O selador ainda estava fresco nas paredes externas da casa número 960 da Rua Walder Rude Kipper, no Loteamento Motocross, Bairro Arroio Grande, no início da noite de 23 de setembro de 2019, uma segunda-feira. Naquela tarde, Tiago Aliandro Kohlrausch, de 30 anos, e a namorada Ana Paula Borstmann dos Santos, então com 27, tinham dado início a uma pequena reforma na residência.
Enquanto ele passava o produto, a mulher cortava a grama do pátio e lavava o Omega Suprema prata, que estava na garagem. As semanas anteriores tinham sido de descontração para o casal. Combinaram de tirar férias juntos e estavam aproveitando o momento. Tiago era mecânico concursado da Prefeitura de Santa Cruz do Sul e Ana era farmacêutica em Pantano Grande.
Mas os dias de folga a bordo da Honda Twister vermelha de Tiago, nas viagens ao Uruguai ou às praias do Litoral Gaúcho, foram os últimos dos dois juntos. “Penso que aqueles momentos felizes que tivemos foram a nossa despedida”, contou Ana, hoje com 29 anos. A tinta verde, escolhida pelo casal para pintar a casa, dada de presente pelo pai de Tiago, Dirceu, não foi aplicada no dia seguinte, como planejado.
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Por volta das 19h30 daquela noite, Tiago foi assassinado com quatro tiros, um na cabeça e outros três no peito, dentre 12 efetuados por matadores com pistolas calibre 380. Com hemorragia interna, Kohlrausch acabou falecendo no local. O caso ganhou ampla repercussão. Dois meses depois, em um inquérito com mais de 350 páginas, assinado pelo delegado Alessander Zucuni Garcia, a 2ª Delegacia de Polícia (2ª DP) indiciou como suposta mandante do crime a jovem Patrícia D’Ávila da Luz, então com 19 anos, mãe do único filho de Tiago, de 1 ano e cinco meses na época.
Atualmente presa preventivamente no Presídio Regional de Santa Cruz, a jovem irá a júri popular nesta quarta-feira, 15, no Fórum, uma semana antes de o crime completar dois anos. Assim como o pai de Tiago, Ana Paula acompanhará o júri presencialmente. Em entrevista à Gazeta do Sul, a namorada da vítima relembrou momentos vividos pelo casal, e revelou detalhes da fatídica noite em que ele foi morto.
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“Eu espero que justiça seja feita, tanto de Deus quanto dos homens. Não tem vez que eu durma sem antes pensar no que eu poderia ter feito aquela noite para tentar salvar o Tiago. Depois disso, eu quase enlouqueci. Larguei meu emprego porque não conseguia trabalhar sem chorar, fiquei oito meses parada, fiz terapia, o que ajudou bastante, mas ainda hoje machuca muito. A gente fica doente com a maldade dos outros, eu nunca vou conseguir entender por que fizeram isso com ele”, disse Ana Paula.
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No domingo, um dia antes de sua morte, Tiago viu o filho pela última vez. “Nada justifica matar pessoas, mesmo as que cometem crimes como tráfico de drogas e roubo. O que dirá ele, que não fazia nada de errado, só queria ver o filho. Tem tanta mãe querendo que o pai procure, seja presente, pague a pensão. E ele só queria ter a oportunidade de fazer isso e o direito de conviver com o filho dele.”
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Patrícia D’Ávila da Luz e o seu companheiro na época, o advogado Renato Andrade Ferreira, hoje com 33, foram indiciados por homicídio triplamente qualificado (por motivo torpe, emprego de meio cruel e uso de recurso que dificultou a defesa da vítima). Conforme as conclusões do delegado Alessander Zucuni Garcia, Patrícia e o padrasto da criança teriam planejado e coordenado o assassinato de Tiago. O objetivo seria afastar o pai biológico do filho.
Dois matadores de aluguel teriam sido contratados, vindos de Eldorado do Sul, na Região Metropolitana, com um motorista de aplicativo, até Santa Cruz. Teriam sido deixados nas imediações do Lago Dourado e seguiram em outro carro até a casa de Tiago para cometer o crime. Segundo a polícia, Gabriel Nascimento da Luz, de 52 anos, tio de Patrícia, seria o dono do veículo utilizado pelos matadores que foram à casa da vítima. A Polícia Civil encontrou o carro em Salto do Jacuí, mas os dois pistoleiros jamais foram localizados. Gabriel responde por homicídio duplamente qualificado. Na casa dele, no Bairro Santo Antônio, a polícia também apreendeu duas espingardas. Renato e Gabriel serão julgados em um momento posterior.
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“Lembro que naquele dia observei que tinha um carro parado na esquina, com o vidro fechado, mas nunca pensei que poderia ser alguma coisa relacionada a crime. Depois de trabalharmos na casa, pelas 18h30, o Tiago e o pai dele foram a Vera Cruz para comprar um Fusca, pois queriam fazer rally quando fôssemos à praia”, relembra Ana Paula. Empolgados com a aquisição, pai e filho voltaram à residência, no Loteamento Motocross.
Depois do banho, Ana Paula ficou deitada, assistindo a uma série, enquanto o namorado arrumava os veículos no pátio e o pai de Tiago foi embora. “Nisso, começaram uns barulhos do lado de fora. Pensei que ele tinha colocado uma bateria para carregar e tinha estourado. Fiquei nervosa, esperando ele entrar, mas não vinha.” Foi então que Ana Paula resolveu sair para o pátio e ouviu uma respiração ofegante, do outro lado do Omega Suprema.
“Achei que ele tinha levado um choque, liguei para o pai dele, não tinha coragem de ir ver porque pensei que estava todo queimado. Nesse momento notei um furo no carro e, no chão, ao lado, um líquido escorrendo, que imaginei que fosse óleo, mas era o sangue do Tiago.” Segundo a namorada da vítima, uma policial que morava nas proximidades rapidamente chegou ao local, após ouvir os disparos, mas os criminosos já haviam fugido. “Ela me contou tudo que tinha acontecido, que já tinha chamado o Samu e polícia. Naquele momento, meu mundo desmoronou. Nunca imaginei que fosse acontecer isso.”
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Embora fosse mecânico em Santa Cruz, Tiago passava bastante tempo em Pantano Grande, na casa de Ana Paula. “Ele era uma pessoa maravilhosa. Era com quem eu imaginava passar o resto da minha vida. Sempre fui muito difícil em relacionamentos, e ele era muito calmo, tranquilo, me acalmava.” Ana revela que chegou a engravidar de Tiago, mas perdeu o filho durante a gestação.
Os dois se conheceram em 2017, pelo aplicativo Badoo. “Começamos a conversar e não levei a sério, no início. Mas ele foi muito respeitoso e começamos a nos aproximar. Marcamos de nos conhecer em um balneário de Rio Pardo, depois fomos juntos de moto ao Viaduto 13, em Vespasiano Corrêa. A partir disso, ficamos próximos e não nos separamos mais”, contou Ana Paula.
“Eu sempre falava que queria casar com ele. Era meu porto seguro. Hoje, depois de tudo que aconteceu, não consigo me relacionar com outras pessoas. Não sinto nada, pois ficou um vazio que não recupera, nunca mais vai ser igual.” Ela conta que tem proximidade com o filho de Tiago, nas visitas que a criança, hoje com 3 anos, faz ao avô paterno, Dirceu.
“Procuro falar do pai para ele. Mas é doído. Me coloco no lugar dessa criança, e fico imaginando o que ela vai pensar sobre o porquê de seu pai ter morrido, quais os motivos. Não tem explicação. Eu sinto muita indignação. Não sei quando isso vai melhorar. Talvez depois do julgamento”, finaliza.
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Marcado para começar às 9h30 desta quarta-feira no Fórum de Santa Cruz, o júri popular será presidido pela juíza Márcia Inês Doebber Wrasse, da 1ª Vara Criminal do município. Sete pessoas da comunidade farão parte do corpo de jurados. Estes serão sorteados na hora, a partir de uma lista com 25 nomes. Tanto a defesa de Patrícia como a acusação terão o direito de negar três jurados cada, para que outros sejam sorteados dentre os restantes.
Após o depoimento das testemunhas, o promotor criminal Flávio Eduardo de Lima Passos terá uma hora e meia para apresentar as acusações. Parte desse tempo poderá ser disponibilizada ao advogado da família da vítima, Frederico Eick Martins, se assim o promotor decidir. O mesmo tempo de uma hora e meia será destinado à defesa de Patrícia, feita pelo escritório Agostini Kist Böhm & Kist (AKBK) Advogados, que terá uma equipe com sete advogados. Dois deles, Roberto Weiss Kist e Roberto Vanderli Kist, irão dividir o período. Depois disso, se o promotor quiser realizar uma réplica, contará com mais uma hora.
Se ele optar por essa prerrogativa, os advogados de defesa terão o mesmo tempo. Por fim, em uma sala reservada, a juíza irá perguntar aos jurados se condenam ou absolvem Patrícia D’Ávila da Luz. A Gazeta do Sul entrou em contato com a defesa da mulher. Segundo o advogado Roberto Weiss Kist, sua cliente nega ter sido a mandante do crime. “Nossa estratégia busca esclarecer a verdade dos fatos. Que ao final possa ser feita justiça. Acreditamos na liberdade da Patrícia”, disse o sócio da AKBK. O processo completo sobre o caso chegou a cinco volumes e tem 716 páginas.
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