O primeiro júri pós-pandemia em Santa Cruz do Sul foi marcado pela emoção. Após mais de dez horas no salão do Fórum, em julgamento presidido pela juíza Márcia Inês Doebber Wrasse, da 1ª Vara Criminal, Patrícia D’Ávila da Luz, de 21 anos, foi condenada a 16 anos de prisão em regime fechado, por ter participado do assassinato de Tiago Aliandro Kohlrausch, de 30 anos. O crime ocorreu em 23 de setembro de 2019. Ela é mãe do único filho da vítima, de 1 ano e cinco meses na época – atualmente a criança tem 3 anos –, fruto de uma relação sexual após uma noite na Oktoberfest de 2017.
A decisão do corpo de jurados, composto por sete pessoas da comunidade – seis homens e uma mulher –, foi divulgada já durante a noite dessa quarta, às 19h45. O julgamento começou às 9h30, com a fala do delegado responsável pelo inquérito que indiciou Patrícia por homicídio triplamente qualificado (por motivo torpe, emprego de meio cruel e uso de recurso que dificultou a defesa da vítima).
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Alessander Zucuni Garcia, o titular da 2ª Delegacia de Polícia (2ª DP), explicou os elementos que o levaram a indiciar e solicitar a prisão preventiva da mulher após o crime. Desde o início da investigação, ele se concentrou na desavença que Patrícia e seu então companheiro, o advogado Renato Andrade Ferreira, hoje com 33 anos, tinham contra Tiago, querendo afastá-lo do filho biológico. De acordo com o delegado, a vítima não possuía desentendimentos com outras pessoas, nem mesmo era ligada a crimes como o tráfico de entorpecentes.
Em conversas de WhatsApp interceptadas pela Polícia Civil, uma parente havia afirmado que Patrícia pediu e Renato mandou matar Tiago. Ainda conforme o delegado, a acusada sempre se mostrou fria em relação à morte do rapaz, sem demonstrar qualquer sentimento, vindo a chorar somente no dia em que foi presa. Em seu depoimento, Garcia ainda revelou um momento em que se surpreendeu com a conduta da acusada.
“Interceptamos um áudio, na qual ela relatava que deveria colocar em prática um plano. Este seria que o então companheira dela, Renato, deveria assumir tudo, depois se suicidar na cadeia. Me causou uma sensação estranha, difícil de uma pessoa de bem compreender. Foi algo que me deixou chocado”, afirmou o delegado.
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Ainda prestaram depoimento o pai de Tiago, Dirceu Aliandro Kohlrausch; a mãe de Patrícia, Tânia D’Ávila da Luz; e dois amigos da ré, Luiz Henrique Ramos Frantz e Marta Souza dos Santos, além do motorista de aplicativo Maurício Macedo, que trouxe os matadores de Eldorado do Sul a Santa Cruz do Sul. O rapaz, hoje repositor, contou que foi contratado pelo então companheiro de Patrícia, Renato Andrade Ferreira, para fazer uma corrida. Ele buscou a dupla em um posto de combustíveis em Eldorado do Sul, mas não sabia que era para cometer o crime.
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De acordo com Maurício, foi pedido para ele deixar os dois nas proximidades de uma lancheria na Avenida Euclydes Kliemann, Bairro Esmeralda. No local, eles embarcaram em outro veículo. Horas mais tarde, após a dupla ter assassinado Tiago em sua casa com disparos de pistola calibre 380, o motorista de aplicativo foi chamado por Renato para levar os matadores de volta a Eldorado do Sul.
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Patrícia não teria participado da negociação envolvendo essa corrida. As testemunhas de defesa afirmaram que a mulher era estimada por familiares e amigos e não teria tido um envolvimento contundente no crime. O assassinato teria sido orquestrado apenas por Renato.
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O debate
O fato de as testemunhas repassarem a culpa do homicídio para Renato, eximindo a responsabilidade de Patrícia e tratando-a como uma pessoa que sempre foi querida pelo vizinhos e parentes, foi o ponto-chave das primeiras falas do promotor criminal Flávio Eduardo de Lima Passos.
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“Foi pintada uma imagem da Patrícia como vítima do Renato, mas não foi assim. Os dois foram responsáveis pelo fato e ambos dificultaram a proximidade do Tiago com o filho dele. Não pensem que foi por acaso que o júri da Patrícia está ocorrendo agora e deixaram o do Renato mais para frente. Fizeram isso para ela passar toda a culpa a ele agora e, depois, ele passar toda a culpa para ela”, afirmou Passos.
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Após narrar a sequência de acontecimentos e desavenças entre o casal e o pai da criança, o promotor, ao ver que o pai de Tiago estava emocionado, relembrou o choro da mãe de Patrícia em seu relato à juíza, mais cedo. “A Patrícia não é vítima. O choro da dona Tânia é de alguém que vai continuar vendo sua filha, já o do senhor é de um pai que nunca mais verá seu filho. Eu fico com o choro do senhor. Semana que vem, na missa de dois anos de morte do Tiago, vocês vão agradecer a Deus que a sociedade de Santa Cruz fez a justiça dos homens”, finalizou Passos.
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O advogado de defesa, Roberto Weiss Kist, apontou o nome das testemunhas arroladas no processo e explicou que não havia nos depoimentos indícios concretos de que Patrícia teria participado como mandante do homicídio. “Estão subestimando a inteligência do povo de Santa Cruz, mostrando somente um dos lados. Uma mulher não pode ser condenada com base em suposições”, disse, fazendo referências a afirmações que o delegado Alessander Zucuni Garcia fez mais cedo, sobre indicativos da criminalidade da ré.
Kist terminou sua fala citando um trecho do livro O martelo das feiticeiras, de 1486. “Até mesmo esse livro, que orientou séculos de perseguição às mulheres, diz que uma acusada há de receber o benefício da dúvida. Não há provas concretas neste processo que indiquem que a Patrícia cometeu esse crime.” Por fim, ele afirmou aos jurados que uma condenação por lesão corporal poderia ser discutida. “No máximo, ela teria indicado uma ‘tunda’ para o Tiago, após uma ameaça que ela achou que tinha recebido dele. Mas nunca homicídio.”
Houve momentos de tensão, em que a defesa pediu para o promotor não interromper a fala de Kist. Passos, por sua vez, disse que se tratava de um debate e intervenções podiam ser feitas. Por fim, na réplica, o promotor citou a matéria publicada na Gazeta do Sul de terça-feira sobre o caso, na qual, em entrevista, Roberto Weiss Kist afirma que “acreditava na liberdade” de Patrícia, e que com a indicação por lesão corporal do advogado, a mulher seria solta na semana que vem. “O júri não pode aceitar a estratégia de ‘rejeição seguida de recuo’ da defesa, pois a condenação justa é homicídio qualificado.”
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Após a definição do júri, que acolheu por completo a denúncia do Ministério Público, a juíza Márcia Inês Doebber Wrasse se pronunciou. “A culpabilidade mostra-se em grau elevado, pois a ré, ajustada com outros indivíduos, planejou a morte do ofendido, pai de seu filho, contratando dois homens não identificados para realizar a execução”, disse ela sobre a sentença, antes de ler o tempo de pena.
Patrícia foi condenada a 18 anos de reclusão, com diminuição de dois em virtude de, na época do crime, ela ter menos de 21 anos. Assim, a pena definitiva foi de 16 anos de reclusão em regime inicial fechado. A juíza destituiu o poder familiar de Patrícia em relação ao filho e fixou que ela deverá pagar indenização de 50 salários-mínimos a serem partilhados entre filho, companheira e pai de Tiago.
Família da vítima comemora; mãe da ré passa mal
Ao final do júri, o sentimento dos familiares de Tiago era de alívio. Ana Paula Borstmann dos Santos, que era namorada de Tiago, o pai dele, Dirceu Aliandro Kohlrausch, a prima Cíntia Pfaffenseller e o tio, Roque da Rosa, agradeceram o trabalho do promotor Flávio Eduardo de Lima Passos e do advogado da família, Frederico Eick Martins. “Se fez justiça. A Patrícia vai cumprir o tempo dela presa para pensar no que fez, mas não desejo mal a ela”, afirmou Dirceu.
Ana Paula foi ao júri com uma camiseta onde aparece a foto de Tiago, com o filho que o funcionário público teve com Patrícia da Luz. “Eu estou feliz. Espero que os outros réus sejam julgados da mesma maneira que ela foi. Agora vamos dormir mais tranquilos, dá para a gente descansar um pouco. Foram dois anos difíceis que nada vai recuperar, mas pelo menos a gente sabe que a justiça começou a ser feita”, disse.
Ela estava na casa de Tiago, no Loteamento Motocross, quando o funcionário público foi surpreendido pelos pistoleiros. O casal havia se conhecido pouco tempo depois da noite que Tiago passou com Patrícia.
Em contrapartida, ao fim do julgamento, os pais da ré estavam desolados. Tânia D’Ávila da Luz, mãe de Patrícia, chegou a passar mal e desmaiou no salão do júri, logo após a divulgação da sentença. Teve de ser encaminhada ao Hospital Santa Cruz (HSC) pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu).
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Por sua vez, o promotor criminal Flávio Eduardo de Lima Passos ressaltou o acolhimento completo da denúncia por parte dos jurados. “Nosso posicionamento desde o início foi pelo homicídio duplamente qualificado, pelo motivo torpe e recurso que dificultou a defesa da vítima, e esta foi a condenação final, que o corpo de jurados reconheceu integralmente.”
Já o advogado de defesa, Roberto Weiss Kist, lamentou a decisão e já cogita recorrer. “Esperava uma pena um pouco menor. Vamos analisar os parâmetros da juíza e depois decidir se vamos recorrer, pois ainda temos essa possibilidade”, adiantou.
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