. Àquela altura, já se haviam inaugurado esses tempos sombrios em que conversar, muitas vezes, não vale a pena.

“Era apenas um doidinho”, comentaram alguns a quem contei essa história. Pode ser. E na verdade, não é de hoje que pessoas se deixam seduzir por crendices fajutas. Lembro-me de, certa vez, ter passado uma tarde inteira com alguns amigos lendo artigos que desmentiam a chegada do homem à lua. Obviamente não entendíamos nada sobre o assunto e sequer fazíamos ideia de quem havia escrito aquilo, mas estávamos convencidos. A internet ainda era uma coisa relativamente nova e a nós, adolescentes, faltava discernimento e maturidade.

Hoje, porém, vemos adultos sãos e esclarecidos fiando-se a todo momento em tramas que não param em pé. O terraplanismo voltou a ganhar seguidores e, nos Estados Unidos, uma invasão bárbara ao Capitólio foi encabeçada por uma comunidade adepta de que pedófilos e adoradores de Satanás infiltrados na elite do país haviam sabotado a eleição presidencial.

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No dia a dia dos grupos de WhatsApp, as falsas teorias não costumam ir tão longe na criatividade, mas são reveladoras de algo que deveria estar nos preocupando e muito: um certo estado de desconfiança generalizada nos entes que, inversamente, existem para nos garantir segurança. Faz parte do modus operandi de partidos e autoridades, quando confrontados com fatos que os constrangem, apelarem a conluios entre instituições como argumento de defesa. Quantas vezes já ouvimos falar nos últimos anos que Ministério Público, Judiciário, imprensa, Congresso, institutos de pesquisa, acadêmicos e cientistas, todos estariam alinhados, ora à direita, ora à esquerda, para atingir alguém? Não raro, a versão ainda é acrescida da ideia de que esse alguém, obviamente livre de qualquer dolo ou propósito escuso, só se tornou alvo porque teve a coragem de confrontar o complô persecutório. Ora, me poupe.

Preocupante que, contaminados pelas paixões ideológicas exacerbadas, estejamos cada vez mais suscetíveis a delírios assim, que ameaçam transformar a sociedade em uma espécie de selva, onde todos se movem por suas próprias crenças à revelia do que a ponderação e a realidade observável apresentam. Para que ciência e imprensa se o “tio do Zap” nos diz exatamente o que queremos acreditar? Não surpreende que hoje vemos pessoas recusando vacinas. Desafio alguém a apontar de qual fabricante ou país era qualquer outro imunizante que tenha tomado ao longo da vida.

Não se trata de eliminar o contraditório ou ignorar equívocos e interesses, que certamente existem. O perigo está em concentrar a crítica de um lado e fechar o olho para o outro e minimizar a importância das instituições em uma democracia. Para projetos messiânicos, um séquito que descarta todo e qualquer fato que deponha contra é um paraíso. A pergunta que devemos nos fazer é: a quem serve a nossa descrença?

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