Criança, Irineu Franco Perpetuo ouvia de seu pai que um dos personagens mais extraordinários da literatura era o estudante Raskolnikov, de Crime e Castigo, de Dostoievski. Aos 14, encarou o desafio de ler seu primeiro livro de um escritor russo. “Fui até o fim de Os Irmãos Karamazov, maravilhado. Obviamente, nessa idade, não posso dizer que li ou entendi Dostoievski. Mas aquilo marcou”, conta o jornalista e tradutor de 49 anos.
ela época, leu um anúncio num jornal, de um curso de russo da União Cultural Brasil-URSS, perto da sua casa, e lá passou algumas horas de seus sábados, ao longo de quatro anos, aprendendo um idioma que não tinha nada a ver com suas origens portuguesas e italianas.
Traduziu muita coisa até o que chama de “batismo de fogo”: Vida e Destino, de Vassili Grossman, que lhe rendeu o segundo lugar na categoria tradução do Jabuti 2015. Depois disso, traduziu O Mestre e Margarida, de Mikhail Bulgákov, e chegou a dois dos principais livros de Tolstoi: Anna Karenina, que está para sair pela 34, e Guerra e Paz, que já entregou para a editora.
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No meio disso tudo, e também da Copa do Mundo da Rússia, em 2018, Irineu recebeu o convite da Todavia para escrever Como Ler os Russos. O resultado pode ser conferido na obra que acaba de chegar às livrarias e será lançada, com um debate entre o autor, Mika Lins e Bruno Gomide, no dia 29, às 19 horas, pelas redes sociais da Todavia.
Trata-se de um livro escrito por um brasileiro para leitores brasileiros, que leva em conta os estudos e as traduções disponíveis aqui. Um livro que faz um panorama, cronológico, da literatura russa, que apresenta autores e obras inseridos no contexto histórico em que eles viveram e elas foram produzidas.
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E que conta sobre a presença da literatura russa no Brasil, algo que se deve primeiro às traduções feitas a partir de edições francesas e depois a nomes como Boris Schnaiderman e Tatiana Belinky, que começaram traduzindo do original e fizeram escola. Um livro leve e acessível – para o público leigo, mas não só.
“A literatura na Rússia é mais ou menos como a música popular no Brasil: não apenas a manifestação cultural mais importante do país para os nativos, mas seu cartão-postal cultural, aquela que eles sabem ser a mais reconhecida no exterior. A leitura é algo bastante visível e perceptível no cotidiano, e não creio que passaria pela cabeça de ninguém, na Rússia, dizer que só rico lê”, comenta o autor, referindo-se à proposta de taxação do livro no Brasil.
Passado, presente, futuro. O livro termina com o autor dizendo que os escritores estão tendo de se reinventar. “Isso se deve à mudança do papel do escritor na cultura e na literatura da Rússia de hoje”, explica. “Toda a literatura russa, dos primórdios até 1991, foi produzida sob censura.” Ele conta que muito antes da Revolução Russa, tratava-se de um regime absolutamente fechado e autocrático, que interditava todo tipo de discussão. “Para que se tenha uma ideia: antes de 1905, não havia partidos políticos legalizados. Não podia haver.”
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“Então, o que aconteceu é que a literatura (e a discussão sobre literatura) acabou assumindo vicariamente o papel que, em sociedades menos repressivas, era desempenhado pela filosofia, pela sociologia, por outras ciências humanas. Todo tipo de discussão que era vedada na sociedade civil confluía para a literatura.”
Com isso, o escritor acabava ganhando uma certa aura mística de profeta, de quem discutiria ou ditaria os rumos da nação. “A partir de 1991, talvez tenha sido a primeira vez em mil anos que a Rússia tenha começado a ter liberdade de expressão. Nesse contexto, em que a literatura passa a ser ‘apenas’ literatura, o escritor deve se conformar com ser ‘apenas’ escritor.”
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Por falar em censura, muitos dos autores citados em Como Ler os Russos foram presos, exilados para a Sibéria, executados, etc. “Isso sem falar nos casos raros de Bulgákov (Um Coração de Cachorro) e Grossman (Vida e Destino) em que o autor foi deixado em liberdade, mas o livro foi preso.”
E do que falamos quando falamos de literatura russa? “Daquela que talvez tenha sido a última literatura europeia a florescer – e, nesse processo, queimou etapas aceleradamente para superar a barreira do idioma e se tornar uma das principais literaturas do planeta”, responde. “Ler os russos é ler o que de melhor se produziu em poesia e prosa nos últimos 200 anos.”
A pedido do Estadão, Irineu Franco Perpetuo sugeriu livros clássicos e contemporâneos e indicou percursos de leitura para quem já começou a se aventurar pela literatura russa ou para quem está começando – seja adulto, adolescente ou criança.
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E o que ele aprendeu com esses livros? “Comecei a ler os russos em minha fase de formação e, para o bem ou para o mal, tornei-me o que me tornei muito por ‘culpa’ deles. Aprendi com eles o respeito e apreço pela palavra escrita que, mal ou bem, tornou-se meu ganha-pão. Graças a, ou por culpa deles, o livro se tornou central na minha vida, como é central na vida cultural dos russos.”
Ele completa: “A exemplo do Brasil, a Rússia era um país distante dos principais centros, grande, atrasado, periférico, durante muito tempo marcado pela implacável clivagem do trabalho servil. Contudo, em vez de imitação dos modelos dos ‘países centrais’, lá esse deslocamento acabou engendrando uma produção estética vigorosa e original, que não raro serviu de modelo e inspiração para a arte dos próprios países centrais. Essa lição de originalidade e construção de identidade eu não me canso de aprender.”
Leia…
Puchkin
se quiser conhecer as poesias que todo russo sabe de cor desde criança
Tolstoi
se quiser romances que parecem abarcar a própria vida
Dostoievski
se quiser mergulhar nas profundezas das contradições humanas
Chekhov
se quiser degustar contos refinados e sutis, em que tudo é ambiguidade
Nabokov
se quiser saborear a prosa mais engenhosa escrita por um exilado do regime soviético
Chalámov
se quiser conhecer a bestialidade do Gulag em sua plenitude
Svetlana Aleksiévitch
se quiser entender do que os russos de hoje falam quando se reúnem na cozinha de casa
Bábel
se quiser relatos vivos das mazelas da Guerra Civil russa e da opressão aos judeus no tempo dos czares
Maiakovski
se quiser experimentar a ousadia das vanguardas poéticas russas do século 20
Kharms
se quiser se surpreender com um criador original e desconcertante
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Livros fundamentais
‘Ievguêni Oniéguin’, de Puchkin
Obra-prima do pai-fundador da literatura russa
‘Almas Mortas’, de Gogol
Uma sátira delirante e implacável
‘Pais e Filhos’, de Turguêniev
Mistura sedutora de romance político e conflito de gerações
Anna Karenina’, de Tolstoi
A mais fascinante personagem feminina da literatura russa, em seu romance mais bem acabado
‘Os Irmãos Karamazov’, de Dostoievski
A culminância dos dilemas existenciais exacerbados dostoievskianos
‘O Tio Vânia’, de Chekhov
Ápice da elusiva e refinada dramaturgia chekhoviana
‘Poemas’, de Maiakovski
A antologia traduzida pelos irmãos Campos e Boris Schnaiderman firmou Maiakovski como o poeta russo mais conhecido aqui
‘O Mestre e Margarida’, de Bulgákov
O Fausto russo do século 20
‘Vivendo Sob o Fogo’, de Tsvetáieva
Um mergulho no universo de uma das mais fascinantes poetas do século 20
‘Contos de Kolimá’, de Chalámov
Vigorosa denúncia dos malefícios do Gulag, impressionante também pelo apuro da escrita
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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