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Somente o cinza

Sem muito entusiasmo por parte da população, as eleições se aproximam. Motivos para desencanto não faltam. Mas se a situação com eleições não é boa, pior sem elas. Muito pior. O voto ainda é o único instrumento para garantir alguma forma de pluralismo político – e o pluralismo é sempre um bem em si mesmo, independentemente das opções que o constituem, da qualidade ou falta de qualidade das alternativas. E é um direito. Se temos direitos e liberdades, precisamos usá-los. Qualquer dia podemos perdê-los, nunca se sabe quando. 

Difícil mesmo é o clima que tomou conta do ambiente público. Ninguém mais tem interesse em dialogar; “debater” tornou-se um eufemismo para agredir o interlocutor/adversário. O que você tem a dizer pouco ou nada importa, interessa apenas quem você é ou “de que lado está” (porque de um lado você precisa estar). E os patrulheiros estão sempre atentos: os vigilantes da boa política e da moral, do comportamento adequado e aceitável. Vivem de um lado para outro carregando seus pedestais portáteis, em alerta constante para o menor passo em falso. Basta um passo equivocado e pronto: você tem direito a ficar em silêncio enquanto é execrado por algum tribunal virtual (ou não). A única saída é a retratação: “Eu errei em pensar e falar dessa forma, prometo que nunca mais vai acontecer”. Patético. 

“Democracia” é um conceito que pressupõe a convivência de visões diferentes, até opostas; ele se alimenta da multiplicidade de opiniões. O que temos hoje é um anseio violento pelo pensamento único, por uma sociedade monolítica. O caldeirão político no Brasil de hoje mistura religião, nacionalismo e a polarização ideológica da Guerra Fria. Nele não há espaço para nada além de heróis e vilões, santos e demônios, patriotas e traidores. A consequência natural é a tendência a perseguir e silenciar. E tome repetição de slogans baratos, notícias falsas, apelo ao preconceito popular, autojustificativas, fórmulas mágicas e sermões pomposos quando se exigem evidências – e um total desprezo pela inteligência dos cidadãos.

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Isso não deixa de ser o cenáro da barbárie, nos termos em que fala o filósofo Theodor W. Adorno: uma sociedade na qual coexistem o mais alto desenvolvimento tecnológico e “uma agressividade primitiva, um ódio primitivo ou, na terminologia culta, um impulso de destruição”. Gente se engalfinhando nas ruas por “ideias ideológicas”? “É necessário contrapor-se a uma tal ausência de consciência, é preciso evitar que as pessoas golpeiem para os lados sem refletir a respeito de si próprias”, diz Adorno. O comentário dele, feito no fim da Segunda Guerra a partir das revelações sobre Auschwitz, continua tristemente oportuno.

“Chega de branco e preto. Somente o cinza é humano”, disse o escritor Romain Gary. Dessa constatação, poderíamos definir um projeto para este século ainda jovem, mas tão turbulento: combater não o mal em nome do bem, mas a segurança daqueles que pretendem sempre saber onde estão o bem e o mal; não o diabo, mas aquilo que o faz possível: o próprio pensamento maniqueísta, binário. 

Pessoas que rejeitaram o maniqueísmo não perseguem outras por suas opiniões, não criam inimigos imaginários, não tentam resolver divergências eliminando quem discorda. Já o “campeão da verdade”, às vezes, só quer bodes expiatórios para compensar suas frustrações. Eventualmente, esses “bodes” podem transcender a esfera individual e se transformar em grupos inteiros: políticos, étnicos, religiosos, etc. A História mostra.

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