Uma das mais importantes autoras contemporâneas na América Latina, a cubana Teresa Cárdenas será atração da 1ª Festa Literária Internacional de Santa Cruz do Sul, em paralelo à 35ª Feira do Livro, entre 29 de abril e 5 de maio, na Praça Getúlio Vargas. Ela estará no evento no dia 2 de maio, quando participará de bate-papo com o escritor e professor carioca Rogério Athayde.
Aos 54 anos, nascida em Matanzas, em 1970, é ainda roteirista, atriz, bailarina e ativista social. Atualmente reside no Brasil, tendo se fixado no Rio de Janeiro, mais exatamente em Vila Isabel, como conta em entrevista exclusiva concedida à Gazeta do Sul. Nela, comenta a forte relação cultural (e, nela, o papel relevante da própria literatura) entre Brasil e Cuba, e sobre temas que mais diretamente se relacionam com sua atuação.
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Sua estreia na literatura ocorreu em 1997, com Cartas para minha mãe (Cartas al cielo, no original), disponível no Brasil pela editora Pallas, que viabilizou a vinda da autora a Santa Cruz, em parceria com o Sesc Santa Cruz do Sul, realizador da Feira do Livro e da Festa Literária. O título foi prontamente agraciado com o Prêmio David e com o Prêmio de la Critica, em Cuba. Traduzido por Eliana Aguiar, o volume foi publicado no Brasil em 2010, com 112 páginas.
Mas foi um romance seguinte, Cachorro velho, de 2005, que a projetou em âmbito internacional, por ter merecido o Prêmio Casa de las Américas e novamente o Prêmio de la Critica. No Brasil, foi lançado pela Pallas em 2020, em tradução de Joana Angélica D’Ávila Melo. Escreve ainda para crianças. A entrevista foi concedida por escrito, e ela respondeu às questões em espanhol, sendo a tradução minha.
ENTREVISTA: Teresa Cárdenas, escritora cubana
Magazine – O que motivou a sua vinda para morar no Rio de Janeiro?
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Na verdade, estou em Vila Isabel. É um bairro lindo, que conheço há anos. Tenho muitos amigos aqui, pessoas que respeito e admiro. Cada vez que venho ao Brasil para algum evento ou apresentação de livros, quase sempre passo alguns dias no Rio de Janeiro antes de retornar a Cuba. Amo a cidade e seu povo. Tem muita vida cultural, é reconfortante. Há alguns meses, quando decidi passar um período fora do meu país, não tive dúvidas em escolher o Brasil. Senti que só aqui me sentiria em família.
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Como está, atualmente, sua relação com o país natal e quais expectativas a senhora alimenta em relação à cena cultural cubana?
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Minha relação com Cuba é constante, tenho uma família muito grande que quer sempre saber o que faço no Brasil, como estou. Em relação ao cenário cubano, tenho mais preocupações do que expectativas. Cuba é uma ilha de muita cultura, de muita arte. Mas, nos últimos anos, os graves problemas econômicos que o país atravessa têm afetado tudo, incluindo o nível cultural de forma grave. Por vezes pergunto-me se tantos danos não são irreversíveis. As publicações foram reduzidas numa percentagem muito elevada devido à falta de papel e às despesas de impressão em outro país. As ilustrações dos livros infantis são feitas, quando possível, apenas em preto e branco, com quatro cores apenas na capa. É difícil e triste. Temos autores de alto calibre, com histórias maravilhosas, que não podem ser publicadas. Muitos de nós optamos pela publicação no exterior. E tudo isso influencia o empobrecimento da literatura cubana.
Como era, ao longo de seu período de formação, a relação com o Brasil e seu ambiente cultural? Como enxergava o Brasil ou o que sabia acerca dele?
O Brasil sempre foi um irmão mais velho de Cuba, às vezes distante, mas sempre admirado. Um irmão com quem partilhamos raízes e memória. Nós os amamos e nos sentimos próximos de seu povo e cultura. E acho que o carinho é mútuo. Aqui conheci muitas pessoas que sonham em visitar a ilha. Lá conhecemos a música, a literatura, o futebol, claro. E o cinema brasileiro é muito acompanhado lá, tem até um programa de televisão chamado “Brasil”, que é focado na cinematografia brasileira, música, cinema, atores e roteiristas, nas adaptações literárias. Não posso deixar de mencionar aquela febre cubana que são as novelas brasileiras. As pessoas as veem e as seguem com grande paixão. Era quase criança quando tive meu primeiro encontro com o Brasil, através dos livros de Lygia Bojunga, Ana Maria Machado, Jorge Amado, e, muitos anos depois, me reconhecendo nos de Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo e outros autores afrobrasileiros.
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O que mais prontamente diferencia o Brasil de Cuba?
Temos mais semelhanças do que diferenças; os nossos povos são irmãos, filhos da África, da Europa e de outras populações migrantes. No Brasil há presença muito maior de povos indígenas do que em Cuba, onde foram quase totalmente exterminados. Ambos os países foram os últimos do mundo a dar liberdade aos escravizados, e em ambos a população carcerária é maioritariamente negra. O que nos torna diferentes? A linguagem, a forma de ver a vida, a personalidade. Os brasileiros são mais alegres, românticos e determinados, os cubanos pensam muito nas coisas e, com aquele senso de humor que é inato, rimos dos infortúnios e das dificuldades do dia a dia. Às vezes somos abertos e exagerados, nada reservados. Falamos com um estranho como se fosse um amigo. Gostamos de música, de esportes e de boa comida, como os brasileiros, mas não temos sua democracia nem servidores comprometidos com o bem-estar e a liberdade de expressão do povo. O Brasil é um país continental, onde vivem juntas mais de 200 milhões de pessoas e tudo o que isso significa; Cuba é uma ilha no Mar do Caribe com apenas 11 milhões de habitantes.
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Escrever é missão
Viagens ao Brasil, inclusive à Feira do Livro de Porto Alegre, familiarizaram a cubana Teresa Cárdenas com a realidade social e cultural do País. Mas foi a partir das estadas no Rio de Janeiro que ela passou a perceber e analisar com mais profundidade, e de perto, os aspectos que mais diretamente particularizam os brasileiros em relação aos demais povos latino-americanos.
E, de pronto, um fato se salientou a seu olhar, de maneira a levá-la a enunciar: “fiquei chocada”. Ela se impressionou com a violência e o desprezo (que chama de doentio) pelo povo afro, por sua cultura, sua história, suas crenças, e até por seu simples existir. “Você encontra isso nas ruas, na televisão, nos livros, nas igrejas”, diz, na entrevista que concedeu à Gazeta do Sul. Como escritora, vê em sua ação (e na literatura como um todo) uma via para tentar mudar esse cenário.
Magazine – O que mais se destaca na realidade sociopolítica e cultural brasileira em relação ao restante da América Latina?
Sempre digo que o Brasil é como um irmão mais velho de todas as nações da América Latina. Um irmão que respeitamos e ouvimos com atenção, e que pode mediar com sabedoria as nossas diferenças e trazer paz e compreensão. É uma nação grande, onde a democracia é forte e procura a imparcialidade. Ainda tem muitas batalhas a vencer, como o tráfico de drogas, a violência, o racismo, a corrupção, a criminalidade. Mas é um país de gente corajosa, inteligente e generosa. Espero que um dia alcance o destaque que merece, não só na América Latina, mas no mundo.
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Sobre o mundo de hoje, o seu olhar é de encanto ou de desencanto?
Procuro sempre fazer com que o fascínio, a confiança e a força sejam maiores do que o desencanto e o desânimo que por vezes sinto. Não é meu interesse transmitir a derrota aos meus leitores. O oposto. O meu objetivo é instruir os mais novos, orientá-los na tolerância, na aceitação de si e dos outros, e também na resistência e no combate a qualquer tipo de discriminação e violência. Em suma, quero simplesmente que os meus livros contribuam para tornar as novas gerações pessoas mais tolerantes e mais felizes. A boa literatura sempre transforma mentes, espíritos, formas de ver a vida. Um bom livro consegue ensinar, orientar e moldar o leitor. Todos nós podemos ser educados, instruídos pelos livros.
Minha literatura tem essa missão. Abordar questões raciais, combater a discriminação e a violência, proteger a memória daqueles que vieram antes de nós através dos meus personagens e histórias, através da minha poesia, foi e sempre será essencial para mim. É o que me motiva a escrever, o que me sustenta. O tema da reivindicação dos negros, o da luta pela plena igualdade dos seus direitos, a força e a beleza das mulheres negras, a declaração tácita de que merecemos ser felizes e viver sem discriminação é o tema da minha vida.
Por ocasião de sua vinda a Porto Alegre, a senhora apontara, em entrevista, que o racismo no Brasil é muito forte. Esse cenário, em sua avaliação, segue igual?
Infelizmente, piorou. Como todos os males e as injustiças do mundo, o racismo também aumentou. No Brasil, não há diferenças.
Em que pontos ou medidas a sociedade, a humanidade, tem falhado em superar ou resolver essas problemáticas associadas ao racismo?
Às vezes penso que o racismo é uma doença mental e uma doença perversa da alma de algumas pessoas. Não existe nenhuma condição biológica, física ou outra que justifique a discriminação racial e o racismo. Somente a obstinação, a violência, a ignorância e a malignidade que nascem nas mentes dos indivíduos racistas. Ninguém é superior aos outros por causa da cor da pele ou da textura do cabelo. É insano e estúpido.
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Mas quando começamos a pensar que por esses motivos fúteis alguns perdem a vida ou sofrem todo tipo de violência e falta de oportunidades, percebemos que o estado de saúde psicológica de muitos é definitivamente preocupante e muito perigoso. O que fazer? Às vezes fico sem respostas. Mas, definitivamente, continuo a apoiar a educação para a tolerância das novas gerações. Talvez dentro de algumas centenas de anos consigamos erradicar o racismo.
Como a questão racial, na avaliação da senhora, se diferencia no Brasil em relação a outras nações, em especial as latino-americanas?
Tive a oportunidade de visitar o Brasil e alguns países da América Latina em diversas ocasiões. Estive no México, Bolívia, Venezuela, Nicarágua, Chile, Colômbia. Em todas essas nações, as experiências de racismo e discriminação racial variam em intensidade, mas são iguais. No Brasil é muito mais forte, cruel, implacável. Lembro-me de uma estatística que ouvi há alguns anos no Rio, onde afirmavam que uma pessoa negra, seja homem, mulher ou criança, morre violentamente a cada 23 minutos. Fiquei chocada. Essa violência, esse desprezo doentio pelo povo afro do Brasil, pela sua cultura e história, por suas crenças e até pelo simples fato de existir, irradia em todas as direções da sociedade brasileira. Você encontra isso nas ruas, na televisão, nos livros, nas igrejas. Está em toda parte. Felizmente, existem pessoas boas, negras e brancas, que se unem para combater esse flagelo.
Em sua estada no Rio, a senhora tem produzido? A que projetos tem se dedicado ou quais os planos em relação a publicações?
Acabo de apresentar três novos livros, dois deles para a editora Pallas, do Rio de Janeiro. É uma editora na qual trabalho e sou amiga há mais de 15 anos. São livros dedicados a crianças até aos 12 anos. Estou ansiosa para ver essas histórias já materializadas em livros, e, claro, para que sejam apreciadas pelos leitores.
Na literatura, algum sonho em especial?
Somente continuar escrevendo, sonhando. Deposito em livros as muitas histórias que circulam na minha cabeça. É o meu estado de encantamento perene. Porém, desde 2014 tenho esses personagens que me contam suas vidas. É um romance que estive pensando e repensando na minha cabeça todo esse tempo. Às vezes escrevo alguma coisa, paro e saio disso, escrevo outros livros. E esse romance ainda está lá, fiel ao tempo e à minha inspiração, esperando pacientemente que eu decida terminá-lo.
Qual a expectativa em torno da vinda a Santa Cruz do Sul?
Estou curiosa por conhecer a cidade e sua gente. Apresentar meus livros, ter trocas com os leitores e conhecer autores locais.
A senhora teve conhecimento de que uma diretora de escola de Santa Cruz criticou a obra “O avesso da pele”, de Jeferson Tenório? Como a senhora reagiu a essa informação?
Tenho o prazer, a alegria de conhecer o Jeferson há alguns anos. Ele é um homem muito inteligente, sensível e dedicado à sua profissão. Nada do que aconteceu com o seu lindo livro O avesso da pele, que ele teve a imensa delicadeza de me dar de presente, me preocupou. Às vezes acontece que, quando tentam prejudicá-lo, conseguem o efeito oposto. As vendas do livro provavelmente dispararam, e a curiosidade pela obra de Jeferson aumentou devido a esse lamentável fato.
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Isso me lembra quando meu livro Cartas al cielo foi boicotado em Cuba. Felizmente, a lógica e as ações inteligentes do meu editor prevaleceram, e não foi adiante. Se soubessem o quanto é difícil o trabalho do escritor, quanta responsabilidade sentimos, quanta angústia vivenciamos. Não se trata de sentar para escrever qualquer assunto para impactar os leitores; muitas vezes são histórias que carregamos no coração há anos, histórias que doem de escrever e têm raízes em nossas próprias vidas. A arte de recolher histórias e transmiti-las através da escrita deve ser tão respeitada e reverenciada como os gritos africanos foram em tempos imemoriais. A sabedoria deve sempre ser reverenciada, não atacada.
Em sua vinda, pretende trazer alguma mensagem específica associada a esse fato em particular?
Apenas reafirmar minha admiração e irmandade com quem combate o racismo de todas as formas possíveis. Sou escritora há 25 anos e abordar questões raciais, o combate à discriminação e à violência, proteger a memória daqueles que vieram antes de nós através dos meus personagens e histórias, através da minha poesia, foi e sempre será essencial para mim. É o que me motiva a escrever, o que me sustenta. O tema da reivindicação dos negros, da luta pela plena igualdade dos seus direitos, da força e beleza das mulheres negras, da declaração tácita de que merecemos ser felizes e viver sem discriminação é o tema da minha vida. Essa é a minha missão e mensagem.
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