Quando criança, Raquel Paim da Silva Schneider sempre foi muito diferente das outras meninas com quem convivia. Inquieta, queria descobrir coisas e desbravar o mundo. Nascida e criada em Campo Novo, pequena cidade no norte do Rio Grande do Sul, os filmes policiais despertavam a sua atenção. E era com a arminha de plástico do irmão mais velho que ela brincava. Filha de um caminhoneiro e de uma dona de casa, Raquel e os três irmãos viveram em um lar onde os estudos estavam em primeiro lugar. “Sempre corri atrás, não tinha medo.”
Apesar de estar instintivamente mirando o caminho da vida profissional que ora se avizinhava, entrar para a área da segurança pública foi um acaso. Em 1996 esses trajetos começaram a se definir. Em Ijuí, Raquel estudava e trabalhava como auxiliar de escritório. Ela morava em um apartamento com outras meninas.
Uma delas descobriu, à época, um concurso da Brigada Militar (BM). E lá se foram as duas para Santa Maria, no Centro do Estado, prestar a prova. Aprovada, Raquel começou a trajetória na Brigada Militar em 1997. “Tudo aconteceu por conta desse incentivo.”
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E a partir daí se iniciou uma caminhada que inclui passagens por várias cidades do Estado, até a chegada em Santa Cruz do Sul. Morando em Caxias do Sul, onde cursou Direito, ela conheceu o marido, Gustavo Schneider, que era servidor da Justiça. Depois de um tempo formada em Direito, Raquel decidiu sair da Brigada Militar para se dedicar à carreira de policial civil: tornou-se inspetora. Nesse meio-tempo, o marido já havia passado em um concurso para delegado da Polícia Federal. E ela ainda tinha objetivos.
Anos depois veio o concurso para delegada e a aprovação. Depois de algumas andanças, em 2011 chegaram a Santa Cruz – ele como delegado da Polícia Federal e ela como delegada na Delegacia de Polícia de Pronto Atendimento (DPPA) – primeiro como plantonista e depois como titular. Em 2022 se tornou titular da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam), da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA) e do Cartório do Idoso de Santa Cruz do Sul.
Aos 47 anos, Raquel não considera que o percurso tenha sido fácil, mas nunca lhe faltaram foco e apoio da família. Apesar de ter perdido a mãe muito jovem, os ensinamentos de vida dados por ela sempre foram molas propulsoras.
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O pai, outro apoiador incansável, chegou a pensar que ela desistiria ainda no início, quando ingressou na Brigada Militar. E foi exatamente isso que a fez ter mais vontade de continuar. Raquel também teve muito apoio do marido, uma parceria que uniu amor e trabalho.
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Característica que também herdou da educação e exemplo recebidos pelos pais, o olhar humano e sensível para o outro a motivou no ofício que exerce. E é justamente esse olhar que a diferencia como delegada, o de encarar o outro não somente aos olhos da lei. “Tentar ver se não tem alguma forma que seja o menos dolorosa para aquela pessoa passar por aquele processo, seja como vítima ou até mesmo como acusada”. Raquel destaca que há situações, principalmente as que envolvem vítimas crianças, nas quais é necessário se controlar para não passar dos limites. “Precisamos ser leves para lidar com essa atividade, além de tomar cuidado para não tomar a dor para si.”
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Ainda na Brigada Militar, Raquel lembra de ter sofrido preconceito. “Quando íamos trabalhar em eventos de grande porte eram olhares diferentes, não sei se diria desrespeitosos ou mais impressionados. Cheguei a ouvir a frase: ‘tu nem parece brigadiana’. Mesmo como delegada e como inspetora ouvi também.”
Raquel reconhece que, hoje, esse tipo de situação é raro pelo fato de as mulheres estarem conquistando lugares jamais ocupados. “É uma conquista que consegui acompanhar, assim como as mudanças na Lei Maria da Penha.”
Sobre a relação entre a feminilidade e a profissão, Raquel, que adora usar rosa, reforça que ser mulher e delegada são duas coisas que podem perfeitamente andar juntas. “Não é por usar rosa que vou deixar de agir e tomar decisões com firmeza.”
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À frente da Deam desde 2022, Raquel cita como um dos casos mais emblemáticos o feminicídio de Heide Juçara Priebe, de 63 anos, ocorrido em 8 de julho de 2022, no centro de Santa Cruz do Sul. Ela lembra que tempos antes, quando Heide registrou uma ocorrência contra o ex-companheiro, conversou com ela.
“Nem ela mesma se via na possibilidade de sofrer um feminicídio. Ela pretendia pedir uma medida protetiva em função das coisas que ouvia do ex-companheiro”. Raquel frisa que existia algo muito maior no caso e não houve um descumprimento de medida protetiva. “O descumprimento foi justamente a tragédia.”
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Mais um caso que ela ressalta, esse bem recente, é a investigação que mira uma rede de desvio de verbas, doações e cestas básicas da Associação de Auxílio aos Necessitados (Asan) de Santa Cruz do Sul. “Notamos os idosos com um olhar diferente, mais leves. Foi a primeira vez, depois de tudo, que senti vontade de chorar por ver o impacto do que está sendo feito”, emocionou-se ao lembrar o dia 16 de setembro, quando voltaram ao local para cumprir mais um mandado.
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Apesar de casos de grande repercussão em andamento, ao mesmo tempo há todos os outros. Raquel admite que a investigação é apaixonante. “A polícia é como uma cachaça direto na veia”, brinca. Para além dos papéis que registram os detalhes de cada ocorrência, há vidas e uma rede de afeto interligada.
A primeira ocorrência de violência doméstica atendida por Raquel data de 1998, quando ainda estava na BM. Ao chegar no local do fato lá estava uma mulher grávida, ferida. Dentro da viatura a vítima pediu que “não machucassem ele”. “É preciso lidar com o sofrimento da vítima por ter sido agredida e com a pena que sente pelo companheiro”, analisa.
Recorrentemente, muitas mulheres procuram a delegacia e desistem. Logo, voltam. “É o ciclo da violência, ela não consegue se libertar”, enfatiza.
Segundo Raquel, a Deam é uma delegacia que precisa de um olhar diferenciado por conta da situação histórica de diferenciação de gênero, “de estarem às vezes no mesmo cargo e ganhando menos, de ter essa sobrecarga”.
Com uma bagagem extensa à frente da DPPA, considerada “o SUS” da Polícia Civil, e mais recentemente na Deam, DPCA e Cartório do Idoso, ela soma conquistas como a investigação que colocou atrás das grades o padrasto acusado de matar o enteado de apenas 2 anos em 2018. E a fruta não cai longe do pé. Raquel é mãe do Nicolas, de 16, e da Valentina, de 5 anos. A mais nova, aliás, já se inspira na mãe: “Vai ser policial”, conta.
Fora da delegacia, Raquel atua em várias frentes. Uma delas é o esporte. Para ela, é aquele “lugar cor de rosa”. Rústicas e maratonas no Brasil e fora do País e pedaladas estão entre os desafios preferidos. Apesar de encarar como uma brincadeira, a atividade física tem um lugar especial na vida dela. “A vitória maior é atravessar a linha de chegada.”
Também se dedica a ajudar ao próximo em projetos sociais, o que une o espírito policial de justiça com a solidariedade que pratica enquanto cidadã. Na pandemia, junto com outros policiais, ela garantiu cestas básicas para muitas pessoas que necessitavam de ajuda. Aos moradores de rua, muitos pratos de comida foram servidos. “Me sinto bem ajudando o outro. Faço porque gosto de fazer.” Nas enchentes que assolaram o Estado neste ano, Raquel e seus parceiros auxiliaram mais de cem famílias.
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