Para quem, como a maioria de nós, jamais testemunhou um período de guerra, o momento que vivemos, com o distanciamento imposto por uma pandemia, é possivelmente o mais próximo que já chegamos de um estado de exceção. Foram poucos dias até agora, o suficiente para percebermos que não é fácil – não é à toa que o consenso social de uma semana atrás em torno das medidas restritivas evaporou rápido. Mesmo entre os que, como eu, entendem que o isolamento deve continuar, todos parecem sofrer, ao menos um pouco, com a situação.
É fato que não há quem não esteja com a rotina alterada, em maior ou menor grau. A novidade é que, aparentemente, a rotina faz mais falta do que podíamos imaginar. É claro que existe a preocupação legítima com os efeitos de uma eventual paralisia prolongada da atividade econômica. Mas não é só isso. O que parece começar a bater também é uma surpreendente carência de normalidade.
Digo surpreendente porque, se pensarmos bem, a quarentena é muito parecida com aquele paraíso para onde sonhamos fugir nos dias mais difíceis. Quantas vezes suspiramos pela falta de tempo para organizar prateleiras, colocar leituras em dia ou aprender alguma coisa nova? Quantas vezes desejamos poder trabalhar sem um chefe respirando em nossa nuca? Quantas vezes, trancados em um engarrafamento, imaginamos como seria bom evitar o trânsito? Quantas vezes reclamamos da espera nos caixas e da desordem das ruas? Quantas vezes até os compromissos sociais e as obrigações familiares nos soam penosos e clamamos por um pouco de introspecção?
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Pois bem. Agora estamos recolhidos, as ruas estão desertas e silenciosas e os contatos sociais estão suspensos. As calçadas estão menos sujas e até o ar parece mais puro. E o que todos estamos fazendo? Contando os dias e traçando planos para quando tudo voltar ao normal. A pressão do cotidiano, a correria, o caos urbano, não vemos a hora de reencontrar tudo isso. Há pouco uma amiga que mora no Rio de Janeiro me relatava um diálogo que teve com um colega de trabalho (à distância, claro, pois ambos estão em home office). “Que saudade de suar no metrô e pegar enchente na volta para casa”, disse ele. Saudade da enchente, quem diria!
É claro que esse recolhimento também impõe dificuldades. Para quem tem filhos pequenos, por exemplo, certamente não é brincadeira, e sem falar em quem, como autônomos e informais, está com a renda comprometida. Mas acho interessante como essas privações parecem nos levar a uma revalorização da rotina, sempre tão desprezada. Ao que tudo indica, aquele lugar-comum segundo o qual só damos valor a algo quando perdemos faz sentido. E aquele do “ruim com ele, pior sem”, idem.
Resta esperar que o tempo e a boa ciência nos autorizem a retomar a dinâmica de nossas vidas. E não se preocupe. As buzinas, os semáforos, os motoristas mal-educados, as filas, a poluição, até as enchentes, logo logo todo o inferno da existência em sociedade estará de volta, e poderemos voltar a nos queixar dele. Em paz.
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