“Pedaço de mim, metade arrancada de mim. Que a saudade é o revés de um parto. A saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu”. Foi depois de proferir esse trecho de Chico Buarque, e dedicar o trabalho de juiz às famílias das vítimas do incêndio na Boate Kiss, que Orlando Faccini Neto anunciou, às 18h07 dessa sexta-feira, 10, as penas dos quatro responsáveis pela maior tragédia da história do Rio Grande do Sul.
“Para Elissandro, 22 anos e seis meses de reclusão; para Mauro, 19 anos e seis meses de reclusão; Marcelo e Luciano, 18 anos de reclusão”. Ainda durante a manifestação do juiz, a primeira em que não usou máscara no plenário, no décimo dia do julgamento mais duradouro da história do Poder Judiciário gaúcho, os familiares já comemoravam emocionados e de mãos dadas a decisão dos jurados, após oito anos e dez meses de espera por Justiça.
Ao longo de uma hora, desde as 16h30, após uma manhã e início de tarde reservados para a réplica do Ministério Público (MP) e as tréplicas das quatro defesas dos réus, o Conselho de Sentença, formado por seis homens e uma mulher, votou os quesitos que condenaram os dois sócios da Kiss e os integrantes da banda Gurizada Fandangueira. O juiz Orlando tratou de explicar as razões para a pena. “Quem, num exercício altruísta, por um minuto apenas buscar colocar-se no ambiente dos fatos, haverá de imaginar o desespero, a dor e o padecimento das pessoas que, na luta por sua sobrevivência, recebiam, todavia, a falta e a ausência de ar, os gritos e a escuridão, em termos tão singulares que não seria demasiado qualificar-se tudo o que ali foi experimentado ao modo como assentado pela literatura: o horror, o horror”, refletiu o juiz.
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Na decisão, o magistrado mencionou a dor das famílias ante a perda dos filhos. Referiu que um juiz do Tribunal do Júri acaba se deparando inumeráveis vezes com pais ou mães que comparecem em plenário chorando a morte dos filhos. “Isso, entretanto, nunca pode ser naturalizado, e mais do que isso, parece potencializado quando a experiência da morte deixa de ser algo individual para constituir-se numa dimensão coletiva”.
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O regime inicial é fechado. O magistrado chegou a decretar a prisão dos réus, mas um habeas corpus preventivo, concedido pelo desembargador José Manuel Martinez Lucas, da 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, suspendeu a prisão imediata. Agora, a medida deve ser analisada pelo colegiado.
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O júri do Caso Kiss teve início em 1° de dezembro de 2021. Passaram pelo plenário do 2º andar do Foro Central I 28 depoentes, dos quais 12 vítimas, 13 testemunhas e três informantes. Os interrogatórios dos réus começaram na noite dessa quarta-feira, 8.
Depois de passar mal na última quarta-feira, durante o depoimento do ex-prefeito de Santa Maria Cezar Schirmer, Elizete Nunes Andreatta, que perdeu o filho Ariel na tragédia, chorou de emoção ao ouvir do juiz a sentença dos réus. “Isso mostra que a gente tem que acreditar. Os réus estavam se defendendo, dizendo que eram vítimas, mas são os nossos filhos que não voltarão mais. Alguém errou, e eles vão pagar”.
Em Santa Cruz do Sul, Nestor Raschen, pai de Matheus, morto na tragédia, comemorou o resultado, mas criticou o fato de um habeas corpus ter sido concedido aos réus. “Estamos recompensados pelo resultado do Tribunal do Júri. Esperávamos a condenação. O que nos tomou de surpresa foi o habeas corpus. Me parece ser um procedimento legal diante da lei, mas desumano com as famílias das vítimas da tragédia de Santa Maria”, disse Raschen. “Não é justo, diante de todos que choram a morte de seus filhos, que um desembargador decida conceder isso para penas superiores a 15 anos. É um desrespeito com o Tribunal do Júri e com as pessoas que acompanharam todo o processo. Esperamos que o mais breve possível esse habeas corpus possa ser cassado e os responsáveis cumpram suas penas”, complementou Nestor Raschen, que é diretor do Colégio Mauá.
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A forte emoção, que começou enquanto o juiz Orlando Faccini Neto proferia as penas dos réus, ganhou amplitude a partir do encontro, ainda em plenário, dos promotores de justiça Lúcia Helena Callegari e David Medina da Silva com os integrantes da Associação de Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM). Os dois representantes do Ministério Público ficaram visivelmente emocionados. Mas Lúcia Helena logo adiantou que vai recorrer, para aumentar a pena. “Não podemos dizer que foi uma pena baixa, mas eu esperava um pouquinho mais. Nós estamos abrindo um precedente importantíssimo para todo o nosso País. Essa decisão abre a possibilidade de que todos os lugares não façam mais o que aconteceu na Kiss. Que quando ocorrer, a decisão vai ser essa. Não temos como reescrever a história, mas estamos hoje plantando o futuro para os nossos filhos e netos”, comentou a promotora.
Ela minimizou o habeas corpus obtido pelos condenados. “Isso é só um adiamento daquilo que vai acontecer. Uma hora, vão ter que ser presos. Só quiseram evitar sair presos daqui”. Em entrevista coletiva realizada no Foro Central, o presidente da AVTSM, Flávio Silva, falou sobre o desfecho do caso. “Essa decisão foi muito importante. Isso mostra que a nossa luta foi valorizada. Valeu a pena. Embora esse resultado de hoje não traga nossos filhos de volta, conseguimos evitar que outras famílias percam filhos e filhas na tragédia”. Silva ainda revelou que o habeas corpus não o surpreendeu. “Isso só se vê no Brasil, já era esperado. Mas seja hoje, amanhã ou daqui a um mês, vão ter a prisão decretada”.
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Segundo o presidente, a AVTSM vai tirar uma espécie de “férias coletivas”. “Precisamos desligar um pouco, descansar, para seguir a luta que não termina aqui”, finalizou Flávio Silva.
O mais eloquente dos advogados que atuaram na defesa dos réus, Jean Severo não se importa se gostam ou não da maneira como atua. Fala alto e provoca sensações diversas. Os familiares das vítimas, por vezes, abandonaram o plenário durante os pronunciamentos dele.
A única vez que o presidente da AVTSM, Flávio Silva, se dirigiu ao plenário foi durante uma sequência de fortes acusações que Severo dirigiu, na sexta-feira da semana passada, a Daniel Rodrigues, dono da loja Kaboom, onde o artefato pirotécnico que causou o incêndio foi comprado.
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Nessa sexta-feira, na última oportunidade que teria para falar no plenário, na tréplica da defesa do cliente, Luciano Bonilha Leão, tratou de tecer palavras emotivas sobre o trabalho. “Eu amo defender o pobre, porque sei que essa é minha vocação. E quando eu for recebido pelo Patrão Velho, eu vou sorrindo. Que Deus me dê uma boa morte. E eu peço que eu morra em plenário.” E, ao final da fala, passou mal e precisou receber atendimento de enfermeiros.
Presença constante no plenário do tribunal ao longo dos dez dias de julgamento, Gabriel Rovadoschi Barros, de 27 anos, garantiu: “Vivi uma experiência que jamais vou esquecer”. A madrugada de 27 de janeiro de 2013 não sai da cabeça dele. Ele foi um dos sobreviventes do incêndio na Boate Kiss, quando 242 pessoas morreram e 636 ficaram feridas. Em entrevista à Gazeta do Sul, relembrou os momentos de terror vividos naquela madrugada trágica.
Ele já havia ido à Kiss na noite anterior ao incêndio, na sexta-feira, quando conheceu uma menina. Combinou com amigos de irem novamente no sábado. Do grupo de cinco que foi à boate, apenas Gabriel saiu ileso: dois morreram e os outros dois ficaram em coma. “Era meu primeiro final de semana saindo para a noite, aprendendo o que é ser jovem. Houve uma greve na UFSM e as aulas tinham ido janeiro adentro. Foi um fim de semana bastante quente. A festa de sexta era bem menor, com pessoas da Comunicação Social. Quando fui no dia seguinte, já na fila comentei que tinha bem mais gente do que na noite anterior”, disse o jovem, que cursava Jornalismo e passou para a Psicologia depois do incêndio.
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Gabriel contou que ele e os quatro amigos ficaram dentro do pub e não tinham visão do palco. Dois dos colegas foram dar uma volta na festa, e então ele se deu conta de que a música tinha parado. “Chegou uma informação, tipo um telefone sem fio, de que havia acontecido uma briga. Lembro de um homem de branco sinalizando pra sair. E eu fui, com a certeza de que meus amigos também haviam me acompanhado”. O sobrevivente contou que foi esmagado por diversas pessoas que tentavam sair. E que, até aquele momento, ainda tinha a ideia de que uma briga causara o tumulto. “Só fui me dar conta do incêndio quando a fumaça chegou. Ardiam os olhos, nariz e boca. A sensação que eu tenho é de que entrei em transe, só escutava meus pensamentos e não os gritos em volta”. Colocando a camiseta na frente da boca e do nariz, conseguiu sair.
Sobre o depoimento dos réus durante o júri, disse que foi difícil ouvir diversas afirmações, as quais considera mentirosas. “Foram muitas mentiras. Nunca foi avisado sobre fogo. Todo mundo achou que era briga. A Kiss era um funil no meio de um labirinto. Na noite anterior, mesmo com menos gente, eu errei a saída, de tão difícil que era, sem sinalização nenhuma. É difícil ver que eles não assumiram suas responsabilidades. Não fazer nada é uma escolha que dever ser assumida”. Sobre o júri, relatou que é algo único em sua vida. “Estou vivendo uma experiência que jamais vou esquecer. Me localizei no depoimento dos sobreviventes. Quando eles narraram onde estavam, eu lembrava de onde eu estava, o que eu estava ouvindo, pensando. Faz parte da verdade em comum que a gente leva”.
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