A segunda-feira deixou claro que não será sem tensão, desgaste e incertezas que a Assembleia Legislativa votará o mais profundo pacote de ajuste fiscal da história do Rio Grande do Sul. A sessão, que começou no início da tarde, estendeu-se por toda a noite e invadiu a madrugada, foi marcada por tensão dentro e fora do plenário e discussões arrastadas. Apenas três projetos foram aprovados: o que modifica a Agência Gaúcha de Desenvolvimento e Promoção do Investimento (AGDI). O que reduz o número de secretarias estaduai e pela limitação da cedência de servidores da área de segurança pública. A presidente da Assembleia, Silvanna Covatti (PP), suspendeu os trabalhos às 3h30. A sessão será retomada hoje à tarde. Às 13 horas está prevista a reunião de líderes para definir a pauta de votação do dia.
Os trabalhos foram abertos por volta das 14 horas, mas a Praça da Matriz, que fica em frente ao prédio da Assembleia, já estava tomada de manifestantes desde a manhã – a maioria integrantes de órgãos que serão atingidos pelas medidas do pacote, entidades que representam categorias do funcionalismo e partidos de esquerda.
Embora pela ordem de votação definida em acordo entre os líderes os projetos considerados menos polêmicos seriam os primeiros a ser analisados, a discussão sobre o primeiro item da pauta – que era justamente a transformação da AGDI em um escritório, uma estrutura mais enxuta – se arrastou por mais de oito horas. A votação do texto-base do projeto ocorreu apenas após as 22 horas e o placar foi de 36 votos a 17.
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A dificuldade enfrentada neste primeiro momento deu o tom do que deve ser o restante da votação – que pode terminar apenas na quarta-feira, acreditam alguns. Na prática, isso reflete duas situações: o esforço da oposição que, pressionada pelos manifestantes, quer obstruir a votação o máximo possível, e a instabilidade da base aliada, que está longe de uma unanimidade e tem muitos focos de resistência a alguns pontos do pacote. Até parlamentares mais próximos do Palácio Piratini admitem que nem todos os 26 projetos podem ser aprovados e o governo pode ter que ceder em alguns temas.
O apelo do governador
Horas antes do início da sessão, o governador José Ivo Sartori fez, em pronunciamento nas redes sociais, um apelo pela aprovação integral do pacote. Repetindo declarações anteriores, disse que não há “plano B” e que o momento é “grave e decisivo”. “Se nada for feito agora, nosso Estado vai ver anos muito duros pela frente. Com inércia política e enormes dificuldades financeiras. Os serviços públicos vão entrar cada vez mais em colapso.”
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Nas galerias, divisão e xingamentos
Como já havia acontecido em outras votações no ano passado, o acesso às galerias do plenário ocorreu por meio da distribuição de senhas. Metade do espaço foi ocupada por manifestantes favoráveis ao pacote, carregando bandeiras do Brasil e do Rio Grande do Sul e faixas onde se lia “Somos a maioria silenciosa” e “72% dos gaúchos querem o pacote”. Na outra metade ficaram os opositores, em sua maioria servidores de órgãos que serão atingidos pelas medidas, além de entidades como Cpers e Conlutas. Nas faixas, lia-se: “S.O.S. Fundação Zoobotânica”, “Salve TVE, Salve FM Cultura”, “Não à extinção da Metroplan”, “A Corag faz bem à sociedade gaúcha” e “Não à extinção da Fepagro! Não deixe a pesquisa acabar”.
Os manifestantes reagiam com vaias e aplausos a cada pronunciamento na tribuna e muitos deputados foram interrompidos, a ponto de a presidente Silvana Covatti (PP) ameaçar suspender os trabalhos e até evacuar o plenário, o que não chegou a acontecer. Em determinado momento, os dois lados começaram a cantar ao mesmo tempo: “Do lado de lá só tem enganador”. Em outro momento, os manifestantes favoráveis cantaram: “Ah, que bom seria / Se petista entendesse economia”.
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Xingamentos a parlamentares também foram ouvidos. Quando o conservador Marcel Van Hattem (PP) subiu à tribuna, alguns gritaram: “Assassino”. Já quando chegou a vez de Any Ortiz (PPS), ouviu-se: “Sonegadora”.
PARA ENTENDER MELHOR
Veja algumas das propostas mais polêmicas do pacote do governo do Estado que está em votação na Assembleia
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PEC DOS DUODÉCIMOS
O que é: alteração dos artigos 146 e 156 da Constituição Estadual. Com isso, os repasses dos duodécimos dos poderes serão calculados pela Receita Corrente Líquida efetivada, limitados ao orçamento previsto. A economia prevista é de R$ 575,7 milhões (considerando dados de 2015). Hoje o Executivo repassa à Assembleia, Judiciário, Ministério Público, Tribunal de Contas e Defensoria aquilo que está previsto, sem base no efetivamente arrecadado.
PEC DO SALÁRIO
O que é: medida retira do texto a data-limite de pagamento dos vencimentos dos servidores até o último dia do mês. Após aprovação, o governo pretende propor um calendário escalonado, priorizando os menores salários e dando maior previsibilidade de pagamento aos servidores do Estado e autarquias. Servidores criticam a proposta por acreditarem que ela permitiria ao Palácio Piratini atrasar ainda mais os salários do funcionalismo.
PEC DO FIM DOS PLEBISCITOS
O que é: proposta retira a obrigatoriedade de realização de plebiscito para privatizar a Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE), a Companhia Riograndense de Mineração (CRM), a Companhia de Gás do Estado do Rio Grande do Sul (Sulgás) e a Companhia Estadual de Silos e Armazéns (Cesa). É uma das propostas mais difíceis de serem aprovadas pela Assembleia. Há deputados de partidos da base aliada, como PSDB, PP e PDT, contrários à medida.
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EXTINÇÃO DE ÓRGÃOS PÚBLICOS
O que é: o governo propõe, em projetos diferentes, o fim de nove fundações, uma autarquia e uma companhia. As atividades executadas por cada um dos órgãos seriam contratadas pela iniciativa privada ou absorvidas pelas secretarias da atual estrutura. Mais de mil funcionários seriam demitidos. Até a noite de ontem, a tendência era de que o governo não conseguirá extinguir todos os órgãos. Há incerteza sobre a FEE, a Fepagro e a Cientec, por exemplo.
REVISÃO DE CRÉDITOS FISCAIS
O que é: visa à redução de 30% nos créditos fiscais presumidos referentes a 2016, 2017 e 2018. Benefícios concedidos a vários setores da economia seriam cortados para aumentar a arrecadação. A economia prevista com a medida é de R$ 300 milhões ao ano. Deputados, inclusive da base aliada, têm ligação com setores produtivos que seriam afetados pela medida, o que dificultaria a aprovação. Uma das possibilidades é modificar o índice de redução.
Na Praça da Matriz, barulho e confusão
Em frente à Assembleia, além do barulho permanente de cornetas, houve confusão em vários momentos. No início da tarde, após um confronto entre manifestantes que faziam vigília na Praça da Matriz e a tropa de choque da Brigada Militar, o acesso às ruas do entorno ficou bloqueado por alguns minutos até para quem estava a pé – inclusive moradores daquela região.
Com o acesso principal da Assembleia fechado, o ingresso ocorria pela entrada lateral. Ali, porém, muitas pessoas – inclusive profissionais da imprensa – foram impedidos por manifestantes de passar pelos gradis. A equipe da Gazeta do Sul só conseguiu após muita insistência e, logo em seguida, um dos manifestantes disse a outros: “Agora ninguém passa mais”. O grupo estava revoltado com o fato de haver um número limitado de senhas para acompanhar a sessão das galerias. Um repórter da Rádio Gaúcha chegou a ser atingido com uma pedra na cabeça.
Os confrontos se repetiram em outros três momentos, quando novamente manifestantes derrubaram parte dos gradis e policiais avançaram usando bombas de gás – o som das explosões chegava a ser ouvido de dentro do plenário. Em outro momento, um homem que estava em meio à vigília foi identificado como um suposto infiltrado do Movimento Brasil Livre (MBL), que apoia o pacote, e teve que correr, sendo perseguido por várias quadras até se abrigar em um prédio.
Susepe decide entrar em greve
Em assembleia na Praça da Matriz enquanto a sessão na Assembleia transcorria, servidores da Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe) decidiram entrar em greve em protesto contra o pacote. A paralisação começou às 18 horas e deve prosseguir pelo menos até a conclusão da votação. Um dos projetos altera a carga horária da categoria. A tendência é que os agentes mantenham só atividades como alimentação e atendimento médico.
Privatização, o desafio maior para o governo
A proposta que dispensa a necessidade de plebiscito para privatização ou federalização de companhias estaduais é a que enfrentará mais dificuldade para ser aprovada. A avaliação foi feita pelo deputado estadual Edson Brum (PMDB), um dos únicos da base aliada que garantiram apoio integral ao pacote.
A mesma impressão tem outro integrante da bancada do Vale do Rio Pardo, Adolfo Brito (PP). Segundo ele, a tendência é que algumas bancadas votem em bloco contra a medida – Brito diz que vai apoiar a maior parte das propostas, que considera necessárias, mas não garante ficar ao lado de todas. Uma das bancadas aliadas que resiste à ideia é a do PDT. “Desde o início, deixamos claro para o governo que não teríamos como apoiar”, disse Gilmar Sossella (PDT).
Propostas com mais resistências ficam para o fim
Ao todo, são 26 projetos no pacote de ajuste fiscal. A ordem de votação foi definida em uma reunião de líderes de bancada no fim da manhã. O acordo obtido pelo governo para assegurar que a análise começasse ainda ontem prevê que as propostas mais polêmicas ficariam para o final – é o caso da que reduz o orçamento dos demais poderes; a que altera as datas de pagamento dos salários dos servidores e a que retira a necessidade de plebiscito para privatização ou federalização de companhias estaduais. Também são esses os projetos que enfrentam mais resistências na base aliada, o que deve fazer com que o Piratini continue fazendo articulações.
À tarde, o líder de governo Gabriel Souza (PMDB) admitiu a possibilidade de o Piratini ter que ceder em alguns pontos dos projetos para garantir a aprovação. “Aqui é a casa do possível, não a casa do ideal”, disse. Por serem propostas de emenda à Constituição (PECs), algumas dessas matérias precisam passar por duas votações.
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