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Romar Beling: “A educação colocada pelo avesso”

Poucas vezes Santa Cruz do Sul foi de tal forma exposta e citada, em todo o País, como nos últimos dias. De maneira muito negativa, que tende a se colar à imagem da cidade por bastante tempo. Tudo por conta de referência feita pela diretora da escola Ernesto Alves de Oliveira, Janaína Venzon, ao livro O avesso da pele, do escritor Jeferson Tenório, do qual pinçou (e leu, em alto e bom som, em rede social) trecho de cunho erótico/sexual. Estava criada uma polêmica que ainda se estende. E, de pronto, pais de alunos (e, claro, outras pessoas) se manifestaram contrários à presença do livro (desse livro específico) em ambiente escolar. Sendo que, no entanto, a obra, como se sabe, fora selecionada e escolhida por equipe da própria escola, avalizada pela diretora.

A questão requer reflexões.

A primeira: por que ESSE livro? Logo, por que ESSE autor? Em qualquer escola de Ensino Médio encontram-se centenas de obras com passagens semelhantes, ou até bem mais tórridas. Jorge Amado, Dalton Trevisan, João Ubaldo Ribeiro, Hilda Hilst, Nelson Rodrigues (cuja biografia, O anjo pornográfico, já oferece vislumbre de seu estilo) estão lá, são lidos e relidos. Que dizer de Capitães da areia, de Jorge Amado? Mas Tenório não pode? Com essas obras literárias, seria preciso excluir também livros de Ciências e Biologia que detalham a reprodução humana? Uma coisa choca, outra não?

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Nos estudos literários e de filosofia, costuma-se dizer (e é quase óbvio): se algo em um livro me incomoda, o problema está em mim, e não no livro. Nesse caso, fugir do livro é sempre a melhor maneira de não solucionar o problema. O que vale para uma pessoa vale também para uma sociedade.

Um segundo ponto. Ninguém jamais poderia questionar a preocupação, legítima, de pais (e de educadores) com a educação de seus filhos (ou dos alunos). Desde que a preocupação sejam de fato os “filhos”, ou os “alunos”, ou que a preocupação seja mesmo a educação. Porque, se houver outra intenção envolvida (digamos, política, partidária, ideológica), então nos deparamos com situação deplorável, uma vez que teria sido às custas de expor de forma indevida toda uma comunidade, uma cidade, sem maior escrúpulo em relação aos estragos nelas causados. Se há tais “intenções eleitorais” envolvidas, em questão de poucas semanas todos haveremos de saber…

No entanto, a imagem de Santa Cruz, da comunidade como um todo, terá sido irremediavelmente exposta e debatida perante o País. Por uma celeuma pontual e isolada.

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Cumpre lembrar. Não foram todos os livros com frases de “baixo calão”. Foi “um” livro. Não foram escolas de Santa Cruz; foi uma escola. Não foram educadores de Santa Cruz; foi uma diretora. Todas as demais escolas e todos os demais educadores da cidade (com suas comunidades escolares), curiosamente, nunca se posicionaram contra este ou qualquer outro livro presente nas bibliotecas. A questão já não parece se relacionar com UM livro (ESTE livro): se relaciona com a incapacidade de entender o que é uma obra de arte, seja livro, filme, tela, peça de teatro, música, e de tirá-la do contexto e da faixa etária para a qual é indicada. Fosse o que fosse, tudo seria jogado pela janela, queimado? No país do BBB?

Nos últimos dias, pergunto-me o que duas pessoas teriam a dizer sobre isso. E elas teriam muito a dizer.
A primeira: o que diria Ernesto? Ora, o Ernesto Alves de Oliveira (1862-1891)! Afinal, foi o nome dele que foi espalhado aos quatro ventos. Se alguém tivesse o direito de dizer algo, seria ele. Ou todos esqueceram que é ele quem empresta seu nome à escola que está no centro da polêmica? Rio-pardense que morreu jovem, aos 29 anos, Ernesto foi republicano convicto e, principalmente, abolicionista da primeira hora, ferrenho defensor do direito das pessoas negras a uma vida digna e plena. Muitos pais certamente não sabiam disso, ou nem pesquisaram sobre a biografia do advogado, jornalista e político (a diretora Janaína, deve-se crer que sabia).

E a segunda: Lya Luft. Talvez Brasil afora não tenham essa informação, e cumpre citá-lo: uma das mais importantes escritoras brasileiras, sempre defensora do bom senso (sendo ele cada vez mais importante e até vital), nasceu a metros de onde se situa a escola Ernesto Alves de Oliveira. Entrevistei-a inúmeras vezes. De Santa Cruz, saiu ainda adolescente para seguir os estudos em Porto Alegre, e então ganhar o mundo. Quem a conhecia ou sabe de seus posicionamentos, lembrará bem: o que mais a incomodava era o que chamava de “moralismo de araque”, ou “falso moralismo” (até já se poderia cunhar o termo fake moralism), que tanto estrago costuma causar. Por sua terra natal, sempre guardava muito carinho, e a elogiava pelo esforço imenso que vinha fazendo em favor da cultura. Em favor. E não contra.

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Romar Behling

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Romar Behling

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