Era o dia 22 de novembro de 1910 quando cerca de 2,3 mil marinheiros tomaram quatro navios de guerra, iniciando um motim. Fazia pouco mais de 20 anos que a escravidão havia sido oficialmente abolida no Brasil, mas as tripulações, compostas por mais de 90% de negros e mestiços, eram tratadas ainda sob o compasso dos açoites, brandidos pelas mãos dos oficiais brancos. O movimento, que mais tarde ganhou o nome de Revolta da Chibata, exigia o fim dos castigos corporais vigentes na Marinha e foi o primeiro ato político contra o racismo estrutural no Brasil, uma data justa de ser lembrada no Mês da Consciência Negra. A rebelião, que completa 110 anos neste fim de semana, revelou rosto, nomes, falas e gestos de homens até então anônimos, destacando como símbolo a figura do marinheiro negro João Cândido.
Aquele que liderou e virou o símbolo da revolta nasceu em 24 de junho de 1880, na localidade de Coxilha Bonita, filho de João Cândido Felisberto e Ignácia Felisberto. O local na época era parte de Encruzilhada do Sul e hoje integra o município de Dom Feliciano. No entanto, ele costumava se apresentar como natural de Rio Pardo e, algumas vezes, de Encruzilhada do Sul. Foi em Rio Pardo que, ainda menino, o futuro marinheiro viu pela primeira vez o porto fluvial do Rio Jacuí e as embarcações que fariam parte fundamental de sua vida. Também foi na Tranqueira Invicta que João entrou em contato com o homem que moldaria seu futuro e se tornaria um protetor, o futuro almirante Alexandrino de Alencar, que o encaminhou para a Marinha, aos 14 anos.
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Em Porto Alegre, em 1895, o adolescente ingressou na Escola de Aprendizes de Marinheiros, que cursou durante 11 meses, até ser enviado ao Rio de Janeiro, onde se tornou grumete. Na Marinha, por conta de um homônimo de sobrenome Felisberto, tornouse apenas João Cândido. Mas seu nome não seria a única mudança enfrentada nos 17 anos seguintes de serviço. Percorreu todo o litoral brasileiro, navegou pela África, Europa, América do Sul e América do Norte. Em sua jornada pelo mar, conheceu e presenciou personagens e eventos históricos. Transportou sobreviventes da Guerra de Canudos, testemunhou a exploração dos seringueiros na Bacia Amazônica; em São Petersburgo, na Rússia, ouviu sobre a revolta dos marinheiros do encouraçado Potemkin no porto de Odessa; e na Inglaterra teve contato com as ideias avançadas da classe operária europeia.
A Revolta da Chibata
Apesar de a Marinha ter se modernizado, a mentalidade continuava a dos tempos coloniais. As viagens foram a explosão do mundo rural e escravagista em que nasceu, e João Cândido não deixou de apontar as permanências do escravismo na sociedade. Nas próprias palavras dele, em entrevista ao Museu da Imagem e do Som, em 1968: “A revolta nasceu dos próprios marinheiros para combater os maus-tratos e a má alimentação da Marinha e acabar definitivamente com a chibata. Nós, que vínhamos da Europa, em contato com outras marinhas, não podíamos admitir que na Marinha brasileira ainda o homem tirasse a camisa para ser chibateado por outro homem”.
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O estopim para a revolução foi uma sessão de 250 chibatadas no marinheiro Marcelino Rodrigues de Menezes. João Cândido e os marujos hastearam bandeiras vermelhas de insurreição e manobraram a esquadra rebelde. O líder recebeu da imprensa a alcunha de Almirante Negro, pela destreza no comando dos navios. O governo, acuado pela pressão popular, aceita as condições dos marinheiros e concede a eles anistia; os navios são devolvidos e a chibata é abolida da Marinha brasileira.
Contudo, a revolução não teve final feliz. A repressão resultou em expulsões, prisões, degredo e trabalho escravo, além de assassinatos. João Cândido foi preso na Ilha das Cobras, em uma solitária, com outros 17 marujos. Despidos, famintos, sob calor sufocante, foram cobertos com cal e acabaram sufocados. Dias depois, restavam João Cândido e apenas outro sobrevivente junto aos cadáveres. Traumatizado, foi encaminhado ao Hospital Nacional dos Alienados como louco. Foi absolvido e liberto em dezembro de 1912, mas expulso da Marinha para sempre.
O Almirante Negro casou-se três vezes e teve 11 filhos. Livros e reportagens exaltando seus feitos foram censurados. Com um pequeno barco pesqueiro, ele sustentou a família vendendo peixes. Com os pulmões comprometidos por uma antiga tuberculose e pelo hábito de fumar, foi diagnosticado com câncer em estado avançado e morreu aos 89 anos, em 6 de dezembro de 1969.
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Homenagens
Imortalizado na música Mestre-sala dos Mares, de João Bosco e Aldir Blanc e gravada por Elis Regina, João Cândido colaborou ainda com o livro A Revolta da Chibata, de Edgar Morel. Sua história foi inspiração para movimentos sociais, peças de teatro, filmes, cordel, enredos de escolas de samba, livros e artigos, além de monumentos, escolas e nome de ruas. Uma estátua de três metros de altura foi inaugurada em 2007 no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, um busto está em Porto Alegre, no Parque da Marinha, e outro foi colocado em Encruzilhada do Sul, na Praça Santa Bárbara, em 2007, quando também foi tema de livro da encruzilhadense Mari Luci Corrêa Ferreira.
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João Cândido Felisberto recebeu o título de Cidadão Carioca, a Medalha do Mérito Farroupilha da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, e a anistia da Câmara dos Deputados. A anistia póstuma foi concedida a ele e aos demais marinheiros da Revolta da Chibata em 2008, mesmo ano em que foi homenageado pelo Projeto Memória do Arquivo Nacional.
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