Já andei escrevendo, em colunas anteriores, sobre a predileção que as gurias aqui de casa nutrem pelo teatro. Eventualmente, as três se trancam em um dos quartos, onde escrevem roteiros, decoram falas e montam figurinos sofisticados. E então, ao cabo de duas ou três horas de rigorosos ensaios, nos convocam para formar a plateia.
O público, invariavelmente, é formado por mim e pela Patrícia, às vezes também pelo irmão mais velho. As severas restrições à composição da plateia já vêm de antes da pandemia. A presença de gente de fora certamente iria tolher a liberdade criadora das artistas, que, portanto, só apresentam-se no âmbito familiar.
Na grande maioria das vezes, não há cobrança de ingressos. Eventualmente, porém, a trupe faz circular um cofrinho, no qual os presentes devem depositar algumas moedas como forma de reconhecimento por tal oportunidade de acesso à cultura e entretenimento.
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Uma personagem onipresente nas peças encenadas é a Tia Zeca, uma criação da Yasmin que integra o núcleo cômico da modesta companhia teatral. Seu figurino é composto por um xale vermelho, que lhe cobre os cabelos e os ombros, e por imensos óculos sem lentes. Trata-se de uma senhorinha muito curiosa, magrinha e de voz esganiçada, que retorce os lábios, coça a cabeça e afina um dos olhos quando algo lhe causa estranheza. Estabanada, está sempre esbarrando em tudo e não raras vezes escorrega ao solo.
Até pouco tempo atrás, Tia Zeca detinha o status de protagonista nas encenações. Contudo, nesta semana surgiu na trupe uma rival à altura: Madame Ágatha, a vidente.
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Como o nome já indica, Madame Ágatha é incorporada pela caçula. Usa um enorme turbante, cuidadosamente armado com uma toalha, mantém um cristal suspenso na testa e uma echarpe sobre os ombros. Conta-se que é conhecedora de todos os mistérios da Astrologia e do cosmos, e que recita de cor escritos cabalísticos milenares – embora ainda não o tenha demonstrado em cena. Conhece o passado, o presente e o futuro. Detentora de grandes poderes mágicos, ela não tolera zombarias.
E eis que, dias atrás, Madame Ágatha teve que demonstrar seus incríveis poderes para ajudar uma alma afligida por sérios males – no caso, a Tia Zeca.
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Ocorre que Tia Zeca não é dada a muitas reflexões. Ansiosa, age por impulso para atender a seus desejos mais básicos – a curiosidade e a fome. E, durante a peça encenada nesta semana, teve muita fome. Providencialmente, encontrou sobre um banco uma cesta, onde jazia uma maçã. Devorou a fruta sem pestanejar, com tamanha ferocidade que a Patrícia, ignorando seu papel de mera espectadora, ralhou com a Yasmin, temendo que se engasgasse. Yasmin não se engasgou, mas Tia Zeca, a personagem, foi acometida por males terríveis. Caiu ao solo, teve convulsões e arrastou-se para os bastidores, longe de nossa visão. Certamente, a maçã estava enfeitiçada.
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Quando Tia Zeca retornou ao palco, estava transformada em uma estranha criatura – um fantoche feito de meia, com pintas vermelhas e uma grande bocarra. Do figurino original, restaram-lhe apenas os enormes óculos. Enquanto a Isadora, a mais velha das gurias, comandava os movimentos do fantoche, a Yasmin, escondida nos bastidores, dava voz às falas da criatura:
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– Vejam no que me transformei – lamentou. – Em um fantoche de meia… e justo com uma meia que cheira a chulé!
E qual foi a solução? Recorrer aos poderes de Madame Ágatha.
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A vidente recebeu a pobre Tia Zeca junto a uma mesa coberta por uma toalha vermelha, adornada com temas natalinos – renas e papais noéis –, mas isso não vem ao caso, era a única toalha de mesa vermelha que havia em casa. Ao ouvir o relato do fantoche, concluiu que deveria consultar sua bola de cristal e puxou-a para cima da mesa. Mas, para surpresa da plateia, a bola de cristal era, na verdade, um rolo de papel higiênico.
– Foi o que deu para arrumar – justificou-se Madame Ágatha.
E então a vidente fechou os olhos, em profundo êxtase, passou as mãos sobre o rolo e recitou algumas palavras mágicas. Nisso, a toalha vermelha escorregou para fora da mesa e passou a planar diante da plateia. Até que, debaixo dela, emergiu a Tia Zeca, já em sua forma original, com o inconfundível xale sobre a cabeça.
– Voltei, voltei – comemorou Tia Zeca, efusivamente, balançando os braços de alegria e dando pulinhos, até escorregar e levar mais um de seus tombos.
E a plateia, enfim, foi ao delírio.
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