Se há um ponto de Santa Cruz do Sul que pode ser considerado determinante para o desenvolvimento do município, é a Estação Férrea. Inaugurada em 19 de novembro de 1905 – 56 anos após o início da imigração alemã –, ela era o marco inicial para os visitantes que pisavam pela primeira vez na cidade, após desembarcar dos vagões do trem.
A propósito, foi na festa de inauguração do terminal que o presidente da província na época, Antônio Augusto Borges de Medeiros, acompanhado de secretários e deputados, assinou o decreto que elevava a então Vila de São João de Santa Cruz à categoria de cidade. Segundo conta a coluna Memória, do jornalista José Augusto Borowsky, na data os visitantes ilustres chegaram às 17 horas em um vagão especial da maria-fumaça. Cerca de 6 mil pessoas foram à Estação Férrea recepcionar as autoridades na tarde de domingo. A população de Santa Cruz era de 11 mil naquele período – a vila possuía 5 mil moradores, e outros 6 mil residiam no interior.
Borges de Medeiros foi recebido pelo intendente Galvão Costa e outros líderes municipais. Ainda na estação, entre vivas e aplausos, assinou o sonhado decreto. Após os discursos e a execução do Hino Nacional, povo e visitantes subiram a pé pela Rua Ramiro Barcelos até a antiga Igreja Matriz (onde hoje está a Catedral) para a missa festiva. As ruas estavam enfeitadas com guirlandas, ramos verdes e bandeirolas.
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Após a missa, a comitiva seguiu em charretes até a sede do prado (onde hoje é a Secretaria Municipal de Educação). Lá ocorreu um grande churrasco e, à noite, autoridades participaram de baile no Clube União. A Aliança e o Clube Recreio Familiar também organizaram festividades. O ato foi um divisor de águas na história do que viria a se tornar um dos municípios mais pujantes do Estado, e deu início a uma nova fase de prosperidade impulsionada pelas exportações, que passavam pelo ramal ferroviário que ligava Santa Cruz do Sul à Estação do Couto (Ramiz Galvão, Rio Pardo) e dali seguiam à estrada de ferro Porto Alegre-Uruguaiana.
Por meio século, a Estação Férrea de Santa Cruz também foi o local de chegadas e partidas de visitantes e moradores. Porém, em razão da decadência do sistema ferroviário no País, o ramal acabou suprimido em 1965, seguindo-se a desativação da estação. Em 1967, o prefeito Orlando Baumhardt propôs criar o Campus (uma sede para faculdades) no local. O projeto, contudo, não seguiu adiante. Também buscou-se plantar árvores no terreno, porém, devido à cinza de carvão do trem enterrada no local, nenhuma vingou.
A estação passou um tempo abandonada e ameaçada de demolição, conforme documentos dos anos 1970: “Sem qualquer respeito à simetria e boa ordem que se constata em toda a cidade, está o obsoleto e abandonado conjunto da exEstação Férrea, comprometendo a bela paisagem da Metrópole do Fumo”, aponta um relatório da época. Mas, ciente da importância do ponto para a história da cidade, a comunidade mobilizou-se para a preservação do prédio. Em 1978, o Conselho Municipal de Cultura iniciou uma campanha para esse fim.
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Já em 1987, o prédio foi destinado ao Centro de Cultura Jornalista Francisco José Frantz – o nome foi uma homenagem ao fundador da Gazeta do Sul. Nessa mesma fase a estação foi restaurada, com orientação do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Em 1996 houve nova intervenção no prédio, que foi tombado pelo Município e reinaugurado. Para um lugar com tanta história, que testemunhou milhares de chegadas e partidas, nada mais justo que erguer uma praça no seu entorno para reunir a população. Conheça nesta reportagem um pouco mais sobre a história da Praça Siegfried Emmanuel Heuser, localizada junto à Estação Férrea.
Uma ideia que surgiu ao volante do carro
Irmã mais nova das principais praças do Centro de Santa Cruz do Sul, a Siegfried Heuser foi inaugurada em 28 de setembro de 2001 pelo então prefeito Sérgio Moraes. O evento teve discursos, atividades esportivas e shows musicais com Raça Júnior, Maria do Relento, William e Mackenzie e Eric e Henrique.
Além de um ponto de lazer, o novo espaço era uma solução para um problema social e ambiental. “Antes era um lixão bem no Centro da nossa cidade, invadido por andarilhos, pessoas que usavam drogas, com sujeira, ratos por todos os lados e outros animais, além de gente que se escondia para cometer delitos e outras coisas”, recorda o ex-prefeito Sérgio Moraes.
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Disposto a achar uma solução para a área nobre ao lado de um dos pontos culturais mais importantes da cidade, em meados de 2000 Moraes convocou uma equipe técnica para avaliar a situação. “Eles me apresentarem um projeto pesado, com concreto para todos os lados, em uma obra caríssima e faraônica, totalmente inviável do ponto de vista financeiro. Todos me disseram que não tinha como custear.”
O tempo passou, sem que uma solução fosse definida, pois todas as opções esbarravam no custo. “Me recordo perfeitamente que uma certa manhã, por umas 8 horas, saí sozinho de carro, de Cerro Alegre Baixo em direção a São José da Reserva, e aí me deu um estalo: como que não dá pra fazer? Que história é essa? Que prefeito sou eu que, cada vez que me dizem que não dá, eu aceito e fica por isso mesmo?” Tão logo encerrou um ato na localidade, Sérgio foi à Prefeitura planejar as ações. “Mandei um trator derrubar os muros que estavam de pé, limpar tudo, plantar grama, instalar luminárias, tudo de forma simples, barata, mas bonita e moderna. Com pouco dinheiro e bastante atitude, conseguimos resolver de forma rápida um problema grave que tínhamos ali.”
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Pista de skate com padrão internacional
Inaugurado em 18 de março de 2007 pelo então prefeito José Alberto Wenzel, o Skate Park Municipal veio preencher uma lacuna na prática desse esporte na cidade. Sonho há anos acalentado pelos skatistas, a pista em estilo overall, instalada na Praça Siegfried Heuser, conta com 900 metros quadrados de área construída e padrão internacional, permitindo praticar nas modalidades free-style, street e vertical. Comporta até 60 usuários simultaneamente. O complexo é composto por spine-funbox (caixote mais corrimão), spine com caixote, quarter com extensões e caixote, double set com escada, quarter, 45o com caixote em descida e bowl. O projeto foi criado pela empresa Flyramp, de São Paulo, e executado pela Treviplan Engenharia, em um investimento de R$ 223,8 mil da Prefeitura.
O skatista Paulo Edgar frequenta o local há cerca de sete anos. “É um baita espaço, que conecta esporte e cultura. É união de rua mesmo”, comenta. Ricardo “Varial Flip” Machado, considerado a lenda viva do skate local, ressalta o fato de Santa Cruz ter uma pista do porte da instalada na Siegfried Heuser. “Tem várias cidades que não possuem uma pista como essa. É um lugar pra galera praticar, e muita gente vem assistir”, diz o rapaz, que completou 28 anos nesta sexta-feira. O apelido “Varial Flip” remete a duas manobras de skate, suas preferidas. “Venho aqui desde que a pista começou. É um lugar em que me sinto bem.”
Além do Skate Park Municipal, a praça conta com quadra de areia, playground e academia ao ar livre. Esta foi inaugurada em 8 de dezembro de 2010, na gestão da prefeita Kelly Moraes. Além disso, uma pista para testes de velocidade de corrida foi inaugurada em dezembro de 2017, já na gestão de Telmo Kirst. O investimento foi uma parceria da Prefeitura, Kopp Tecnologia e Peçanha’s Runners.
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Obra representa a miscigenação de Santa Cruz
As comemorações da Semana da Pátria em Santa Cruz do Sul no início deste século eram marcadas por uma situação que incomodava a Prefeitura. Não havia um espaço fixo para a pira, que era instalada em pontos móveis. Diante dessa situação, em 2004 o Município encomendou uma nova estrutura fixa para o fogo simbólico na Praça Siegfried Heuser. Coube ao artista e escultor Alceo Luiz de Costa (na foto) trabalhar a obra em uma oficina no Cras Beatriz. “Lá eu ensinava meus alunos a soldar, para arrumar portões, grades e fazer reparos pequenos em domicílios. Quando chegou esse pedido da Secretaria de Educação, pensei que seria interessante criar um elemento de metal para segurar a pira da Pátria”, conta Alceo.
Segundo ele, não havia recursos para comprar matéria-prima. O jeito foi usar material reciclável. “No antigo depósito da Prefeitura havia muitos objetos descartados, como engrenagens, peças de caminhão, de Kombis e outros, que iriam para o lixo. Resgatamos isso e levamos ao Cras Beatriz”, conta o escultor. Esses materiais, somados a outros coletados pelos alunos em suas próprias casas, como enxadas velhas, facões e martelos, foram dando sustentação ao corpo da estrutura, mediante solda elétrica.
A fisionomia foi cuidadosamente pensada pelos alunos. “Deixei na mão deles escolher a forma do personagem. Então quiseram fazer um rosto com feições da raça negra, o cabelo de alemão e o nariz do Michael Jackson”, relembra Alceo. “O corpo remete ao de um atleta e trabalhador. No contexto geral, simboliza a miscigenação das raças que compõem o povo de Santa Cruz do Sul. Com exceção do nariz do Michael Jackson, é claro”, brinca.
A empresa Bortoaço doou os canos e eletrodos para a cruz que fica junto à mão esquerda da escultura. Na mão direita foi instalada a pira, posteriormente desativada. “Fiz um dispositivo para um tipo de pavio que hoje não tem mais fabricação. Se fosse utilizar novamente, precisaria fazer uma adequação”, explica o artista.
Ao visitar o local com a reportagem da Gazeta do Sul, Alceo notou uma “adaptação” feita em sua obra. As unhas dos pés do personagem foram pintadas com tinta laranja. Se para alguns o ato pode ser considerado vandalismo, para ele é mais uma forma de expressão. “Antes pintarem algo relacionado à arte e cultura, do que estarem por aí usando droga”, diz. Ele ainda revela uma peculiaridade sobre a obra: eram para ser dois elementos segurando a pira, em vez de um. “Pela falta de recursos, não conseguimos fazer o segundo, que seria uma mulher. Mas quem sabe um dia a gente termina…”
Homenagem a um homem de princípios
Siegfried Emmanuel Heuser nasceu em Santa Cruz do Sul em 22 de outubro de 1921. Fez seus estudos iniciais no Colégio Mauá e formou-se em 1943 como economista na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufgrs). Exerceu intensa atividade política, elegendo-se várias vezes como deputado estadual.
Heuser foi candidato a senador e secretário estadual da Economia e da Fazenda, assumindo interinamente o governo do Estado em 28 de dezembro de 1959, na gestão de Leonel Brizola. Foi criador da Caixa Econômica Estadual e um dos idealizadores da Associação dos Municípios do Vale do Rio Pardo (Amvarp). Gostava muito da pesca esportiva e foi campeão brasileiro, sulamericano e vice-campeão mundial de pesca. Faleceu devido a um ataque cardíaco em 29 de março de 1986, quando participava de um concurso internacional de pesca no Chile.
Em dezembro de 1987, o governador Pedro Simon inaugurou o prédio da Fundação de Economia e Estatística do Estado, em Porto Alegre, e deu-lhe o nome de Siegfried Emmanuel Heuser, em homenagem ao ilustre santacruzense. Já em 2000, o então vereador Paulo Roberto Jucá propôs que a nova praça, em obras naquele momento, se chamasse Siegfried Heuser. “Era um espaço que ainda não tinha denominação. Eu sabia da integridade moral e ética do Siegfried, que era um político e homem de princípios que buscou favorecer nossa cidade sempre que pôde”, relata Jucá. Ele lembra de Heuser como um homem apaziguador, sem inimigos – apenas com adversários. “Muitas de minha atitudes são espelhadas nele.” Jucá recorda que costuma levar os netos na praça à qual deu o nome, aprovado por unanimidade em votação na Câmara de Vereadores.
A rua declama no palquinho azul da Siegfried Heuser
Ao cair da noite, eles chegam de todos os lados. Atraídos pelo som do rap, dezenas de jovens se agrupam no chamado “palquinho azul”, o coração da Praça Siegfried Heuser, para trocar ideias, dançar, cantar, se divertir e, acima de tudo, se expressar. E é assim todas as noites de segunda-feira.
O evento independente Batalha do Centro começou com a proposta de criar uma oportunidade para aqueles que buscam espaço para declamar suas poesias ou mesmo expor suas rimas, seja em uma pura e simples apresentação ou em batalhas definidas por tema. Conforme o organizador da atividade (e também skatista), João Matheus, o evento independente, sem fins lucrativos, começou em setembro do ano passado e veio ocupar um espaço que até então não a na cidade.
“Não existiam mais eventos de rima e expressão através do rap, principalmente nesse sentido de evolução da galera. Então pensei em criar o Batalha do Centro e reunir esse pessoal que queria um espaço para expor suas ideias”, explica João. Com a falta de recursos, o jeito é improvisar.
“Nosso lance é colaborativo. Conseguimos mesa, microfones e caixas de som emprestados, o DJ toca na parceria, a galera vem e prestigia. Também passamos um boné durante o evento para quem quiser, de forma espontânea, colaborar com a gente”, comenta o organizador do Batalha do Centro. Ele ressalta ainda que o grupo promove rifas para ajudar o coletivo a arrecadar fundos destinados à compra de equipamentos.
Um lugar para se expressar
“Não importa a cor, somos gente. Um povo de traços e embaraços.” A frase, que faz parte da poesia declamada por Maria Elizabeth, marcou a abertura da 19a edição do Batalha do Centro, na última segunda-feira. A reportagem da Gazeta do Sul foi à Siegfried Heuser para acompanhar o evento. Pensativos, ou mesmo de olhos fechados, alguns participantes escutavam atentos a manifestação da jovem de 16 anos, que revelou ter escrito o texto no último mês de janeiro.
Tão logo encerrou a abertura intimista, o chamado para reunir os participantes foi dado em alto e bom som pelo organizador João Matheus, tal qual um questionamento: “E a rua?”. O público respondeu em grito uníssono: “Declama!”. A postos, 13 MCs inscreveram-se para as batalhas de conhecimento, onde em cada round o tema é diferente e escolhido pelo público. Na sequência, ocorrem as batalhas de sangue, nas quais o tema é livre. Após as disputas entre dois participantes em cada round, o mais aclamado pelo público vence. No caso de segunda-feira, Pytter MC – que foi destaque no caderno Mix da última quinta-feira, pelo lançamento do seu EP – foi o mais aclamado da noite.
Na sequência, iniciaram-se as declamações de poemas. Naomy Christmann, de 21 anos, foi uma das que se apresentaram. Ela contou à Gazeta que encontrou no espaço uma oportunidade de expor as suas convicções. “Sempre fui muito de escrever, e aqui eu vejo que a galera vem participar, está junta, colocando seu eu para fora”, diz a estudante de Publicidade e Propaganda na Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc). Ela trabalha em uma agência de comunicação na cidade. Entre os temas que Naomy aborda em seus escritos estão o feminismo, a violência contra a mulher e o machismo. “São coisas que vivemos no dia a dia, e aqui podemos trazer a vivência para compartilhar com todo mundo para poder crescer”, diz a jovem.
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O futuro
A locomotiva de 43 toneladas, trazida de Canoas pela atual administração municipal numa megaoperação em 2015, vem sendo alvo de vândalos. A Gazeta do Sul visitou na última semana o espaço junto à Estação Férrea e encontrou objetos como garrafas, latas, guarda-chuvas, travesseiros e cobertores dentro do trem e de um dos tenders (vagões que comportam a água para alimentar a caldeira e o carvão para a fornalha). O cheiro de fezes nas proximidades também chama a atenção. Bancos quebrados, lâmpadas queimadas e lixeiras estragadas são encontrados no perímetro da Siegfried Heuser. A Prefeitura revelou que a Guarda Municipal faz rondas diárias para garantir a segurança na praça. “Mesmo assim, infelizmente, vândalos acabam deteriorando o que há no local. Para reduzir o problema, as rondas estão sendo reforçadas e outras alternativas também são estudadas”, disse a assessoria de imprensa do Palacinho.
A Secretaria Municipal de Transportes, Serviços e Mobilidade Urbana vem realizando nos últimos anos a troca dos brinquedos do playground e da academia. Também colocou bancos novos no local. No ano passado, foi a vez de a pista de skate receber melhorias. O investimento veio por meio da Secretaria de Segurança, Defesa Civil e Esporte, que aportou R$ 15,7 mil na revitalização do espaço. Houve a substituição de barras internas dos obstáculos, reforço de soldas nas barras de proteção, reforço e colocação de barras cantoneiras, tratamento de rachaduras na parte interna do piso e, por fim, a pintura.
Segundo o secretário municipal de Cultura, Edemilson Severo, a revitalização do vagão de passageiros Z-222 será realizada com recursos próprios da Prefeitura. “Já fizemos os orçamentos e estamos no processo de contratação da empresa.” O custo irá girar entre R$ 35 mil e R$ 45 mil. Já a locomotiva e os dois tenders passaram por vistoria do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) para que o Município obtenha a autorização para realizar intervenções na estrutura. “Finalizado esse processo, já encaminhamos ao Iphan o nosso interesse de restauração”, afirma.
Conforme Severo, nos próximos dias será encaminhada à Câmara de Vereadores uma emenda para incluir os bens citados no Projeto de Proteção ao Patrimônio já existente. “Com a aprovação do Legislativo, iremos incluir esse documento no projeto de captação de recursos através da lei federal de incentivo à cultura”, explica o secretário. A Prefeitura também já adquiriu o material para troca do telhado da área entre o Centro de Cultura e a locomotiva.
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