Aidir Parizzi Júnior
Especial para o Magazine
Parto cedo de Seul, capital da Coreia do Sul, e percorro uma estrada praticamente deserta. Um longo corredor com cercas altas de arame farpado e guaritas blindadas. São apenas 50 quilômetros até Panmunjon, como é conhecida a Área de Segurança Conjunta (JSA) entre as duas Coreias.
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Os nomes dados às áreas de fronteira entre as duas Coreias hoje perderam seu significado. A Zona Desmilitarizada (DMZ), ao longo de toda a fronteira de 250 quilômetros, hoje está povoada por militares. Sobre a DMZ, a chamada Área de Segurança Conjunta (JSA) foi definida pelo armistício de 1953 que iniciou a trégua na Guerra da Coreia, e que persiste até hoje. O termo Segurança Conjunta devia-se à ideia original de criar uma área de livre tráfego de militares do sul e do norte. Ali se davam as negociações entre os dois países, nas famosas casas azuis que ficam exatamente sobre a fronteira.
A convivência ali nunca foi completamente pacífica, e a propaganda e a provocação dos dois lados era permanente. Os soldados americanos que integravam a JSA deveriam ter no mínimo 1,83 metro, como forma de intimidação. Mesmo assim, tudo ia relativamente bem até agosto de 1976, quando uma simples poda de uma árvore quase desencadeou uma nova guerra.
Galhos de um álamo bloqueavam a visão entre uma guarita e um ponto de observação. Um destacamento de sul-coreanos e norte-americanos foi convocado para podá-los. Soldados norte-coreanos tentaram de pronto pará-los, alegando que não haviam sido consultados e não autorizavam o corte. A discussão descambou rapidamente para as vias de fato. Um capitão e um tenente norte-americanos acabaram sendo mortos pelos norte-coreanos, que usaram como armas os próprios machados e as foices dos oponentes.
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Washington foi imediatamente alertada e o secretário de Estado Henry Kissinger chegou a ordenar um ataque às barracas inimigas. O presidente Gerald Ford parou o ataque, mas ordenou que a árvore fosse cortada. De um modo surreal e quase infantil que as guerras sempre oferecem, uma operação que contou com helicópteros Cobra e centenas de soldados foi desencadeada. A árvore foi totalmente podada, restando só o tronco. Os norte-coreanos, apesar de inicialmente ameaçarem outro ataque, resolveram deixar por isso mesmo. Estes se sentiram de certa forma vitoriosos, já que o saldo negativo de uma árvore podada não representava tanto diante da morte dos dois soldados do inimigo.
Desde aí a JSA deixou de ser conjunta, e uma pequena barreira de concreto passou a separar os dois países. Até hoje, soldados da mesma etnia coreana se encaram durante 24 horas por trás das casas azuis sobre a fronteira.
Na chegada à JSA, um soldado americano nos conduziu até a tensa linha entre os dois países. Visitamos as barracas sobre a fronteira, que pela manhã são policiadas pelos sul-coreanos. Uma mesa de reuniões fica exatamente sobre a fronteira. Tecnicamente, entro na Coreia do Norte, atravessando até o outro lado da sala. O recruta adverte: “Passe a porta do lado de lá e estarás nas mãos do homem-foguete”, repetindo a referência de Donald Trump sobre o líder comunista Kim Jong-un.
De volta à área sul-coreana, esse soldado, de costas para a Coreia do Norte, nos fala sobre a superioridade física dos sul-coreanos, apontando para a baixa estatura e a desnutrição dos inimigos do norte. Em uma incrível ironia do destino, naquele exato momento noto que as pernas de um soldado sulista começam a tremer. Ele sai cambaleando em direção à mureta de concreto que serve como fronteira. Imediatamente dirijo o olhar ao soldado norte-coreano, logo ali em frente, que coloca a mão em sua arma. O militar é rapidamente socorrido pelos companheiros, trazido para trás das barracas. Contrariando a “propaganda” que estávamos escutando naquela hora, os “subnutridos e fracos” norte-coreanos permaneciam ali em pé, certamente com um contido sorriso pela ironia da situação.
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No dia seguinte, um militar norte-coreano acelerou seu jipe sobre a fronteira em uma tentativa desesperada de fuga. Foi baleado diversas vezes por seus companheiros de exército, mas sobreviveu, escondido entre as folhas secas do inverno. O fugitivo foi socorrido por soldados sul-coreanos. A Coreia do Sul fornece asilo imediato a todos os que conseguem fugir de seu vizinho do norte.
Costumamos enxergar fronteiras, cercas e muros do lado de dentro, sob o ponto de vista da área supostamente protegida ou separada. Sempre é bom perguntar também como é o ponto de vista da parte excluída, por vezes dentro, e em outras por fora desses limites. O objetivo principal da invenção das cidades e dos países foi proteção. Hoje, boa parte das grandes cidades, especialmente no terceiro mundo, tornaram-se uma nova selva, e buscamos nos proteger com cercas, muros, alarmes e sistemas de monitoramento, comprovando a máxima do autor Romano Plauto de que o homem é o lobo do homem. Me parece uma injustiça… aos lobos.
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Chipre
Outra fronteira singular divide uma pequena ilha no Mar Mediterrâneo. A Ilha do Chipre é dividida entre a República do Chipre no lado sul e a República Turca do Chipre do Norte. O primeiro é um país reconhecido oficialmente pela Organização das Nações Unidas (ONU), parte da Comunidade Europeia e com cultura eminentemente grega. O país ao norte é reconhecido somente pela Turquia, e a cultura e os costumes turcos predominam. Os turcos ainda emprestam a lira turca como moeda e seu potencial militar como proteção, além de levas regulares de imigrantes turcos que ajudaram a povoar a região.
A capital, Nicósia, é comum aos dois países, e a fronteira é marcada por uma zona – aqui sim – desmilitarizada. Em Nicósia, passo de um lado a outro com a família. Os agentes de imigração, improvisados em contêineres, fazem o procedimento dos dois lados. A zona desmilitarizada em Nicósia corresponde a uma quadra de largura. Nessa faixa, casas e prédios abandonados fornecem uma visão congelada no tempo. Trincheiras de ambos os lados nos lembram que estamos em uma área de conflito desde 1983, quando cipriotas gregos fugiram para o sul da ilha, enquanto os de origem turca seguiam no sentido oposto.
Nessa capital dividida, única no mundo desde a unificação de Berlim, a cidade muda completamente de um lado a outro. Entrar no lado norte mostra diferenças radicais. As ruas, as mesquitas, as praças e o povo alegre dali nos dão uma recepção bastante calorosa e agradável. Tento explicar a meus filhos algumas diferenças entre os dois lados, mas noto que pelo que eles mais se interessaram e de que mais gostaram foram as fartas e saborosas refeições em restaurantes típicos. Meu gosto pela comida turca e árabe deve ter sido passado pelos genes, o que também se comprovou mais tarde em outra viagem com a família no Marrocos.
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Marcou-me ver nossas crianças correrem alegres pelos impecáveis tapetes da magistral mesquita Selimiye, entre os muçulmanos ajoelhados em oração. Os sorrisos simpáticos dos fiéis mostraram mais uma vez que animosidades, medos e preconceitos corroem inutilmente a natureza humana e ofuscam nossos pontos comuns, que, invariavelmente, são os que realmente interessam.
Fronteiras, além da geografia
Em 1993, um amigo alemão oriental me levou à antiga fronteira com a Alemanha Ocidental. O comentário dele me marcou para sempre: “Até 1989, o mundo terminava aqui”.
O mesmo vale para nossas fronteiras mentais. Temos áreas em nosso pensamento em que nem sequer cogitamos entrar, conversas que não queremos ter, pessoas que excluímos de nossas relações sem sequer conhecê-las e sentimentos que preferimos ocultar, provocando por vezes perdas irreparáveis de aprendizado e sabedoria.
Considero a adaptabilidade e a flexibilidade como virtudes bem acima da conformidade com regras e status quo. A consciência de nossa adaptabilidade nos ajuda a entender o que separa nossos ideais de sonhos irrealizáveis. Estar aberto a mudanças, por vezes drásticas, nos torna menos suscetíveis a decepções, tristezas profundas, euforia exacerbada e depressões. Ficamos também menos escravos de nossas próprias preferências.
As constantes viagens e as nove mudanças de países me ensinaram que o exílio, no meu caso voluntário, não é simplesmente cruzar fronteiras. A mudança geográfica e cultural torna-se parte do imigrante, nos transforma e nos faz sentir com maior controle sobre o nosso destino. Os choques culturais e a necessidade de adaptação rápida, com critério e sem perder a própria essência, podem ser uma vantagem em um mundo em progressivas mudanças. São também catalisadores para o autoconhecimento. Estando longe de casa, vemos tudo ao mesmo tempo como observadores e como protagonistas.
Quem é
Natural de Santa Cruz do Sul, onde nasceu em 1971 e fez seus estudos no Colégio Marista São Luís, Aidir Parizzi Júnior é engenheiro mecânico e mestre em Engenharia pela Ufrgs. A ênfase em Engenharia de Reatores foi inspirada no período em que estudou e trabalhou na Universidade Técnica de Moscou, em 1993. Morou na Dinamarca, na Rússia, na Alemanha, nos Estados Unidos por 12 anos, e há dez anos está no Reino Unido (oito anos na Escócia e dois na Inglaterra).
Sua esposa, Carolina, também é santa-cruzense, e os dois filhos do casal, Andrew e Beatrice, nasceram na Escócia – Andrew nas terras baixas da capital escocesa Edimburgo e Beatrice nas terras altas de Aberdeen. O trabalho já o levou a uma centena de países por todos os cantos do planeta. Aidir é diretor global de suprimentos para uma multinacional britânica que atua no fornecimento de sistemas de controle e segurança para usinas de geração de energia, usinas nucleares e indústrias de petróleo, gás natural e petroquímica.
(QUASE) Inalcançável
A Coreia do Norte, tendo à frente Kim Jong-un, líder de uma nação de 25,5 milhões de habitantes, é um dos países mais fechados na atualidade. Bem por isso, turistas não costumam eleger essa região como destino potencial. No entanto, a curiosidade em torno do modo de vida dos norte-coreanos cresce na mesma proporção em que é difícil saber mais ou melhor sobre eles. (Enquanto isso, a Coreia do Sul, uma democracia presidencialista com 51,5 milhões de habitantes, preza a liberdade e registra amplo desenvolvimento.)
Alguns livros podem ajudar a avaliar como essa sociedade se organiza. O jornalista pernambucano Marcelo Abreu, 57 anos, conhecido por seus relatos de viagem e pelos projetos de grandes aventuras (refez, por exemplo, a rota mágica dos yuppies das décadas de 1960 e 1970, narrando a façanha no livro De Londres a Katmandu), tomou-se de coragem e foi lá, em 2000, conferir in loco a rotina coreana. A bem da verdade, Abreu entrou no país sem revelar sua profissão; se o tivesse feito, nem teria conseguido o seu intento. Ficou duas semanas incógnito trabalhando para organização de ajuda humanitária, e sob esse viés pôde firmar olhar raro, compartilhado em Viva o Grande Líder: um repórter brasileiro na Coreia do Norte, lançado em 2002 pela Geração Editorial na coleção “Vida de Repórter”. Passadas quase duas décadas, segue como registro fundamental sobre aquela nação.
A ele se juntam duas outras leituras referenciais: Dentro do segredo – uma viagem pela Coreia do Norte, do escritor português José Luís Peixoto, lançado pela Companhia das Letras em 2014, em que detalha visita feita à Coreia em 2012; e Nada a invejar: vidas comuns na Coreia do Norte, da jornalista norte-americana Barbara Demick, lançado pela Companhia das Letras em 2013, finalista do National Book Award. Barbara atuou na chefia do escritório do Los Angeles Times na Coreia no início dos anos 2000 e, como tal, pôde testemunhar a vida da população. Juntos, e ao lado de diversas outras leituras esclarecedoras, permitem vislumbrar como é viver na terra de Kim Jong-un.
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