A seca evidencia uma realidade negada pela maioria da população das cidades. As águas dos rios são finitas e um dia podem parar de correr. Em meio ao caos da falta de chuva e da ausência de umidade no ar, o Rio Pardinho exibe o quadro do completo descaso com o meio ambiente. Em vários pontos de sua extensão, entre os municípios de Sinimbu, Santa Cruz do Sul e Vera Cruz, a água deixa de correr e a imagem revelada mostra a principal marca da relação do homem com a natureza: o abandono.
Especialistas dizem aquilo que todo o mundo sabe, mas teima em esquecer. É preciso, de uma vez por todas, adotar outra postura frente ao uso da água. O rio está doente e os responsáveis por ele, os usuários, ainda não deram início ao tratamento.
A maior riqueza é a água
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Na propriedade da família Pesqueira, em Quatro Léguas, no interior de Boqueirão do Leão, o Pardinho nasce. O olho de água principal forma um lago, habitado por patos criados pela família especialista em gado de corte. Nas terras da propriedade outras vertentes dão corpo ao início do rio, seguindo o curso natural das águas.
Aos 56 anos de idade, Gilnei Pesqueira observa a nascente. “Aqui sempre foi rico em água. Essa nascente está mantendo tudo verde a sua volta. Mas eu estou muito preocupado com a falta de chuva”, disse. A estiagem já fez baixar 1,5 metro o nível do primeiro reservatório do Pardinho. “Precisamos de, no mínimo 30 milímetros de chuva para dar força às vertentes.”
O Rio Pardinho fica em uma área de tríplice divisa. Barros Cassal, Gramado Xavier e Boqueirão do Leão concentram a maior parte das vertentes que dão origem ao rio. Nessa região, comum é ver a preservação da mata e a preocupação com a sustentabilidade do manancial. “A maior riqueza que nós temos aqui é a água, ela é vida. Nós cuidamos para que a mata seja preservada nas proximidades de nossos rios”, garantiu. Conforme Gilnei, a manutenção da vida e do verde que ele se acostumou a ver desde que nasceu dependem da vida de rios como o Pardinho.
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Quando o leito seca
Os quatro meses de estiagem são suficientes para fazer o Pardinho deixar de correr em diversos pontos. Em Sinimbu, município que é abastecido pelo rio e seus afluentes, como o Sinimbuzinho, em vários pontos não existe mais água. No pontilhão da comunidade de Rio Pequeno, as pedras e a vegetação que crescem na calha do manancial mostram que ali não tem água há meses.
Na mercearia de secos e molhados, a comerciante, que se apresenta apenas como Maria, conta que o medo de o Rio Pardinho desaparecer é geral. Apenas um filete passa pela construção, dando sequência ao curso d’água, que mais à frente desaparece.
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Quase na divisa com Santa Cruz do Sul, ainda em solo sinimbuense, bancos de areia, troncos e pedras fazem com que o rio cesse o seu curso. Do alto da ponte pênsil, a imagem que se tem é devastadora. Não tem água, não tem vida nem indício de que um dia já houve rio naquele lugar. Nesse ponto, o Pardinho praticamente inexiste.
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EM CASA
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A aposentada Lourdes Schena tem 69 anos e em quase um terço desse tempo vive ao lado do Rio Padrinho, na localidade com o mesmo nome, no interior de Santa Cruz do Sul. Ela conta que a família se mudou para o local no fim da década de 1990 e, desde que chegou lá, teve de aprender as regras para preservar. “Cinquenta metros perto do leito do rio, ninguém pode derrubar nenhuma árvore. A gente perde um pouco com isso, mas dizem que é para o bem de todos.”
Dona Lourdes lembra dos tempos da falta de água. Quando o falecido marido precisava puxar em tinas o que dar de beber aos animais. Eles construíram cisternas, e mesmo que o Pardinho seque, há uma reserva para matar a sede. “O rio é nosso amigo, morar perto dele é a melhor coisa. Ninguém pode viver sem água, não é mesmo?”
O MEDO
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O aposentado Idalmir Antônio Nicolini tem 70 anos, todos vividos em Barros Cassal. O azul dos olhos dele teme ver, novamente, a seca de 1982. “Aquele ano foi muito ruim, a seca veio com o verão e entrou o inverno sem chover. Não tinha pasto para os animais, que foram perdidos.”
A sabedoria do “gringo” mostra que é preciso fazer reservas. Desde as perdas dos anos de 1980, ele mantém açude e cisterna na propriedade. A partir dessa atitude, nenhuma cabeça de gado foi sacrificada e ele não precisou perder o sono por falta de água. “Este é o caminho, meu filho, pois cada vez mais se exige dos rios e eles não têm tanta água assim.”
As provas da falta de preservação
Distante 20 quilômetros do Centro de Vera Cruz fica a localidade de Entre Rios, na divisa com Albardão, já no município de Rio Pardo. É naquele ponto que o Rio Pardinho termina, encontrando-se com o Rio Pardo, o primeiro em volume na bacia hidrográfica da região. Areia, falta de vegetação e troncos secos, trazidos durante os períodos de cheia, montam a cena que sugere que o fim da vida do rio está próximo.
Em uma área de difícil acesso, chegar perto do ponto onde mananciais se encontram exige preparo físico. A caminhada começa em um campo aberto e avança sobre os resquícios de mata nativa, próximo da margem. A presença de muita areia sobre a terra é uma das evidências do assoreamento do Pardinho. Sem a capilaridade das raízes das árvores, quando a água sobe, no ponto de encontro, a margem final guarda bancos imensos de areia.
Guilherme Franke, técnico agrícola da Secretaria de Desenvolvimento Rural e Meio Ambiente de Vera Cruz, sabe explicar o que se vê quando se chega à foz do Rio Padrinho. “A questão é a falta de preservação das margens. É preciso que exista a reserva de mata. Se isso não acontecer, o rio vai terminar”, ressalta.
Franke afirma que, sem a presença da mata ciliar no Pardinho, a força da chuva – quando ela vem – leva para o leito as poucas árvores que o curso d’água encontra pelo caminho. A terra e a areia dos barrancos juntam-se aos troncos e assim, na foz, a cena é de devastação. “A vegetação nativa precisa estar na volta do rio, só isso.”
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Diagnóstico do Pardinho exige mudança de comportamento
Há três anos a Gazeta do Sul publicou o diagnóstico do Rio Pardinho. Na época, o doutor em Ciências Biológicas da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), Eduardo Alexis Lobo Alcayaga, alertava para os riscos da contaminação com agrotóxicos e esgotos e falta de preservação da mata ciliar.
Se em 2017 o Pardinho estava doente, agora a situação dele é ainda pior. “Nós podemos matar o rio. As águas continuam doentes, pois faltam ações para tratar esse problema.” O pesquisador do Departamento de Ciências da Vida da Unisc monitora a saúde do curso d’água há 15 anos.
A contaminação de arroios com o depósito de esgotos nas áreas urbana e rural e o uso de fertilizantes na agricultura levam ao leito uma quantidade extra de nutrientes. Água com nutrientes que geram algas, provocam gosto ruim e mau cheiro.
“O que faz a empresa que trata dessa água? Reforça o uso de químicos, de carvão ativado, que é caro e por enquanto não é cobrado do consumidor”, salienta Alcayaga, ao garantir que esses gastos são desnecessários. “Precisamos cuidar dos rios, o uso da agricultura deve ser repensado. É necessário que se faça todo um acompanhamento direto com o produtor para evitar isso.”
O estudioso recomenda que os esgotos das cidades sejam 100% tratados. Que a operação de saneamento básico alcance a totalidade da descontaminação das águas devolvidas aos seus ciclos, nos rios. “As nossas lavouras vão até a margem dos rios. Isso não pode, pois a combinação de mata e água deve ser indissolúvel.”
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Desperdício de 40%
Se preservar as nascentes e leitos dos rios, modificar o modelo da agricultura e tratar esgotos são medidas que passam por políticas governamentais, cuidar da saúde dos rios é algo que todos os usuários precisam fazer juntos. “E a primeira ação é o uso consciente. Utilizar água tratada para lavar calçadas, por exemplo, é um abuso. Estamos jogando água potável fora”, criticou Eduardo Alcayaga.
“Por enquanto ninguém paga pela água. A cobrança pelo uso está em discussão, pois a água é finita e é um bem econômico”, alertou. O reaproveitamento é outra medida essencial, não apenas em tempos de seca. Criar cisternas, usar água que sobra do processo de lavagem de roupas para a limpeza doméstica, entre outros, são ações que precisam se tornar práticas dos consumidores.
“O desperdício de água no Rio Grande do Sul atinge cerca de 40%. Isso quer dizer que de cada dez litros de água que saem das nossas torneiras, a gente sequer toca. Isso não pode continuar”, ressaltou o doutor em Ciências Biológicas pela Unisc.
Região precisa de R$ 25,8 milhões para recuperar a bacia
A atualização do plano de ação do Comitê Gestor da Bacia Hidrográfica do Rio Pardo (Comitê Pardo), feita em 2018, mostra que para manter o rio vivo e virar o jogo no curso da história de devastação do Pardinho são necessários R$ 25,8 milhões em recursos. Esse montante deverá financiar 19 ações de cuidado e recuperação do manancial. O Comitê Pardo é o gestor da bacia hidrográfica do Rio Pardo, do qual o Rio Pardinho é afluente.
A presidente do Comitê, Valéria Borges Vaz, conta que esse trabalho de manutenção é uma demanda urgente. “Um dos maiores problemas é a falta da mata ciliar dos nossos rios e afluentes. O assoreamento do rio é um grande problema e está diretamente relacionado ao uso e conservação do solo rural e urbano. No caso do Pardinho, apenas 40% da cobertura verde das margens sobrevive.”
Diferentemente dos estados de São Paulo, Minas Gerais, Ceará e Rio de Janeiro, no Rio Grande do Sul não existe cobrança pela água. A taxa que é paga pelos consumidores da Corsan, por exemplo, é referente ao tratamento e distribuição aos pontos de consumo. “Nós não pagamos pelo uso da água, mas precisamos reunir recursos na bacia para a implementação das ações de recuperação dos recursos hídricos”, comentou a presidente.
Assim, buscando inovar, de forma inédita no Rio Grande do Sul, foi criada a Associação Pró-Gestão das Águas da Bacia Hidrográfica do Rio Pardo (Agepardo). “Essa associação, sem fins lucrativos, foi criada no mês de janeiro. É a entidade que irá arrecadar os recursos necessários à melhoria da bacia hidrográfica”, explicou.
A Agepardo vai ser apresentada aos membros do Comitê na próxima terça-feira. “É necessário levantar os recursos para custear esse trabalho de recuperação. Nós temos pelo menos 20 pontos no Rio Pardinho que estão em situação crítica e precisam de atuação imediata”, enfatizou Valéria.
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O EXEMPLO
O afluente do Pardinho que abastece o município de Vera Cruz – o Arroio Andreas – conta, há 11 anos, com um projeto que ajuda a preservar a qualidade da sua água e leito. O Pagamento por Serviços Ambientais (PSA), que hoje garante a preservação das nascentes do Andreas, é pioneiro no Rio Grande do Sul. “Em cada fim de ano o agricultor recebe um cheque, com o pagamento pela sua cota de preservação”, explicou Alcayaga.
Cada um dos participantes do programa recebe R$ 325,00 por hectare preservado e um bônus de R$ 200,00, quando adere ao PSA. Em 2018, 62 agricultores de Vera Cruz preservaram 150 hectares nas proximidades do Arroio Andreas. O projeto é patrocinado pela Universal Leaf Tabacos.
Com o PSA em Vera Cruz, a classe da qualidade da água que abastece o município transita entre a nota um e dois, ou seja, é considerada especial. A classificação é feita pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). Os parâmetros da água do Andreas são os melhores na comparação direta com o Rio Pardinho, que tem notas três e quatro – as piores. “Isso acontece por causa dos nutrientes, a presença de esgoto e dos fertilizantes”, reforçou o pesquisador da Unisc.
Estiagens não são mudanças climáticas no RS, diz doutor
O pós-doutor em Climatologia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Cássio Arthur Wollmann, diz que é impossível prever uma estiagem com muita antecedência. Ele ressalta que não são fenômenos de ocorrência exclusiva do verão, ou seja, podem acontecer em qualquer estação do ano. No entanto, segundo o pesquisador, uma situação é fato: o clima na Terra não mudou. “Assistimos apenas à variabilidade natural do clima. Uma mudança climática leva milhões de anos.”
Wollmann observa que longos períodos de escassez de chuvas podem ocorrer em qualquer uma das quatro estações. Conforme ele, existem registros de períodos com grandes estiagens já nas décadas de 1960, 70, 80, 90 e nos anos 2000. “É um fenômeno comum que acontece com certa frequência no Estado.”
Até o momento, a maior seca das últimas décadas aconteceu no verão de 2005. Naquela época, o problema foi pior do que o enfrentado pelo Estado agora. “A primavera de 2004 havia sido com pouca chuva, abaixo da média, diferente do que ocorreu no ano passado, quando a primavera de 2019 apresentou bastante chuva”, comparou Wollmann.
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PARCERIAS
No Rio Grande do Sul, conforme o sistema de gestão de recursos hídricos, regrado pela Lei 10.350 de 1994, existem 25 bacias hidrográficas. Destas, 11 estão na região hidrográfica do Uruguai, nove na região hidrográfica do Guaíba e cinco na região das Bacias Litorâneas. A gestão desses recursos é feita pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Sema).
Segundo o diretor do Departamento de Recursos Hídricos e Saneamento da Sema, Paulo Renato Paim, nenhuma das bacias hidrográficas do Estado tem problemas para o abastecimento humano, com exceção da região de Bagé, na bacia do Rio Negro. “A questão mais relevante no que se refere à qualidade da água no Estado é o esgotamento doméstico”, destacou o diretor.
Paim lembra que a Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan) é o órgão estadual de saneamento básico. “Para equacionar essa questão do esgotamento sanitário, a Companhia vem trabalhando em várias frentes. A mais significativa é a parceria público-privada ”, apontou.
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