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Todos estão surdos

Toda criança tem a famosa fase do “por quê?”, em que quase todo fenômeno, acontecimento e mesmo explicação é seguido dessa problemática pergunta. Os adultos, para quem o mundo já parece óbvio, ficam quase sempre incomodados pelos tantos questionamentos, que seguem até que se esgote a paciência ou o conhecimento. Mas se você pensar a respeito, é mesmo muito misteriosa a vida de um humano ao começar a entender o mundo.

Quando somos crescidos, comemos o pão e facilmente podemos recordar que, normalmente, ele é feito de determinados ingredientes, que são produzidos e trabalhados de tal forma e, por fim, trocados por dinheiro em algum estabelecimento. Mas para a criança o pão pode ser fruto de mágica, sendo conjurado pelo padeiro ou mesmo pelos pais. Talvez ele até brote de dentro de um saco plástico. E esse é só um exemplo bobo entre tantas coisas óbvias para um adulto e potencialmente intrigantes para uma criança. A fase do “por quê?” é quando a pessoa ainda em formação se apercebe de todo esse mistério que permeia o que parece trivial. Depois ela passa a acreditar que o mundo é tão quadrado quanto as respostas dos adultos e fica quadrada como eles.

O genial jornalista e escritor David Foster Wallace, em um texto chamado “Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo”, expõe uma teoria, algo que ele afirma ser verdadeiro acerca da infância dele próprio, mas que talvez se aplique a outras crianças: a ideia de que o mundo existe em função delas. As coisas existem se eu vejo, se eu toco, se eu me interesso. E vai além, a criança, talvez, sinta que as coisas existem para que ela veja, para que ela toque e para que ela se interesse. Pela pouca idade e vivência, ela nem percebe o tamanho da responsabilidade que essa ideia abarca.

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Se essa teoria se aplicar a todos ou pelo menos à grande maioria dos humanos, acredito que haverá uma fase problemática e crítica seguinte na vida: o momento em que a pessoa percebe que estava errada, que o mundo existe independentemente da existência ou do interesse dela. Talvez seja a adolescência. Será que toda aquela revolta com o mundo é porque percebemos que ele não foi feito para nós?

Pressuponho, ainda, que algumas pessoas viveriam a ilusão, sem viver a desilusão. Por motivos vários, chegariam à fase adulta achando que são a razão da existência, o ponto no entorno do qual gira o mundo. As raízes do problema podem não ser estas descritas, mas nós sabemos que essas pessoas existem. Elas estão em todo lugar, mas são especialmente visíveis nas redes sociais, onde, se eu não gosto de uma coisa, eu exijo, com grosseria e desrespeito, que ela desapareça; onde a notícia que eu não quero ler deve ser apagada e o que me agrada deve ser criado, e imediatamente. Onde a foto da menina com roupa curta é uma provocação pessoal e direta e onde toda expressão é um convite à crítica.

O também jornalista e poeta, entre outras coisas, Guto Graça, disse dia desses que as pessoas fazem comentários nas redes não com intenção de participar de um debate, que leve a conclusões mais bem fundadas, mas pela ânsia de sentirem-se protagonistas, participantes essenciais do assunto, da foto, da publicação. “A internet deu boca e tirou ouvido. Não é diálogo, são monólogos intercalados”, explicou. E essa demanda por protagonismo atropela a noção de que há, do outro lado da tela, pessoas, para as quais o mundo também foi feito e pelas quais o mundo é feito para todas as outras pessoas e não para um usuário específico.

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