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MEMÓRIA

Rio Negro e Mafra: uma mesma colônia

Típica casa de colono na região de Rio Negro, no caso a de Pedro Grein, de 1830

Pouco mais de quatro anos haviam se passado desde a fixação dos primeiros colonos alemães na atual São Leopoldo quando, em 19 de fevereiro de 1829, outro grupo de imigrantes chegava a mais uma região do Sul do Brasil. Nesse caso, por iniciativa do gaúcho João da Silva Machado (1782-1875), o Barão de Antonina, germânicos se estabeleceram em Rio Negro, no Paraná. Além de alemães oriundos de Trier, na divisa com Luxemburgo, inclusive alguns luxemburgueses integravam o grupo. Mais adiante, bucovinos, vindos de território que hoje pertence à Romênia, instalaram-se nessa colônia.

Tudo seguiu bem até que entre 1912 e 1916 explodiu a Guerra do Contestado, que levou à redefinição das fronteiras entre Paraná e Santa Catarina. No final, o Rio Negro virou a divisa. Em decorrência, a colônia foi “partida ao meio”. As famílias estabelecidas à margem esquerda passaram a pertencer a Santa Catarina, em 1917, tornando-se Mafra, desde então também marco inicial da colonização alemã nesse Estado.

As cidades (ou os municípios) de Rio Negro, no Paraná, e de Mafra, em Santa Catarina, são separadas apenas por um rio. Mas na origem são, literalmente, uma comunidade só. Elas surgiram como a Colônia Rio Negro, em 1829, época em que a área toda integrava território paranaense. Foi inspirado na Colônia de São Leopoldo, no Vale do Rio dos Sinos, no Rio Grande do Sul, que o Barão de Antonina, gaúcho de Taquari, ali decidiu implantar um novo núcleo formado por imigrantes germânicos.

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Os primeiros, cerca de 30 a 40 famílias, efetivamente chegaram ao local em 19 de fevereiro de 1829, tida, desde então, como a data na qual alemães se inseriram na socioeconomia do Paraná. Com eles vieram ainda alguns poucos luxemburguenses, oriundos da região limítrofe entre a atual Alemanha e Luxemburgo, marco pioneiro da presença desse povo em realidade de Brasil.

Como recorda o professor e historiador Ayrton Gonçalves Celestino, descendente de bucovinos, esses primeiros colonos desembarcaram no Porto de Paranaguá e de lá empreenderam a pé uma longa jornada, então de quase 200 quilômetros, serra acima, até o seu destino. Hoje, Rio Negro se situa a 100 quilômetros de Curitiba, via BR-116, enquanto Mafra, na margem esquerda do rio, dista cerca de 300 quilômetros de Florianópolis.

As famílias viriam ocupar áreas de terra para o cultivo agrícola e a criação de animais, além da dedicação a atividades industriais ou de manufatura e artesania. Os bucovinos, em especial, originários das florestas da Bavária, hoje o maior estado alemão, cuja capital é Munique, eram exímios madeireiros. E seguiram justamente explorando essa aptidão na nova terra.

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Posteriormente, houve um segundo movimento migratório a partir de 1850, com os chamados “alemães novos”, estes chegando de colônias catarinenses, como Joinville, São Bento, Blumenau e Brusque, entre outras, e que optaram por subir até Rio Negro.

Foram atraídos pelas potencialidades dessa região, que então se estendia de Lajes (SC), ao Sul, até São José dos Pinhais (PR), ao Norte, englobando o que hoje forma Itaiópolis e Paraguaçu, entre outras localidades emancipadas de Rio Negro. Foi a pioneira colônia alemã, e para sempre a grande referência regional.

E veio a divisão

Os debates envolvendo os limites entre Paraná e Santa Catarina descambaram em conflito no início do século 20. E atingiram em cheio a colônia. Tão em cheio que a partiram em duas. É um dos raríssimos casos de um município pujante, banhado por rio referencial, e que de repente viu esse próprio curso d’água tornar-se um divisor.

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Uma vez que a área na qual a colônia surgiu não tivera depois os limites dos dois estados plenamente estabelecidos, após a Guerra do Contestado, entre 1912 e 1916, o Rio Negro foi fixado como divisa. Em 8 de setembro de 1817, à margem esquerda do curso d’água foi instalado o município catarinense de Mafra. Que, na prática, vinha a ser a parte daquele lado do rio da colônia pioneira.

Ou seja: Mafra passava a ser a primeira das colônias alemãs de Santa Catarina, remetendo ao mesmo ano de 1829. Ainda hoje, a ligação entre as duas cidades é de tal forma umbilical que, como frisa o professor Ayrton Gonçalves Celestino, para referir a região como um todo fala-se em Rio Mafra.

Pórtico de acesso a Rio Negro, no Paraná, onde os primeiros imigrantes alemães chegaram em fevereiro de 1829

Duas comunidades ligadas de maneira umbilical

Ainda que a colônia original de Rio Negro hoje atenda a dois senhores (a parte norte ao governo do Paraná, a parte Sul ao de Santa Catarina), no cotidiano tem-se duas comunidades umbilicalmente unidas. Em grande parte porque famílias (alemãs, bucovinas, luxemburguesas, italianas e de outras etnias) seguem estabelecidas nos dois estados, como fora nos primórdios, quando ocuparam a região.

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A turismóloga Larissa Grein Becker, da Secretaria de Cultura e Turismo da Prefeitura de Rio Negro, cita que, em termos de socioeconomia, os dois municípios se estruturam de forma muito similar. Ainda seguem apoiados basicamente na agricultura, em pequenas propriedades diversificadas. Entre as culturas adotadas está inclusive o tabaco, a ponto de a indústria desse setor ter forte participação na economia. Até mesmo a Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra) tem atuação destacada nas duas cidades.

O professor Ayrton Gonçalves Celestino recorda que a atividade madeireira foi expressiva desde os primórdios. Seu avô, Ignácio Schelbauer, foi um dos empreendedores, além de ter mantido casa comercial. Ayrton nasceu no Sítio dos Rauen, a seis quilômetros da sede de Rio Negro. Aos 17 anos fixou-se em Curitiba para prestar o serviço militar e, na sequência, continuar os estudos. Formou-se em Letras Neolatinas e depois em Direito, atuando nas duas áreas. Hoje, aos 86 anos e ainda radicado na capital, é um entusiasta da preservação da memória dos alemães e dos bucovinos, dos quais descende.

Foi dele a decisão de se ocupar dos registros históricos e da memória dos bucovinos, que seu avô Ignácio havia compilado, e transformá-los em livro. Em 2002 ele concretizou esse projeto na obra Os bucovinos do Brasil e a história de Rio Negro, um sólido volume de 642 páginas. Atualmente, ao lado da esposa Lorena, ocupa-se de pesquisas e projetos como secretário do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná, fundado em 1900.

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Outra ação sua foi a formação da Associação Alemã-Bucovina de Cultura, em 1992. E ao longo dos anos empenhou-se em memoriais, a exemplo da Casa da Memória Bucovina “José Adalberto Semmer”, originalmente de 1896. Ayrton lembra que os bucovinos deixaram a Bavária para se fixar no atual norte da Romênia (ou ainda o Sul da Ucrânia). Os que vieram a Rio Negro, junto com os germânicos, são da Romênia. Chegaram em 1887, entre eles seu avô Ignácio, então com 8 anos.

Identificados com as florestas de sua região de origem (tanto na Bavária alemã quanto na Romênia), lidam especialmente com a madeira. Entre os gostos que os descendentes cultivam ainda hoje está o Aluske, prato feito com folhas de couve ou repolho cozidas e depois enroladas, para então serem recheadas com arroz, bacon e toucinho defumado, temperados. Mas o que mais agrega sabor é a história comum de alemães, bucovinos e todos os demais povos nessa colônia única.

Nos dias atuais, a rotina de Rio Negro e Mafra é interligada quase em tempo integral, com a população cruzando sobre o rio, por exemplo pela histórica “Ponte Metálica”, ou Ponte Dr. Diniz Assis Henning, revitalizada.

Marcas alemãs em solo paranaense

Com a criação da Colônia Rio Negro, em 1829, iniciou-se a saga alemã também em território paranaense. Mais do que um projeto de colonização, o objetivo do Barão de Antonina era ainda empregar essa mão de obra na construção de nova via que facilitaria a conexão com outros centros regionais.

Se o primeiro grupo de imigrantes a chegar foi relativamente pequeno em relação aos que se estabeleceram ao longo das primeiras décadas no Rio Grande do Sul, gradativamente os germânicos e seus descendentes espalharam-se por novas colônias, posteriormente formadas. Com a “conquista” do Centro e do Oeste do Paraná na reta final do século 19 e nas primeiras décadas do século 20, muitas famílias migraram das primeiras colônias gaúchas para essas novas áreas. E mesmo da região de Santa Cruz e da Depressão Central gaúcha muitos optaram por se estabelecer nessas novas regiões, já na proximidade com Foz do Iguaçu.

Inúmeras publicações foram elaboradas e editadas ao longo dos anos para recuperar e documentar os esforços dos pioneiros. Os bucovinos do Brasil e a história de Rio Negro, do professor e advogado Ayrton Gonçalves Celestino, paira como uma das contribuições mais vigorosas do resgate memorial. Como o autor mencionou em entrevista por telefone para a Gazeta do Sul, na quinta-feira, ele valeu-se de precioso trabalho de revisão bibliográfica e de depoimentos de seu avô, Ignácio Schelbauer. Foi o esforço conjunto de alemães e bucovinos e de famílias de várias outras etnias que elevaram Rio Negro a referência econômica no Estado: já em 1870, quase duas décadas antes da chegada dos bucovinos, a localidade se emancipava. Hoje, com 153 anos, o município possui tem de 34 mil habitantes. Mafra, a parcela da colônia que ficou com Santa Catarina, é maior, com em torno de 56,5 mil habitantes.

O ponto de vista de Santa Catarina

A origem de Rio Negro e de Mafra é comum, remetendo a um mesmo dia, mês e ano, 19 de fevereiro de 1829, quando chegaram os primeiros imigrantes alemães (com alguns luxemburgueses). Após a Guerra do Contestado, uma parcela da comunidade ficou sob jurisdição catarinense, desde 1917. Mas a memória é comum em ambas as margens do rio, bem como a miscigenação entre imigrantes e seus descendentes, das mais variadas etnias. A tal ponto que tanto alemães quanto bucovinos, por exemplo, estão presentes em Rio Negro e em Mafra, e seguem mantendo contato regular.

A exemplo do que acontece em Rio Negro, também em Mafra e nas demais colônias catarinenses há um intenso esforço de resgate memorial. Uma das contribuições mais efetivas vem do professor e historiador Nilson Thomé, nascido em Caçador, em 1949, e falecido em 2014, aos 64 anos, quando se encontrava em tratamento de saúde em Curitiba. Nilson é autor de diversos livros sobre a história regional, entre eles o volume Pioneirismo da imigração alemã, em Santa Catarina, na Região do Contestado. O historiador observa que, do atual lado catarinense do rio, os primeiros colonos instalaram-se na localidade de São Lourenço, agora interior de Mafra.

O professor Ayrton Gonçalves Celestino recorda que ele e o professor Thomé chegaram a trocar impressões, e se apoiavam mutuamente durante pesquisas. Na atualidade, diferentes gerações de pesquisadores e historiadores ocupam-se de investigar faces decorrentes da ocupação desse território. Esses olhares voltam-se para os mais diversos temas: Ayrton, por sinal, tem pronto um volume de mais de 700 páginas dedicado ao Complexo Hospitalar do Trabalhador, em Curitiba. E outra de suas linhas de investigação volta-se à arquitetura típica da região que compreendia a Colônia Rio Negro.

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