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OPINIÃO

Ricardo Düren: histórias por trás dos números

Esta coluna será diferente das outras. Sei que os leitores buscam este espaço à procura de crônicas bem-humoradas, de causos pitorescos e leves, de descontração em meio às atribulações do dia a dia e ao noticiário pesado. Mas dei-me conta de que maio está chegando ao fim sem que eu tenha abordado um assunto que costuma se impor neste período do ano: os acidentes de trânsito.

Refiro-me ao Maio Amarelo, movimento que congrega uma série de atividades voltadas à conscientização contra os acidentes. Aqui na região, uma das ações de maior vulto foi a simulação de resgate a vítimas realizada há uma semana no viaduto Fritz e Frida, em iniciativa da Rota de Santa Maria. Contudo, o que mais me surpreendeu foi um dado divulgado pela concessionária às vésperas do simulado: em pouco mais de oito meses de gestão da RSC-287, a equipe já havia atendido 241 acidentes entre Tabaí e Santa Maria – com sete mortes. É quase uma vida ceifada – uma família enlutada – a cada mês na principal rodovia da região.

Me admira, aliás, que esses números não sejam ainda maiores. Quem roda pela 287 cansa de ver cenas de imprudência. São carros voando baixo, tirando fininho dos outros em ultrapassagens forçadas, em uma estrada já abarrotada de veículos. A lista de “quase acidentes” seria interminável.

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Isso falando apenas da RSC-287, sem contar o que acontece nas outras rodovias e vias urbanas da região. Não dei-me ao trabalho de buscar mais índices de acidentes para a coluna de hoje porque a frieza dos números não dá conta de todo o sofrimento imposto àqueles que, de um minuto para outro, perdem um ente querido. Uma pessoa morta no trânsito equivale a quantos enlutados, entre parentes e amigos? E em que grau cada um amarga sua perda? A ciência das estatísticas ainda não tem capacidade de mensurar o tamanho dessa dor.

Quando eu era repórter de Polícia, em uma época em que ainda havia grande dificuldade de acesso a dados estatísticos, decidi fazer eu mesmo, à caneta, minhas próprias tabulações. Cada acidente ocorrido na região ia parar no papel, em tabelas com diferentes colunas, conforme a gravidade e o local onde aconteceram. Cada pessoa envolvida era representada por um risquinho em duas diferentes linhas – uma para os feridos, outra para os mortos. De tempos em tempos, eu compilava esses dados e os transformava em reportagens.

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Mas não havia como saber quantas histórias de dor havia por trás de cada um daqueles riscos. Quantas pessoas sofreram a cada sinalzinho que eu acrescentava em minha tabela? Quantos pais tiveram que sepultar filhos jovens demais para morrer? Quantas crianças cresceram sem os pais, e qual foi o impacto disso em suas vidas?

Eventualmente, eu ia em busca do que, no jornalismo, chamamos de cases – ou seja, exemplos concretos, situações vividas por gente de carne e osso, que ilustram os dados estatísticos. Entrevistava pessoas enlutadas na tentativa de compreender, e transmitir aos leitores, a amplitude do sofrimento causado pela imprudência no trânsito, para além da impassividade dos índices matemáticos. Transformar essa dor em palavras era sempre um desafio.

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Com o tempo, comecei a perceber que os risquinhos da outra linha – a dos feridos – também traziam consigo histórias dramáticas. A frieza dos números sugere que os feridos são pessoas de sorte, que, felizmente, escaparam da morte e seguiram com suas vidas após a alta hospitalar. Mas não revela que, em muitos casos, a vida desses sobreviventes nunca mais foi a mesma. Via de regra, as estatísticas tão somente os classificam como “feridos”, sem revelar quantos deles sofreram amputações, ficaram paraplégicos ou com sequelas neurológicas e traumas psicológicos.

Certa feita, resolvi ir em busca desses sobreviventes. Decidi entrevistar pessoas que, em minhas matérias anteriores sobre os acidentes em que estiveram envolvidas, apareciam tão somente como “feridos”, “conduzidos ao hospital em estado grave”, ou “estável”, ou “fora de perigo de morte”.

Fui encontrar uma delas em uma cadeira de rodas. Era um jovem que, passados alguns anos após o acidente, tornara-se um exemplo de superação. Buscava uma rotina independente mesmo com suas limitações físicas, diariamente superando os obstáculos impostos às pessoas com deficiência. Mas era também um inconformado. Afinal, sua paralisia não se devia a algum problema de saúde incurável, a alguma herança genética inevitável. Devia-se a um ato de imprudência, a um evento que poderia ter sido evitado.

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Encontrei também uma moça que, antes do acidente, estudava Direito. Sonhava em seguir a carreira dos pais, advogados, lutando para fazer justiça pelos menos favorecidos, elencando argumentos e evidências diante de juízes ou da bancada dos jurados. Mas uma violenta colisão, no caminho para a praia, afetou-lhe o sistema nervoso a ponto de limitar os movimentos, a fala e o raciocínio. A última notícia que tive dela é que seguia com rigoroso acompanhamento médico e sessões de fisioterapia, sem previsão de, um dia, dar por encerrado o tratamento.

Essas são histórias que as estatísticas não contam e sobre as quais não refletimos na hora de sentar atrás do volante. Talvez, se o fizéssemos, nossa pressa diminuiria, e se dissiparia como fumaça a nossa vontade de exibir aos outros o quanto nosso motor é potente e como somos “bons”, rápidos e ágeis ao dirigir. Certamente, isso iria se refletir nas estatísticas. E positivamente.

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