Se tropeiros ainda existem, devem ser poucos, quem sabe apenas para manter na lembrança esse tempo de incomensurável agrura e resistência. Muitos leitores talvez nunca tenham visto esses personagens, mas eu os vi, com alguns minha infância conviveu e os guarda inesquecíveis na memória afetiva. De longe, tangiam o gado que, em marcha lenta, percorria imensas distâncias até seu destino final. Cansados, os animais se arrastavam como cobras preguiçosas ao longo de estreitos caminhos, admirados pelos curiosos moradores que os viam como atores de uma tela que quebravam sua solidão.
Nosso pai tinha, no interior de Cruzeiro do Sul, açougue e matadouro e comprava gado principalmente de dois tropeiros: Nestor Fernandes, que vinha de Júlio de Castilhos, Jacuizinho e Tupanciretã, e Totonho Lopes, que vinha de Passo do Sobrado. As tropas do primeiro vinham de longe; do segundo, a distância era menor. Calculavam, ou imaginavam, quanto cada açougueiro poderia comprar, adquiriam o gado dos fazendeiros próximos e se punham a caminho.
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À medida que passavam pelos clientes, a tropa ficava menor. O comprador entrava na manada, examinava os animais e escolhia o que queria adquirir. Tudo era definido no olho, não havia balança, estimava-se um presumível peso e assim se fechava o negócio. Ao último açougueiro cabia, sem opção, ficar com o que restava da tropa. Nem sempre era apenas a sobra, uma vez que o tropeiro reservava alguns animais para fazer justiça ao final da fila. Para chegar a isso, se o comprador anterior comprasse dez, escolhia oito, os outros dois eram escolhas do tropeiro.
Conhecendo esse universo, meus brinquedos de infância contavam com algumas tropas imaginárias. Sabugos de milho viravam bois e vacas, pedaços roliços de madeira, com quatro pregos como patas e mais dois como chifres, formavam as tropas dos nossos sonhos. Alguns eram também modelados de barro, nenhum boi de plástico tinha espaço em nossas fazendas e nossos currais.
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Uma das minhas doces lembranças vem da frase do pai “vamos encontrar a tropa”. Montado em meu preguiçoso petiço, presente do Totonho, íamos ao encontro da comitiva, nos misturávamos com eles, tocávamos o gado. Então, a esperada felicidade infantil se apresentava: um peão separava uma parte da tropa, dividia o lote e me dava a honra de conduzir aquela porção de gado cansado, obediente, saudoso talvez dos verdes campos, que ficaram para trás, para sempre. Minhas tropas de sabugos, madeira e barro se tornavam viva realidade, eu me tornava um pequeno rei do gado.
Muitas vezes lembrados romanticamente por cantores e poetas, os tropeiros levavam vida dura, repleta de desafios e dificuldades. Longas jornadas, atravessando vales, montanhas e até rios, às vezes sob sol ardente, às vezes sob chuva impiedosa, em inúmeras oportunidades mergulhados no imenso frio da invernia, quebrando gelo sob as patas dos cavalos, a missão tinha que ser levada a cabo. Em galpões rústicos, estendiam seus pelegos e ponchos para recuperar a energia necessária para o dia de amanhã. A alimentação – arroz, feijão, charque – era improvisada e precária. Não carregavam caixas térmicas, não havia banheiros nas pousadas ocasionais, os banhos eram simulados nos filetes dos riachos da encerra do gado.
A vida deles era árdua, agora eu sei, mas doces são as lembranças que continuam morando em meu coração.
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