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Sentido desfigurado

Martin Luther King dizia que o racismo era o cão dos infernos seguindo os passos da civilização. Em 1981, o diretor de cinema Samuel Fuller transformou essa ideia em imagens no filme Cão Branco. No enredo, uma jovem encontra um cão perdido na rua e resolve adotá-lo. Aos poucos, contudo, ela descobre que o animal havia sido treinado para atacar somente pessoas negras. Talvez nunca a irracionalidade do ódio racial tenha sido tão bem representada. Com o seu White Dog, Fuller conseguiu mostrar, de forma didática e por vezes poética, que o racismo é sobretudo um estado passional, desprovido de razão.

E latidos e rosnados são ouvidos ainda nos dias de hoje. Insultos, agressões morais e até físicas contra negros são fatos tristemente comuns. Só na ultima semana, tivemos pelo menos dois casos que repercutiram na mídia. Problema que se traduz em números: em Brasília, as ações de preconceito racial que foram parar na Justiça tiveram aumento de 72% em um ano, segundo o Ministério Público. Em 2017, 55 denúncias foram formalizadas nas varas criminais; em 2018, 95. O dado não significa necessariamente um aumento dos casos, mas que pode ter havido maior disposição para denunciar. “Preto fedorento” e “macaco” são algumas das injúrias mais frequentes nos processos que tramitam no Distrito Federal.

O sociólogo carioca Antônio Sérgio Alfredo Guimarães, em seu livro Classes, raças e democracia, faz uma interpretação do insulto racial que vai além da passionalidade gratuita. Para ele, a ofensa tem a função de “institucionalizar um inferior social”. “Isso significa que o insulto deve ser capaz de, simbolicamente: a) fazer o insultado retornar a um lugar inferior já historicamente constituído e b) reinstituir esse lugar”, escreve. Algo semelhante vale para aquelas piadas detestáveis que todo negro já escutou. Se você quiser “socializar”, então você deve rir – é o que se espera – das anedotas de mau gosto que o rebaixam e, dessa maneira, reconhecer qual é o seu verdadeiro lugar.

E não é difícil perceber qual é esse lugar. As estatísticas estão aí. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgados há poucos dias, mostram que, em 2018, os trabalhadores brancos receberam, em média, cerca de 75% a mais do que negros e pardos. No primeiro caso, a média salarial ficou em R$ 2.897,00. No segundo, pretos e pardos ganharam, respectivamente, R$ 1.636,00 e R$ 1.659,00. Quanto mais se sobe na hierarquia de cargos e salários, melhor se percebe que o sucesso e o mérito têm cor.

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Muito já se falou sobre os efeitos do escravismo na estratificação social brasileira. Mesmo assim, incrivelmente há quem diga que a escravidão foi “benéfica”, ou pelo menos não tão grave assim. Outros, adeptos dos jogos de palavras vazios, filosofam em cima de pérolas como “Hoje também somos escravos, isso é tudo a mesma coisa”, e assim por diante. “A mesma coisa” para quem nunca passou por uma sessão de chibatadas no pelourinho. Vivemos em tempos estranhos e um tanto patéticos, quando questões sérias deixam de ter sentido – ou têm seu sentido desfigurado.

Por coincidência – sim, porque não se planejou nenhuma relação com o texto desta coluna –, a reportagem especial desta edição da Gazeta do Sul, assinada pela colega Fernanda Szczecinski nas páginas 14 e 15, trata sobre o racismo estrutural impregnado na sociedade brasileira. Como o preconceito se manifesta, o quanto ele é prejudicial e o que podemos fazer para enfrentá-lo. Vale a leitura.

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