O relógio marcava 20 horas quando o silêncio foi rompido na Rua Santa Rosa, Bairro Schulz, na noite dessa quarta-feira, 3. Na frente da casa número 5, músicos do Centro de Tradições Gaúchas (CTG) Lanceiros de Santa Cruz, trajados com pilchas, entoaram canções anunciando o início de mais um Terno de Reis.
As melodias iluminaram a moradia, que estava com as lâmpadas desligadas e as janelas fechadas. Logo, os moradores Estor Machado, 69 anos, e a esposa Geneci, 66, abriram as portas para conferir a apresentação musical, carregada por mensagens de paz, prosperidade e união. “Graças a Deus que eu já vi/A luz da vela, luz da vela a luzir/Honrado seja o dono da casa/Ai que a porta, que a porta nos veio abrir.”
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A estrofe, tocada no ritmo do vanerão, foi um gesto de saudação à família, que aguardava a visita desde o Natal. O canto é acompanhado por gaita, pandeiro, reco-reco, triângulo e violão. Para aqueles que recebem o Terno de Reis em casa, há a crença de que a tradição proporcionará um ano abençoado. Por isso, a expectativa na família Machado era grande. “É uma cerimônia que acompanhamos desde criança, é muito bonito”, afirmou Geneci.
Em seguida, o grupo de sete integrantes da entidade rumou para a casa número 120 da Rua Pará, onde foi recebido pelo comerciante Evandro Gassen, 61 anos. Há 25 anos, sua família abre as portas para a cantoria. “Sempre são bem-vindos”, afirmou. As apresentações pelo bairro seguiram por pelo menos três horas. Até esta sexta-feira, 5, passarão por Arroio Grande, Ana Nery, Pedreira e Higienópolis.
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A entidade abraçou o rito no ano da sua fundação, 1963. Desde então, todos os anos, entre 26 de dezembro e 6 de janeiro, visita residências e casas geriátricas em todo o município. Apesar de ser uma atividade voluntária, os moradores seguem os ritos e oferecem presentes para agradecer, desde comes e bebes até uma doação – os valores recebidos são utilizados para dar continuidade aos trabalhos do CTG.
“As pessoas gostam muito de receber o Terno de Reis. Elas acreditam que traz uma mensagem muito valorosa e positiva, de prosperidade e alegria”, afirma a diretora cultural da entidade, Leila Figueiredo, que integra o grupo com o marido, Roni Ferreira Nunes, há 20 anos.
Para a tradicionalista, um dos pontos altos da festividade é cantar aos idosos. Durante visita a uma casa geriátrica, Leila viu uma cena que a emocionou. “Nos deparamos com uma pessoa que estava em coma induzido. E quando ela ouviu o som da gaita tocando, abriu os olhos. É isso que a música faz.”
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Atualmente, o CTG do Bairro Schulz é o único a seguir com a tradição em Santa Cruz do Sul. A antiga festividade, trazida pelos colonizadores portugueses e presente em diversos estados brasileiros, referencia a história bíblica dos três reis magos e o nascimento de Jesus Cristo em cantorias levadas às residências durante a noite.
Festivais preservam cultura na região
A tradição do Terno de Reis é resguardada no Vale do Rio Pardo graças às festividades realizadas pelos municípios. Venâncio Aires, por exemplo, promoverá no próximo domingo a 29ª edição de um festival dedicado à cultura. As apresentações ocorrem na Travessa São Sebastião Mártir, e os ternos receberão troféu de participação.
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Já em Mato Leitão, a festividade chega a sua 28ª edição. O espetáculo terá a presença de pelo menos seis grupos na Rua Coberta (Rua Otto Bugs) no sábado, a partir das 19 horas. Na mesma data, haverá o Encontro de Terno de Reis em Passo do Sobrado. O evento ocorre desde a emancipação do município, em 1992, e terá a presença de oito grupos no palco montado na Praça da Emancipação.
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Testemunha histórica
O tradicionalista e radialista Antônio Pereira dos Santos foi um dos protagonistas do Terno de Reis em Santa Cruz do Sul. Durante décadas, o apresentador do programa Alma Gaúcha, da Rádio Gazeta FM 107,9, atuou para manter a tradição viva.
Em seu blog, intitulado Memórias, relembrou o seu primeiro contato com a tradição, ainda menino, por volta de 1955. Na época, presenciou, na frente da casa da irmã, Genoveva, na Rua Carlos Trein Filho, crianças praticando o rito. A música era feita com latas, e elas passavam de casa em casa. Em algumas, chegavam a ser recompensadas com uma pequena quantia em dinheiro.
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Inspirado na cena, reuniu-se com amigos para reproduzir a festividade e arrecadar uns trocados para entrar em um parque de diversões instalado nas proximidades da atual Vila Militar. “Resolvemos arrumar alguns instrumentos e saímos a cantar os reis”, relatou.
Em 1960, após a família se mudar para Santa Cruz, Antônio passou a praticar o Terno junto com outros jovens do CTG Tropeiros da Amizade. Por mais de duas décadas, de forma beneficente, a entidade realizou as apresentações. A cantoria iniciava-se ainda ao anoitecer e, normalmente, era concluída somente às 4 horas da manhã.
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Nos primórdios, a prática não era bem-vinda por alguns moradores, que desconheciam a tradição. “Houve momentos em que começávamos a cantar e alguém gritava para pararmos”, recordou Antônio, que na época assumiu o cargo de capataz artístico do CTG.
Entretanto, com o passar do tempo, a cultura foi abraçada pela comunidade, que retribuía com donativos à entidade. O dinheiro arrecadado durante o Terno de Reis permitiu ao Centro de Tradições Gaúchas adquirir a primeira gaita e também foi usado para a construção do galpão e da churrasqueira. A entidade continuou de forma ininterrupta durante 25 anos. De acordo com Antônio Pereira dos Santos, a tradição também foi preservada no município pelo CTG Rincão da Alegria por muito tempo.
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