Romar Beling

Silviano Santiago: um gigante nos trópicos

O professor, escritor e ensaísta mineiro Silviano Santiago, 87 anos, é um dos principais intelectuais da atualidade no Brasil e na América Latina. Autor de obras de consulta indispensável no ambiente de Letras, Literatura e Comunicação Social, propõe reflexões com visada ampla sobre a realidade social e cultural.

Por vários de seus livros, entre os quais Mil rosas roubadas, a celebração do afeto, e Machado, declarada homenagem ao fundador da Academia Brasileira de Letras (ABL), recebeu premiações. Novo volume de ensaios, Grafias de vida – a morte, que saiu em 2023 pela Companhia das Letras, foi anunciado na semana passada como finalista do Prêmio Jabuti, o mais valorizado da literatura nacional. Ele já conquistara esse destaque na categoria romance com Machado, em 2017. Em 2022, também recebeu o prestigioso Prêmio Camões.

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Natural da cidade de Formiga, de 68 mil habitantes, a 167 quilômetros de Belo Horizonte, Silviano está radicado no Rio de Janeiro e cumpriu exitosa carreira como professor. Doutor em Letras pela Sorbonne, por muitos anos lecionou em referenciais universidades norte-americanas, até se integrar à PUC-Rio e, posteriormente, tornar-se emérito da Universidade Federal Fluminense (UFF). Em 2021, com a obra Menino sem passado, revisitou a sua infância. Ele concedeu entrevista exclusiva à Gazeta do Sul, em trocas de mensagens por e-mail e por celular.

Entrevista

Em ensaios do livro Grafias de vida – a morte, o senhor revisita mestres como Murilo Mendes, Mario de Andrade, Carlos Drummond de Andrade… Cerca de um século depois de eles terem produzido sua obra, e de terem revolucionado a cena cultural, no que, especialmente, transparece a atualidade deles?

Escrevo ensaios literários. A sua graça se confunde com o conhecimento específico, a arte, e outro mais amplo, o do mundo em que vivemos. Esses dois conhecimentos estão arquivados na mente hardware do ensaísta. Os artistas e as ideias são convocados e sua leitura é orientada pelos argumentos que o ensaísta pretende levantar para o leitor, desenvolver no papel e provar com exemplos concretos.

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A intenção básica dos ensaios de Grafia de vida – a morte é a atualidade na arte e no mundo. Para que o ensaio literário se aproxime da altitude a que ele chegou no campo da filosofia, e cito a obra clássica de Montaigne, é preciso que o pensador toque o presente e dele se distancie em perspectivas opostas, o passado e o futuro. O “agora” da atualidade literária tem as suas raízes nacionais e planetárias, e os poetas, prosadores e pensadores convocados a participar dos textos são a quem devemos o que somos aqui no Brasil e lá fora. Contam muito as boas e as más intenções do ensaísta.

O senhor também evidencia a atenção e o carinho para com autores latino-americanos. Por que, de maneira geral, sempre foi tão difícil e complicado para os brasileiros estabelecerem pleno diálogo com seus vizinhos de língua espanhola na cena artística? Seria a própria língua um empecilho? Ou vai muito além disso?

Talvez a falta de diálogo entre vizinhos tenha o seu início no momento em que as várias nações latino-americanas ganharam autonomia da Europa. Os grupos letrados, no afã de manter em casa o padrão europeu de modernidade, descartavam o convívio cultural e intelectual com os vizinhos e optavam pela viagem transatlântica. Comunicavam-se in loco com os grandes centros europeus.

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Daí a América Latina guardar um forte eurocentrismo, que não está presente nas jovens nações africanas, emancipadas pelo liberalismo americano ou pelo comunismo soviético. Em virtude da língua comum, a comunicação entre vizinhos na América Latina se dá melhor do lado espanhol (é o caso do inglês e do francês hoje na África – português e espanhol estão fora da grande jogada). Nós, brasileiros, acabamos por optar e por sofrer um duplo isolamento, ontem o do contato direto com a Europa e hoje com os Estados Unidos, tendo sempre nações mais distantes ainda de permeio, ontem a União Soviética e hoje a China. E o isolamento maior, de ter a língua portuguesa como oficial.

Na avaliação do senhor, ainda hoje esse diálogo latino-americano é mais fraco do que poderia ser? Ou já é bem mais efetivo e produtivo?

Acredito que a importância dada ao saber universitário nos últimos 70 anos tenha desempenhado um papel relativamente importante na implementação do diálogo entre as nações latino-americanas. Acredito que o nosso melhor entendimento advenha hoje mais das semelhanças nos graves problemas de “formação” (leiam-se Gilberto Freyre, Sérgio Buarque e Caio Prado) e nos impasses levantados e salientados pelo conhecimento científico, tanto o hard e econômico como o social e cultural. A boa convivialidade advém menos da viagem turística ou de familiares. Advém mais da pesquisa universitária e dos livros acadêmicos (aliás, hoje reconhecidos pelo Jabuti). Claro que o esporte também tem a sua fatia. Mas aí a matéria é delicada e, por se fundamentar mais com cifrões e fanatismo, desperta mais o entusiasmo patriótico que o saber humanista.

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O senhor atuou como professor e interlocutor de universidades e instituições fora do Brasil. Como os brasilianistas de hoje, por assim dizer, veem nossa literatura e nossas artes? Ainda com olhar limitado ou pouco atento a nossas questões?

Permita-me uma reflexão de ordem geral sobre limitações e atenção ao Brasil e à América Latina. Tentamos minimizar a importância de Cuba na infiltração positiva no mundo dito civilizado das artes e da literatura latino-americana. Isso se deu evidentemente nos idos de 1960 e, no caso da prosa literária, passou das Américas para Barcelona, centro do famoso boom que deu García-Márquez. O interesse despertado no final do século 20 por Nelson Mandela na África do Sul pode nos ajudar a compreender melhor a curiosidade de então pela América Latina e, nesta, pelo Brasil. Inventam-se planos de ajuda setorizados e globalizados semelhantes. Também se inventam semelhantes planos de desenvolvimento, de expansão e progresso. E ainda são inventados planos de “entendimento mútuo”, forçados por investimentos em moeda forte. E assim por diante.

Isso não deve ser tomado como um Fla x Flu. Acredito que seja mais uma dessas formas mal estudadas e estranhíssimas que o Ocidente inventa para incluir os povos não ocidentais a ele mesmo. São formas modernas de ocidentalização em tudo e por tudo semelhantes às famosas missões culturais que se iniciaram, no Brasil, com a famosa missão francesa em tempos, pasme-se!, de D. João VI. A matéria é explosiva e mereceria livros e não dez linhas. Poderíamos remontar aos objetivos do “Diretório dos Índios”, de 1757, do Marquês de Pombal, mas aí já mereceria tratados.

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No novo livro, salienta-se o respeito e o conhecimento em torno do trabalho de artistas plásticos (brasileiros e latino-americanos) e da pertinência da “leitura” que fazem do mundo atual. Eles foram “eficientes” ou efetivos ao estabelecer pontes entre culturas ou aproximá-las?

Com a intenção de pôr os pingos nos is, devo dizer que é para isso que existem o estudo e os livros. Corretamente, você põe aspas na palavra leitura. Estamos falando de cultura, de obras que interpretam – economicamente, socialmente, artisticamente etc. – isto a que se chama América Latina, uma parte do planeta.

Não afirmo isso com a intenção de desmerecer o diálogo participante, em geral oral, que se baseia mais no relacionamento interpessoal, diálogo hoje presente, sustentado e avaliado pelas redes sociais. Em tempos de crise, e nós a vivemos por todos os cantos do planeta, esse diálogo, de teor político e quase sempre com tomadas de posição nitidamente ideológicas, é bem mais “pertinente” e “eficiente” (para me valer das suas palavras). Grafias de vida – a morte é apenas um livro. E o seu autor não ambiciona a condição de “herói” nas redes sociais.

O senhor faz menção ao cânone da literatura, advertindo que, em lugar do adjetivo “brasileira”, talvez se devesse ampliar o olhar para o panorama de toda a literatura escrita em língua portuguesa. Como, nos dias atuais, um termo como o de “canônico” ainda se justifica, ou como subsiste?

Harold Bloom tem o copyright da palavra cânone. Prefiro hoje, em tempos democráticos, dizer que existem best-sellers e long-sellers. Os primeiros são devidamente avaliados pelo mercado e trazem portanto uma estética compatível com o que é passível de ser consumido pelo leitor no imediato da mais valia, que não vai acabar, seu Edgar. Exemplo canônico de best-seller o temos, Paulo Coelho.

Os long-sellers são devidamente avaliados pelo tempo ou, se quiser ser pernóstico, pela leitura crítica, e trazem portanto uma estética (ou seja, uma composição) que se torna mais e mais evidente em virtude de o artesão acreditar (certo ou errado) que o objeto que fabrica constrói o seu próprio leitor e sua própria temporalidade. Exemplo canônico de long-seller também o temos, Machado de Assis. Ele esteve no século 19 e hoje, no século 21, está até no X do Elon Musk. Aliás, o X não é a incógnita?

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Nesse sentido, o que o Brasil tem de melhor, ou de mais revolucionário, a evidenciar em sua contribuição para a literatura em língua portuguesa atualmente produzida?

O que lhe disse na resposta anterior me dá a garantia de lhe dizer que não compete a um indivíduo, ainda que com boa formação, fazer avaliação tão temerosa.

Como o senhor avalia e acompanha a literatura produzida no Brasil na atualidade? O que a salienta ou a diferencia, no mundo atual?

Para não variar, o mundo atravessa de novo uma época complicada. O Brasil não está fora. Está dentro, com problemas antigos que são ainda atualíssimos. Eis a nossa condição presente: como tratar hoje algo, o genocídio indígena e a escravização do africano por diáspora forçada, que se incorporou de tal modo à dita cultura da cordialidade, algo que absurdamente ganha o nome de “preconceito” e fica contente.

A arte da palavra, a literatura, vive um paradoxo. Passa por um momento em que a palavra conta menos que a ação. Esse paradoxo nos vem do affaire Dreyfuss e da análise pertinente de Julien Benda nos anos 1920. Benda lhe emprestou um sentido, um significado a que deu o nome de “a traição do homem de espírito”. Durante as grandes crises por que passa a humanidade, a ação mobiliza mais o intelectual que o pensamento. Mário de Andrade foi sensível ao pensamento de Benda nos anos 1930. Ele diz em carta a Murilo Miranda que o poeta nele “se suicida” para fazer uma “arte de ação”.

O senhor tem recuperado passagens de sua própria trajetória de vida e de formação, sendo que a gênese de Menino sem passado, especificamente, inclusive inspira artigo no novo livro. É a oportunidade de rever ou de re-iluminar vivências? Como tem sido esse processo criativo?

Talvez devido a minha complexa formação (mineira, brasileira, europeia, norte-americana e latino-americana, nessa ordem), sempre acreditei que o que pensava ou inventava, ensinava em aula ou escrevia em livro, tinha a ver com o entre-lugar que me constituiu enquanto professor, artista, crítico e ser humano.

Não distingo com tanta clareza o que é experiência de vida e experiência de leitura (já vê aí a sobra de algum bovarysmo), como não distingo o corpo do mundo em que ele vive ou sobrevive (aí elementos da fisiologia da composição artística).

Na medida do possível, tento limitar cada um desses lugares à sua própria força, ao seu próprio impulso, mas nunca os impeço de forçar a comunhão com outras forças e outros impulsos. Acredito que o ser humano na atualidade é o que descobre ser indispensável a ubiquidade (esclareço: estar presente em toda parte) no momento da reflexão e da invenção. Já qualificaram a isso de simultaneísmo. Prefiro acreditar que cada ser humano é sincrônico e diacrônico a todo instante da vida.

Ao longo de sua caminhada, o senhor tem tido contato, proximidade ou amizade com muitos escritores gaúchos? Quem mencionaria, e como é a relação do senhor com a cultura do Rio Grande?

Um dos meus melhores amigos é gaúcho, o professor Dionísio Toledo, casado com Réa. Ele já era professor em Paris III quando o conheci. Acompanhou-me durante a redação do romance Em liberdade (tinha recebido uma bolsa e a aproveitei dessa forma). Sem a ajuda dele, não teria tido a minha experiência de vida e ensino em Paris, aqui reconhecida publicamente. Dele herdei uma boa amizade com as colegas Maria da Glória Bordini e Regina Zilbermann. Paulo Hecker, Luiz Carlos Maciel, Moacyr Scliar, Caio Fernando e João Gilberto foram bons companheiros em folias literárias no Brasil e no estrangeiro. À distância, sou admirador de Augusto Meyer (o mais instigante dos leitores de Machado de Assis), Raimundo Faoro e Mario Quintana. Mas o primeiro e mais produtivo contato com o Rio Grande do Sul data de 1950, ainda em Minas Gerais. Foi com a Editora Globo e as magníficas traduções de clássicos e modernos.

O senhor homenageia o jornalismo cultural, por intermédio de Joan Didion. Que papel esse espaço aberto por veículos da imprensa cumpre ou pode cumprir, e como o senhor avalia essa editoria na realidade atual? Tem-se, também, uma crise do jornalismo cultural?

Mais importante que a crise do jornalismo cultural é a própria crise do jornalismo nos dias de hoje. É problema multifacetado e seus leitores entendem tanto da matéria quanto eu. Há que lamentar as condições empresariais e governamentais que conduziram a grande imprensa brasileira que me nutria desde os anos 1950 ao desaparecimento das bancas de jornal nas metrópoles.

Acerca de Menino sem passado, o senhor estabelece intertexto com o poeta francês René Char e a filósofa Hannah Arendt. Escrever e lembrar, em certo modo, é sempre “lembrar e escrever com”? A literatura se constitui em especial como memória coletiva, ou coletivamente inspirada?

Venho tentando desenvolver uma visão de literatura, de mundo contemporâneo, que minimiza o talento individual, sem o dispensar, claro, em favor de um apreço à tradição. Uso duas categorias que são caras ao crítico e poeta T. S. Eliot, talento individual e tradição. Não creio que a modernidade deve dispensar o autodidata e o artesão e favorecer apenas o artista.

Mas creio que tenham funções diferentes, na medida em que o primeiro se expressa pela espontaneidade aliada à fluência da subjetividade, muitas vezes oralmente, enquanto o segundo, pela reflexão aliada à invenção, muitas vezes sob a forma de escrita. Espontaneidade e reflexão, oralidade e escrita não costumam ser companheiras de cama, mas não são inimigas. Uma inveja a outra pelo que perde ao se impor como hegemônica, e assim caminha a humanidade.

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O senhor nasceu na pequena cidade de Formiga, em Minas Gerais. O quanto ter nascido nessa região afastada da capital, Belo Horizonte (sua cidade natal fica próxima da Divinópolis de Adélia Prado, não é?), foi determinante para a sua visão de mundo?

A resposta a essa pergunta me foi dada pelo bom amigo Felipe Fortuna, nascido no Rio de Janeiro e filho do famoso cartunista Fortuna. Ele me disse que uma das minhas qualidades (segundo ele) é a curiosidade intelectual. Ele não a tinha com a intensidade que eu lhe demonstrava porque eu tinha nascido e passado a infância na província. Quem nasce na capital federal dá tudo como já adquirido (“take it for granted”, para usar a expressão inglesa). Atualidade, melhor educação, vida social agitada, gibi, filme, teatro, museu etc. está tudo ali exposto aos olhos. Costumo complementar o dito pelo Felipe com um comentário sobre o modernismo. O melhor do movimento não é carioca, é paulista e mineiro nos anos 1920, e nordestino e gaúcho nos anos 1930. A modernidade brasileira é invenção das províncias.

GRAFIAS DE VIDA – A MORTE, de Silviano Santiago. São Paulo: Companhia das Letras, 2023. 344 p. R$ 119,90.

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Paula Appolinario

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