Diariamente, por volta das 20 horas, uma equipe de servidores da Secretaria de Desenvolvimento Social deixa as dependências do Albergue Municipal para realizar a primeira abordagem social. Acompanhados por agentes da Guarda Municipal, eles percorrem diversos locais públicos conhecidos de Santa Cruz do Sul em busca de moradores de rua. Quando algum deles é localizado, começa o trabalho de convencimento para que deixe as ruas e vá, pelo menos, pernoitar no albergue, onde poderá também tomar banho e se alimentar.
Apesar da oportunidade de usufruir gratuitamente de todos esses serviços, muitas vezes a pessoa prefere ficar nas ruas. Isso acontece por uma série de motivos, que vão desde alterações de comportamento pelo uso de álcool ou drogas até a dificuldade em cumprir as regras da instituição, estabelecidas para possibilitar o convívio social. Nessas situações de recusa, a equipe não pode obrigar ou conduzir o morador de rua à força até o albergue, visto que não é contra a lei ocupar ou mesmo dormir nos espaços públicos.
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Abordagem social busca levar os moradores de rua para o albergue municipal
Na noite da última terça-feira, a Gazeta do Sul acompanhou o trabalho das equipes durante a primeira abordagem social noturna. Segundo o coordenador do Albergue Municipal, Douglas Ramos, os cerca de 30 ocupantes recorrentes chegam até o local por conta própria para passar a noite. Não é permitido o acesso com nenhum tipo de arma e os usuários precisam tomar banho, bem como respeitar os horários para se alimentar e dormir. Não são aceitos indivíduos alcoolizados ou sob efeito de drogas. Nesses casos, eles são encaminhados aos serviços de saúde para desintoxicação.
O trabalho é realizado durante o ano inteiro, com qualquer temperatura ou condição climática, mas se intensifica quando há previsão de frio extremo, abaixo dos cinco graus. “Temos que atuar de forma enérgica e convencê-los a vir, porque muitas vezes eles estão sem noção da realidade e podem até morrer de frio”, conta. Se for necessário, a abordagem é feita mais de uma vez durante a noite para alcançar o objetivo. “Temos até algumas casinhas aqui no pátio. Muitos não vêm se não puderem trazer junto os cachorros”, acrescenta Douglas.
Mesmo quando se obtém sucesso em levar alguma pessoa para o albergue, muitas vezes não há adesão ao serviço. A equipe afirma que hoje o número de desabrigados caiu e alguns pontos tradicionais da cidade já não são mais ocupados, como o entorno das agências da Caixa Econômica Federal, no Centro e no Arroio Grande, o Parque da Oktoberfest e a Praça da Pasqualini. Tudo isso é fruto da insistência em acolher e levar essas pessoas ao albergue.
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Douglas diz que é um trabalho diário de acompanhar e mostrar que existem alternativas e oportunidades para uma vida mais digna. “Se a gente parar de fazer isso, em três dias o número de moradores de rua aumenta. Uma praça que antes tinha dois logo terá quatro, e assim vai.” A atuação de “incomodar” essa população é o que garante os resultados e evita que eles consumam álcool, drogas e encontrem maneiras de permanecer desabrigados.
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“Eu tenho família, filhos, estou aqui porque quero”
A fala é de um homem que dormia sob a marquise de uma cafeteria nas imediações da Praça da Pasqualini, no Bairro Santo Inácio. Ele foi abordado pela equipe por volta das 21h30 e não apresentava sinais de embriaguez ou alteração de comportamento, mas se recusou a pernoitar no albergue. Durante a conversa, relatou ter uma irmã moradora do Bairro Belvedere e que em alguns dias dorme na casa dela. “Hoje vou ficar aqui para fazer o garimpo de manhã bem cedo, antes que os caminhões passem e esvaziem as caixas.”
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A atividade mencionada é a busca por materiais recicláveis depositados nos contêineres da região. Depois da coleta, ele vende os itens para empresas do ramo. Nos melhores dias, quartas, sextas e segundas-feiras, contou que chega a obter R$ 70,00. Nos demais dias, os ganhos variam de R$ 20,00 a R$ 30,00. “Hoje mesmo a minha irmã me procurou e perguntou se eu ia dormir lá, mas, se eu chego aqui às 8 horas, já não consigo mais nada.”
O homem ainda revelou ter dois filhos, um morador de Santa Maria e outro de Caxias do Sul. “De vez em quando, eles vêm para Santa Cruz e me ajudam. Eu estou aqui porque quero.” Ele tem 65 anos de idade e vive nas ruas, total ou parcialmente, há cerca de 12 anos. Com longa atuação na abordagem social, a servidora Lauriane Lamb ressalta que por diversas vezes ele já prometeu pernoitar no albergue, mas, por fim, acabou se recusando e segue dormindo nas calçadas e praças do município.
Na sequência, a equipe se deslocou até o entorno da Praça Hainsi Gralow, também no Santo Inácio, onde localizou outro homem desacordado na calçada, em frente a um condomínio. Após vários minutos, ele foi reanimado e conseguiu conversar, mas também não quis dormir no albergue. “Isso é muito comum. São pessoas já debilitadas e, quando bate o efeito do álcool ou da droga, muitas vezes desmaiam no lugar onde estão”, afirma Douglas Ramos.
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Morador do prédio citado, Roberto Pranke presenciou toda a ação e demonstrou uma preocupação adicional: os cachorros que acompanham os moradores de rua. “Nessa rua [a Augusto Spengler] tem muito trânsito, os motoboys passam em alta velocidade e os cães avançam neles. Não sei como ainda não aconteceu um acidente grave.”
Esmolas e doações dificultam a atuação dos profissionais
Embora pareça um gesto de bondade e solidariedade, dar esmola, alimentos ou agasalhos para os moradores de rua é algo que dificulta a solução do problema. Conforme a servidora Aniusca Calage, que também atua na abordagem social há vários anos, as equipes evitam fornecer comida e roupa para os que preferem permanecer desabrigados. “Quando alguém faz isso, está facilitando para que continuem nas ruas. Eles ficam lá esperando por aqueles mantimentos e não buscam o auxílio correto.”
Outro exemplo negativo citado é o de restaurantes, lancherias e outros comércios que distribuem marmitas com as sobras da produção diária. Segundo Aniusca, as refeições podem ser feitas nas oito cozinhas comunitárias em funcionamento nos bairros e também no albergue. Se houver necessidade, os profissionais ainda auxiliam com passagem para outros municípios e outros encaminhamentos. “Não entregamos nada nas ruas, justamente para que eles venham para cá e recebam o atendimento adequado.”
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Há também os que não são moradores de rua, mas se integram aos grupos nos espaços públicos em busca de companheiros para o consumo de bebidas alcoólicas. Esse era o caso de Inácio Rogai de Mellos, de 54 anos, morto a pauladas na Praça Getúlio Vargas, no dia 16 de junho. “Ele tinha casa e quatro filhos, mas estava entrando em situação de alcoolismo e se juntava com os guris na praça para beber”, comenta Aniusca.
A grande concentração de desocupados na praça se intensificou depois que o dono de um restaurante nas redondezas começou a distribuir comida. “No início eram somente dois, mas chegou um momento que eram mais de 30 pessoas, sendo oito fixos”, acrescenta Douglas Ramos. A partir do crescimento do grupo, iniciaram-se os desentendimentos que culminaram na morte de Mellos e na internação de João Carlos da Silva, que permanece no Hospital Santa Cruz após também ter sido agredido.
Ações de segurança foram intensificadas
A Prefeitura intensificou as ações nas praças e nos demais espaços públicos do município, com destaque para a Praça Getúlio Vargas, onde o homicídio aconteceu. Uma das medidas adotadas é a presença de uma equipe da Guarda Municipal no local 24 horas por dia e sete dias por semana, lotada na base comunitária que funciona junto ao ponto de táxis. O objetivo é reforçar a sensação de segurança da comunidade e coibir situações de perturbação do sossego e da ordem pública.
Além disso, a praça recebeu reforço na iluminação e novas câmeras de vigilância. Depois do crime, no entanto, os moradores de rua e demais integrantes do grupo desapareceram não só da Praça Getúlio Vargas, mas também de outros locais, como a Praça Siegfried Heuser, a Praça Costa e Silva, no Bairro Ana Nery; e a Praça Hainsi Gralow, no Bairro Santo Inácio. “Eles sabem que, depois de um acontecimento como esse, o aparato policial nas ruas aumenta e a tolerância com eles diminui, então ficam escondidos em outros lugares”, ressalta Douglas Ramos.
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Albergue acolhe pessoas em situações diversas
Para muitas pessoas, o Albergue Municipal pode parecer somente uma casa onde os desabrigados vão para dormir. Na verdade, a instituição é muito mais do que isso. Ela funciona também como um lugar de acolhimento e acompanhamento para indivíduos com diversos tipos de complicações de saúde, que vão desde o alcoolismo e a dependência química até depressão, esquizofrenia e outros diagnósticos. “São públicos que nem deveriam ser nossos, mas eles acabam parando aqui devido às dificuldades”, frisa Aniusca. Ocorrem até mesmo situações de abandono pelas próprias famílias.
“Um dia desses deixaram um senhor de 74 anos aqui na frente. Depois descobrimos que foi o próprio irmão dele, que também é idoso, o responsável”, conta a profissional. Nesse caso, por se tratarem de duas pessoas com mais de 60 anos, foi registrado um boletim de ocorrência. Apesar de estar fora da faixa etária atendida pelo serviço, o homem acabou permanecendo devido à inexistência de outro local para onde pudesse ser encaminhado. “Acontece muito isso. Infelizmente, o albergue se tornou uma referência para familiares largarem pessoas”, afirma Ramos.
Muitas vezes esses acolhidos não possuem sequer documentos, e a equipe precisa atuar junto aos órgãos governamentais para tentar resolver esses problemas. Além de abrigo, agasalhos e alimentos, eles recebem também oportunidades de recolocação no mercado de trabalho quando existem vagas e ainda o requerimento de benefícios dos governos, como Bolsa Família, auxílio-doença e outros, para os possíveis beneficiários. Com esse dinheiro, alguns conseguem se mudar para uma pensão ou alugar uma casa e dar uma volta por cima na vida.
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