Alguém poderia ter imaginado, no Natal passado, que seis meses depois estaríamos todos andando de máscara, atendendo a apelos das autoridades e ao nosso instinto de autopreservação, para nos resguardarmos contra um inimigo invisível e traiçoeiro que assombra e mata? Que ficaríamos meses reclusos em casa, apartados não só dos amigos, mas até dos familiares?
Fiquei divagando sobre essa inusitada peça – a máscara – que incorporamos à indumentária, hoje tão necessária quanto a jaqueta que vai nos abrigar do frio ou o tênis que vamos calçar para sair à rua, quando me veio à mente o teor de uma aula do curso de Filosofia. Por sinal, a derradeira, e por isso tão marcante que não se apagou da memória. Foi o desfecho de um ciclo de formação e que abriu portas para novos horizontes.
Éramos apenas dois alunos na sala, quando o professor de Psicologia anunciou o tema daquela aula. “Vamos falar sobre máscaras”, disse, em tom grave. Naturalmente que não se referia à peça de tecido, de TNT, polipropileno ou algo similar que usamos hoje para nos proteger contra o coronavírus. A aula versava sobre as teorias de Carl Jung e os expedientes que adotamos ao longo da vida para darmos forma, conscientemente ou não, aos diferentes papéis que representamos no contexto familiar, no trabalho ou nos grupos sociais que frequentamos.
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Eu estava com uma enorme ressaca por conta da insurreição que havíamos cometido na noite anterior. Precisávamos expor – assim pensamos – nossa inconformidade com restrição social que nos foi imposta e acabamos passando dos limites.
Nada demais para os padrões de hoje, mas pitamos cigarros onde não devíamos e tomamos algumas doses de conhaque, coisa que, obviamente, era proibida segundo os protocolos da instituição. Por isso, o teor da aula e as palavras do professor soavam como uma repreensão. “As máscaras escondem o que e quem realmente se é. Levam a uma vida de fachada, a um duplo eu: o que se é e o que fingimos ser.”
Fiquei pensando que aquilo não devia ter sido coincidência. Sim, o professor deve ter escolhido o conteúdo para passar uma carraspana em quem havia transgredido as regras no dia anterior.
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O que poderia querer? Que me declarasse culpado? Arrependido? Fiz de conta que não entendi. Afinal, racionalizei, máscaras – não as que colocamos para encobrir o rosto, mas as que adotamos para definir a forma como nos mostramos aos outros e como queremos ser vistos – também servem para nos proteger. Nos fazem parecer fortes e corajosos quando estamos apavorados; cordiais quando estamos explodindo; tolerantes até para justificarmos nossos erros.
Talvez o professor tenha mencionado um ou outro aspecto que remetesse ao uso saudável de máscaras convencionais no dia a dia para domar os excessos e as extravagâncias dos nossos impulsos. Mas não foi o que guardei daquela aula. Ele me fez sentir culpado. “Quem usa máscara para parecer o que não é esconde a si mesmo, deixa de ser autêntico, não assume os seus atos”, ele falava. Me rendi.
Muitos anos se passaram e já não é a ressaca que me pune, mas a angústia de sair desta pandemia. Com máscara emocional ou social ou com um pano no rosto que nos torna por vezes desconhecidos até para os conhecidos, espero que não nos esqueçamos da verdadeira face: a nossa real identidade. Não melhores do que somos, nem tão frágeis como por vezes as circunstâncias da vida nos fazem parecer. Apenas nós mesmos!
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