Um mês dedicado à conscientização sobre o Transtorno do Espectro Autista (TEA). Trata-se do Abril Azul, que visa tornar os portadores da condição visíveis à sociedade, defendendo a necessidade de compreendê-los e inseri-los no cotidiano.
A iniciativa faz-se necessária diante dos desafios da inclusão. Sobretudo o acesso ao emprego, que, embora assegurado por lei, é limitado.
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Uma recente pesquisa do governo do Estado apontou estimativa do número de pessoas com TEA no Rio Grande do Sul. Trata-se de uma população aproximada de 33.169, a partir do volume de pedidos da
Carteira de Identificação da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (Ciptea), entre junho de
2021 e janeiro de 2025, que foram aprovadas. Destas, 837 encontram-se no Vale do Rio Pardo,
sendo 227 as que possuem o documento em Santa Cruz do Sul.
Os dados mostram ainda os desafios de inserir pessoas com TEA no mercado de trabalho. Dos
5.323 adultos, com 18 anos ou mais, cadastrados no Ciptea, somente 40,56% (2.159) estão trabalhando.
Mais da metade (59,4%, ou seja, 3.164) não estão em uma atividade laboral no momento.
Em meio a esse contexto, autistas que moram em Santa Cruz do Sul descrevem os desafios da inclusão no mercado de trabalho local.
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Na vida acadêmica e profissional, Ellen luta pela inclusão
Psicopedagoga concursada que atua na escola municipal Guilherme Hildebrand desde 2023, Ellen Cristine
Prestes Vivian, 32 anos, teve o diagnóstico de TEA tardio. Natural de Caçapava do Sul, ela possuía desde a infância rituais de organização, sobretudo com os seus brinquedos, além de apego a certos objetos que
não gostava de compartilhar. Na adolescência, passou a apresentar sinais de Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC) e mantinha uma rotina rígida e padronizada para limpeza e organização, o que prejudicava seu estado emocional.
“Por ser diferente, esquisita, eu sofria bullying. Eu era uma pessoa que não interagia, às vezes falava coisas fora de contexto, por não saber o que dizer”, relembra. Porém, ao chegar na fase adulta, foi
transitando na vida acadêmica sem muita dificuldade, o que facilitou o ingresso no mercado de trabalho. Em 2015, concluiu a primeira licenciatura, em Ciências Exatas – Habilitação em Física, na Universidade
Federal do Pampa (Unipampa).
No último ano da graduação, encantou-se pela Língua Brasileira dos Sinais (Libras), a partir do contato com uma professora surda. Especializou-se no tema e passou a dedicar-se ao ensino de astronomia para crianças com perda auditiva. Ainda conquistou o título de mestre (pela Universidade Federal de Santa Maria) e, posteriormente, de doutora (pela Universidade do Rio Grande do Sul) em Ensino de Física.
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Foi durante a sua trajetória acadêmica que começou a perceber características associadas ao autismo. Por volta de 2013, aos 21 anos, passou a estudar na graduação sobre TEA e outras síndromes. Ali, surgiram as primeiras dúvidas de que talvez se enquadrasse. Nessa época, já estava casada e precisava lidar com a bagunça do companheiro perante a sua obsessão por organização.
Ellen comparou-se ao personagem Sheldon Parker, da série The Big Bang Theory. “Até a organização da geladeira eu também fazia, mas por tipo de alimento. Se eu não achar, vai me gerar um estresse ou vou entrar em crise.”
Eis que, aos 27 anos, recebeu o diagnóstico de autista nível 1 de suporte. “Para mim foi um alívio, porque eu me encontrei ali dentro do espectro”, afirma. A partir daí, Ellen passou a direcionar a sua terapia para amenizar o estresse e a ansiedade gerada por questões cotidianas que fogem da rotina – uma vez que os autistas têm muito apego a ela.
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Contudo, o preconceito está sempre à espreita, por vezes mascarado. Não é incomum ela escutar que “não tem cara de autista”. O preconceito também se manifesta quando tem sua capacidade subestimada, além dos julgamentos.
Ao longo de sua carreira, diversas vezes lidou com comentários de colegas devido à dificuldade de não socializar muito no trabalho ou por se afastar, quando impossibilitada de realizar as atividades por
um período devido às crises. “Já ouvi pessoas falando que é desculpa para não trabalhar, que é frescura ou uma bobagem”, ressalta.
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Apesar dos desafios, sobretudo relacionados à empatia, Ellen atua na escola para ajudar alunos. No educandário, trabalha com aqueles que têm dificuldades de aprendizado ou possuem questões emocionais e comportamentais.
Para a psicopedagoga, o ingresso no mercado de trabalho via concurso foi um facilitador. Isso porque, na sua visão, o processo de entregar currículo, participar de entrevista de emprego e estar falando com as pessoas é difícil para muitas pessoas com TEA.
“Eu não gosto de romantismo. Eu sou uma autista que, com todas as barreiras que enfrentei, conseguiu ingressar na academia e no mercado de trabalho. Tem autistas que talvez (e essa palavra é muito forte, mas talvez) nunca vão conseguir”, avalia.
Entretanto, defende que as pessoas diagnosticadas com o transtorno não desistam. “Para nós, é tudo mais difícil. Mas, mesmo que os outros nos desacreditem, confie no seu potencial. Continue a lutar.”
Davi sonha com um mundo perfeito e acessível a todos

Morador do Bairro Universitário, Davi Correa Andreotti, de 22 anos, busca uma oportunidade de emprego em Santa Cruz do Sul. Desde que se mudou para o município, há cerca de um ano, acredita ter tentado
pelo menos seis vezes. Até o momento, conquistou a vaga de soldado de chumbo nos desfiles da Christkindfest. Além de o estimular, a tarefa fez com que enfrentasse um desafio. “Tinha esquecido
do meu medo de crianças. Só me lembrei quando elas vieram correndo na minha direção para tirar fotos comigo”, conta, sorrindo.
Arte é uma das áreas de interesse de Davi, que sonha em cursar inglês para trabalhar no setor cultural ou como tradutor. Enquanto isso, busca uma oferta de trabalho com vendas, em banco ou algo que envolva canto, atuação e desenho. Natural de Eldorado do Sul, sua jornada por um emprego iniciou-se aos 16 anos. Sua primeira experiência foi aos 19 anos, em uma loja de departamentos, como auxiliar de vendas.
“Achei divertido cuidar de várias conversas ao mesmo tempo, explicar para uma senhorinha o que os itens de compra faziam. E vinha muita gente lá para poder conversar comigo, muitas senhorinhas, muita gente mais jovem, muitos adultos”, recorda. Depois da primeira experiência, Davi segue na jornada. No entanto, deparar-se com as portas fechadas na hora de buscar um emprego não é algo esperado.
“Geralmente, no mercado de trabalho, criam uma lista do tipo de pessoa que eles têm que contratar, excluindo todo o resto, independente de se as pessoas têm ou não capacidade para estar na área de serviço. Não excluem só ‘deficientes’, que é o meu caso, mas minorias.”
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Para Davi, as empresas deveriam oferecer oportunidade aos grupos minoritários, manejando-os em áreas nas quais há dificuldade de preencher vagas. No entanto, segundo ele, acabam por barrar essas pessoas, o que não faz sentido no seu ponto de vista. “Acabam se autominando no processo”, avalia.
Dono de uma memória fotográfica, o jovem narra com detalhes o dia em que sua mãe leu o documento no qual constava o seu diagnóstico: autista de suporte nível 1. Ele tinha 9 anos e era fascinado por ficção científica. Com uma imaginação fértil, queria criar um teletransportador.
“Lembro do choque da minha mãe ao ler aquela folha de papel. Ela queria saber por que eu era tão inteligente em algumas áreas, mas demorei tanto para falar e aprender a ler”, recorda. Enquanto buscava chamar a atenção da mãe, tentando puxá-la pela camiseta, ela estava totalmente travada e chorava. Era o desespero por não saber o que fazer. Dois anos depois, ao chegar à pré-adolescência, Davi aceitou o diagnóstico. Isso permitiu perceber seus pontos fracos e, especialmente, suas aptidões.
Percebeu também que o preconceito manifesta-se de diferentes maneiras. Para ele, muitas pessoas não têm noção do que é o Transtorno do Espectro Autista (TEA). Por isso, muitos pensam que ele possui um “nível de retardo” ou um “atraso mental”.
Há ainda a subestimação. Entusiasta da leitura, afirma que já houve casos em que estava lendo um livro (cita William Shakespeare como exemplo) e alguém comentou com surpresa: “Ah, ele sabe ler”.
Para Davi, embora as pessoas pensem que o mundo está mudando e tornando-se mais inclusivo, permanece como sempre foi. “O mundo não estava mudando, mas sim mostrando as presas.”
Embora saiba que não será simples, Davi tem um sonho. Não é algo pequeno ao seu ver, pois se trata de um mundo pequeno, com pouca luz, em que todos os tipos de pessoas se misturam, sem nenhum tipo de pressão. Lá, todos são felizes para perseguir seus sonhos e seguir em frente.
Nova série
A Gazeta do Sul inicia neste fim de semana a série Abril Azul, na qual irá explorar a inserção de
pessoas com TEA no mercado de trabalho em Santa Cruz do Sul. Nas próximas edições, o leitor terá conhecimento sobre a importância da acessibilidade e os desafios da busca por emprego.
Para representantes do Conselho Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Compede), da
Associação Luz Azul Pró-Autismo de Santa Cruz do Sul da Realidade Azul e do Girassol Centro Municipal de Atendimento ao Autista (CMA), a inclusão já uma realidade, principalmente devido à evolução da legislação, mas há muito a melhorar.
As empresas, na visão dos profissionais que atuam para preparar autistas e gestores, precisam avançar para além do discurso e aprimorar as ações internas, por meio da capacitação de equipes e do setor de Recursos Humanos, por exemplo. Neste sentido, o conhecimento acerca do transtorno e de outras
síndromes torna-se fundamental, possibilitando que as empresas adaptem-se às suas necessidades
e deem espaço para que possam demonstrar seus potenciais.
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Há, no entanto, um fator que se torna limitante: são as vagas de emprego reservadas para pessoas com deficiência (PcD). Para os profissionais, tais opções nem sempre acabam contribuindo para a inclusão,
servindo mais para preencher a cota do que inserindo as pessoas com deficiência no ambiente de
trabalho.
Na edição de segunda-feira, 7, a série irá demonstrar que a luta pela inclusão não envolve apenas
autistas, mas as suas famílias. Mães trazem relatos de como o diagnóstico dos filhos mudou as
suas vidas e sua relação com o trabalho.
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