Por volta de 5h30 de 27 de janeiro de 2013, um domingo, o telefone de Nestor Raschen tocou. Era Jossiê Zamperetti Donadel, amigo do seu filho Matheus, de 20 anos. Ele informou o então vice-diretor do Colégio Mauá que o jovem estudante do curso de Tecnologia de Alimentos, na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), havia ido a uma boate na noite anterior, onde tinha ocorrido um incêndio.
Conforme Jossiê, Matheus havia ficado ferido, mas estava sendo atendido no hospital naquele momento. Embora tenso, Nestor acreditava em uma rápida recuperação. “Esse amigo dele disse ainda que seria melhor irmos até lá. Eu e a Núria nos arrumamos para sair. Sabíamos da força e do pulmão do Matheus e pensamos que ele ficaria bem, até por já estar em atendimento. Mas naquela hora, nunca imaginamos a proporção daquilo tudo que tinha acontecido.”
Matheus foi uma dentre 242 vítimas do incêndio ocorrido na Boate Kiss, em Santa Maria, naquela madrugada. Outras 636 pessoas ficaram feridas. As responsabilidades foram apuradas em um processo com mais de 18 mil páginas, que traduz a dimensão e a complexidade que alcançou o episódio, o mais doloroso da história gaúcha.
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Quase nove anos depois, os empresários e sócios da Boate Kiss, Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann; o vocalista da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos; e o produtor musical Luciano Bonilha Leão serão julgados pelo tribunal do júri a partir do próximo dia 1o, em Porto Alegre, sem previsão de término.
O pai de Matheus, Nestor Raschen, recebeu a Gazeta do Sul nesta semana. Mais do que relembrar o triste episódio, falou sobre o orgulho que sente do que o filho fez em vida. Para ele, os quatro réus são uma parte de inúmeros outros atores responsáveis pela maior tragédia da história do Rio Grande do Sul.
A festa “Agromerados” começou às 23 horas de 26 de janeiro de 2013, um sábado, na Boate Kiss, localizada no centro de Santa Maria. O evento foi organizado por estudantes de seis cursos universitários e técnicos da UFSM. Duas bandas estavam programadas para se apresentarem à noite. Embora o local tivesse capacidade para 691 pessoas, pelo menos mil estavam na casa noturna quando o incêndio começou, por volta de 2h30.
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Durante a apresentação da banda Gurizada Fandangueira, a segunda da noite, um sinalizador de uso externo foi utilizado pelo vocalista. O artefato pirotécnico soltou faíscas que atingiram o teto da boate, incendiando a espuma de isolamento acústico – um vídeo divulgado pela Polícia Civil à época mostra o momento exato do início do incêndio. Em cerca de três minutos, uma fumaça espessa se espalhou e intoxicou a maioria dos presentes. Dos que saíram primeiro, muitos tentaram auxiliar as pessoas que haviam ficado dentro da boate e desmaiado.
O santa-cruzense Matheus Raschen estava no grupo de ajuda. Segundo informações colhidas pelos pais ao longo dos dias pós-tragédia, o jovem havia ido à festa de formatura de uma amiga. Ao final do evento, a maioria dos colegas foi a uma outra boate da cidade, a Museu, enquanto ele e uma amiga se dirigiram até a Kiss, pois uma semana antes haviam sido os organizadores de uma festa no local para arrecadar fundos para a formatura, e precisavam retribuir a presença no evento dos outros colegas. Como chegaram por volta de 2 horas, ficaram quase na porta da Kiss.
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“Estava muito cheio. E ele, como era alto, conseguia ver de longe, mas a amiga não. Ela ficou uns dez minutos e disse para o Matheus que iria embora. Ele resolveu ficar. Quando o fogo começou, saiu logo, mas assim como outros jovens, decidiu voltar e tirar pessoas lá de dentro”, lembrou Nestor, com lágrimas nos olhos. “Nesse entra e sai da boate, eles não se deram conta de que estava se intoxicando, respirando oxigênio fora e ar tóxico dentro. Em uma última vez que o Matheus entrou, ele desmaiou, e os bombeiros conseguiram retirá-lo lá de dentro.”
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Na viagem de ida a Santa Maria, Nestor Raschen e a esposa Núria receberam mais uma ligação. Era Henrique Severo, outro amigo de Matheus, dizendo que ele iria aguardar o casal em um posto de combustíveis na entrada da cidade. Quando os santa-cruzenses chegaram ao local combinado, mais pessoas os guardavam. “Havia pais e mais amigos. Aquilo nos assustou um pouco. Perguntei o porquê de tanta gente e nos disseram que o incêndio tinha sido grande e até o momento havia nove mortos. Pelo menos, eu sabia que o Matheus estava no hospital”, disse Nestor.
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Quando chegaram à casa de saúde, o cenário era desolador. “São cenas que a gente não gostaria de ver de novo. Uma mãe chegou, pediu para ver a filha e foi informada ali mesmo, na frente de todo mundo, que a jovem havia falecido. Ela se desesperou e nós ficamos muito apreensivos.” Uma enfermeira entregou pertences de Matheus a Nestor.
“Ela nos deu a carteira de identidade e dinheiro dele. Estava tudo encharcado, da água dos bombeiros. Conseguimos um momento para vê-lo e ele estava com muitas queimaduras no rosto, e tivemos dificuldades de reconhecer. Aquilo foi um choque pra nós. Mas estava intubado, sedado, com possibilidade de ganhar um leito no HPS, em Porto Alegre, o que nos dava força”, salientou Nestor.
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As remoções dos gravemente feridos para a Capital começaram ao meio-dia. Matheus foi um dos primeiros transferidos de Santa Maria, em um helicóptero da Força Aérea Brasileira. Ele estava com 43% do corpo com queimaduras de segundo e terceiro graus. Uma batalha pela vida foi travada ao longo da semana.
Entre melhoras e recaídas em seu quadro médico, o jovem sofreu uma parada cardíaca e faleceu às 21h45 de 31 de janeiro de 2013. O velório, durante o dia seguinte à morte, comoveu Santa Cruz do Sul e lotou o ginásio do Corinthians, palco onde o jovem atuou em diversas partidas de basquete. Ao lado de amigos e familiares, foi velado com homenagens, diferente da grande maioria do mortos na tragédia, que tiveram seus corpos reconhecidos pelos pais no Centro Desportivo Municipal de Santa Maria, depois de levados pelos bombeiros após serem retirados sem vida da boate.
“Morreram na boate 234 pessoas. De todos os feridos, apenas oito faleceram nos hospitais. Isso significa que a área da saúde, quando entrou em ação, foi excepcional. E Deus nos poupou de localizar o corpo dele naquele ginásio em Santa Maria. Não seria possível ter que entrar naquele local e achar ele lá, em meio a tantos outros jovens deitados no chão. Esses dias de vida dele, de domingo a quinta, foram um momento de aceitação e de entendimento para nós do que estava se passando. ”
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Na sexta-feira, antes da tragédia, Matheus conversou por telefone pela última vez com seu pai. Comentou que tinha recebido o resultado da festa que havia organizado uma semana antes, na própria Kiss, e a sua turma conseguira um bom lucro para auxiliar nos custos da formatura. No sábado, horas antes de sua morte, foi a vez de falar com a mãe, Núria. Queria saber como passava uma camiseta, pois iria na formatura da amiga durante a noite.
“Ele viveu 20 anos de maneira brilhante. Fez muita coisa, com pressa de viver. A pergunta que fica é o que ele poderia ter feito em mais 60 ou 70 anos de vida. Foram 242 jovens que morreram e deixaram um vazio enorme em suas famílias, mas também um vazio estrutural na sociedade, porque em sua maioria eram acadêmicos que logo ali na frente iriam contribuir para o crescimento do País”, comentou Nestor.
O atual diretor do Mauá criou dois álbuns com reportagens da Gazeta do Sul: um com eventos anteriores ao incêndio e outro com os do fato e homenagens póstumas. Em uma das imagens antigas guardadas está uma foto de Matheus com o amigo e colega de basquete Icaro Parisotto, atual ala armador do União Corinthians. “Eles começaram juntos. Quem sabe hoje poderiam estar jogando no mesmo time, defendendo a nossa cidade.”
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Das relíquias que ainda guarda está a camiseta da Seleção Brasileira Sub-18 com que Matheus jogou, além de troféus conquistados e outros que tiveram o nome do filho como homenageado. “Para nossa tristeza e saudade, a missão dele terminou. Consegui no meu trabalho encontrar forças para seguir. Eu fiquei muito mal. Em 2013, eu queria largar tudo, andar pelo mundo, mas a comunidade abraçou a nossa família e minhas responsabilidades ajudaram a preencher esse vazio. Busquei ajuda, pois tive acesso a isso, mas talvez outros que não tiveram a mesma sorte ainda não saíram dessa.”
Nestor Raschen, que integra a Associação dos Familiares de Vítimas da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), ainda está avaliando sua ida ao júri que começará no próximo dia 1º, no Tribunal de Justiça, em Porto Alegre. Para Nestor, além dos quatro réus, outras pessoas tiveram responsabilidade no incêndio. “Depois do que foi apurado, com 28 pessoas arroladas no inquérito, sobraram quatro. É muito pouco, pois foi um conjunto de irregularidades e negligências com as quais muitas pessoas cooperaram, incluindo bombeiros, servidores e o prefeito de Santa Maria na época”, frisou Nestor.
Para ele, depois de toda a apuração, ficou claro que a casa noturna possuía diversas razões para estar fechada. “A boate nunca funcionou regularmente. Tinha mil motivos para estar fechada, e ninguém tomou essa decisão. Esperamos que o júri faça aquilo que é expectativa de todo um país: a justiça. Não é vingança, mas precisa ficar claro que os quatro réus saibam que cometeram um erro e custou a vida de muita gente.”
Nestor Raschen ainda comentou que os quatro réus deveriam ser julgados em Santa Maria, e não em Porto Alegre. Segundo ele, chamou a atenção também o tempo de quase nove anos para se chegar ao júri, diante de uma tragédia desse tamanho. “O produtor comprou o artefato pirotécnico, acendido pelo vocalista, por R$ 5,00. Na loja, ofereceram um que fazia igual, mas sem fogo, por R$ 50,00, mas ele preferiu o mais barato. Por R$ 45,00, teríamos salvado 242 pessoas, deixado de ferir outras 636, sem contar o drama que seria poupado dos familiares que tiveram suas vidas completamente atingidas por essa tragédia.”
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