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Santa Cruz do Sul: a estrada para casa

Catedral São João Batista: invólucro de memórias

A primeira decolagem da qual me recordo aconteceu sob as torres da Catedral São João Batista. Para nós, sacristãos, uma das atribuições mais aguardadas naquele início da década de 1980 era a de auxiliar o sineiro oficial, meu amigo Miguel, anunciando horas canônicas, casamentos e funerais. Agarrados às cordas e ignorando riscos, subíamos o que pareciam ser muitos metros, impulsionados pelas quatro campanas fundidas na Alemanha. A melodia das possíveis permutações de badaladas – sinos 1 e 3 para casamentos, 2 para funerais, 3 para a Ave-Maria e a combinação dos quatro anunciando as missas – sempre foi indissociável da paisagem sonora da cidade, e tornava aquele arremesso de corpos ao ar ainda mais esplêndido. Talvez inconscientemente, era um impulso que despertava o desejo de alçar voos bem mais altos, como um convite do mundo que nos aguardava além das torres gêmeas do maior templo neogótico da América Latina.

A catedral, depois da casa materna, é a lembrança mais tangível que guardo da cidade natal, materializando um invólucro de memórias com camadas profundas e significativas. Nos caminhos do mundo, adotei outras pátrias, por mim e pela família. A estrada para casa mais intensa, contudo, sempre foi a que me leva a Santa Cruz, onde as memórias são sempre vivas. A saudade é menos do lugar físico, e muito mais da inocência e da simplicidade da infância. Voltar à minha cidade é reviver a segurança e o afeto dos pais e irmãos. Passar pelas ruas, ver as construções que permanecem e imaginar aquelas cujas pedras já caíram é uma forma de revisitar as experiências que me formaram. Abraçar amigos de infância, outros mais contemporâneos e, em especial, aqueles (caros Emerson, Carlos, Geraldo) que se tornaram irmãos e me recordam que a fraternidade dissolve distâncias e ausências.

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Nos últimos anos, escrever para a Gazeta do Sul, além de ser uma honra, é uma forma de estar próximo e tentar contribuir com experiências e reflexões. Deixei a cidade em 1988. Já não conheço tanta gente, mas travo amáveis diálogos com o passado pisando os antigos ladrilhos do Colégio São Luís, caminhando entre árvores centenárias e calçadas irregulares do túnel verde, tocando o limo das pedras no Parque da Gruta e percorrendo inúmeras memórias que exalam serenidade e entusiasmo.

Deixamos um pouco de nós nos lugares e nas pessoas que motivaram fortes emoções, assim como levamos no íntimo aqueles que amamos e que nos marcaram. Como em outros locais onde estive, sigo tentando entender mais sobre o espírito de Santa Cruz, ou seja, as pessoas e as histórias delas, fascínios, sofrimentos e alegrias. Por vezes, as lembranças mais veladas revelam os maiores tesouros, em camadas profundas que, eventualmente, necessitam de perspectiva e distância física para que sejam vistas plenamente. Os anos em que morei na Alemanha, por exemplo, me ajudaram a entender a origem de alguns hábitos, na grande maioria saudáveis, da cultura santa-cruzense, e ainda mostraram em costumes e até no idioma o que ficou congelado com a imigração e hoje inexiste no velho mundo. A cada retorno, os cabelos brancos, as rugas e o olhar nostálgico de saudosos companheiros, valorosos professores e daqueles que foram crianças e adolescentes comigo são eternas fontes de inspiração e evocam alegrias, reveses, paixões, infortúnio e encantamento.

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Não posso deixar de citar o exemplo de contribuição à comunidade, caridade irrestrita e sede de justiça que tive de meus pais, Marilia e Aidir. Oriundos de outras cidades, foram acolhidos e souberam se integrar a Santa Cruz, principalmente em atitudes diárias de amor aos mais necessitados, muitas das quais só vim a saber depois da recente partida de meu pai. Eles me ensinaram a reconhecer uma face da cidade raramente ressaltada, que é a contribuição fundamental daqueles que não vieram com a imigração europeia, incluindo escravizados e descendentes, e que também alavancaram nossa cidade e nosso país.

Voltando às decolagens, há pouco mais de uma década validei a licença estadunidense de piloto no Brasil e fiz questão de que o primeiro voo sobre Santa Cruz fosse na companhia de meu pai. Enquanto contornávamos as torres da catedral, ele me falou da minha alegria quando, aos 4 anos, escalamos a torre juntos para que ele consertasse o relógio central. Em seguida, foi minha vez de contar a ele sobre o fascínio que senti ao tocar os sinos e de como aquilo simbolizou um convite para explorar o desconhecido. Minhas raízes e a realidade que vivi na terra natal viajam comigo e em mim, onde quer que eu esteja. Seguindo o que aprendi no campanário da catedral, decolei em busca do meu caminho, porém jamais soltei as cordas que me impulsionaram.

Aidir Parizzi Júnior com a esposa, Carolina, e os filhos Beatrice e Andrew

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