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“Quero comprar um carro”

– Vou no Capiotti comprar um carro.
Minha prima já estava acostumada a ouvir isso. Conhecia os caminhos para fazer minha mãe pensar em outra coisa. Mesmo que demorasse. Mesmo às custas de uma certa agressividade. Mas, naquele dia, as táticas não funcionaram. Em um momento de distração, ela pegou a bolsa, saiu pela porta do prédio sem que alguém visse e se foi rua afora no sol inclemente de uma manhã de janeiro. Queria chegar, nem que fosse a pé, à revenda de veículos do Capiotti, em São Gabriel, a mais de 200 quilômetros de distância.

Desde que o Alzheimer se instalara de forma inquestionável em nossas vidas, minha mãe insistia no tal carro. Há algum tempo, pela segurança dela e dos outros, fora impedida de dirigir e sequer tinha acesso à garagem. Temíamos o pior. Inconformada, falava da compra como um passaporte para a liberdade. Como se, por mágica, o veículo fosse devolver a ela a realidade que escapava.

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Maurício conseguiu localizá-la dez quadras adiante. Uma senhora de unhas bem feitas e cabelo retocado caminhando firme e determinada. Quase passaria por alguém perfeitamente sã. Não fossem, talvez, os três vestidos sobrepostos no corpo. Era triste de ver aquela mulher que enfrentara tantas lutas, que começara a trabalhar aos 12 anos para ajudar a família depois que meu avô empobreceu, perder para a demência. Suportara com resiliência os primeiros sinais: esquecimentos, confusões, desconfianças, a percepção de que algo ruim acontecia.

– Esse novo mundo é muito estranho, me dizia às vezes.
Até que não se sentiu mais segura sozinha. Deixava o fogão ligado, incluía salaminho na batida de banana, não reconhecia as pessoas. Escondia chaves, joias, qualquer coisa que julgasse de valor. E como não lembrava onde havia colocado, nos fazia procurar por todos os cômodos.

Ontem pela manhã, abri a internet e uma empresa famosa me perguntou: para você, qual o melhor fato de 2023? Minha mãe se foi há quase seis anos. Ainda assim, não tive dúvidas. A notícia mais importante deste ano é de que há avanços científicos nessa área. Não se trata de cura. Apenas de uma luz pequena no fim do túnel. Dizem que, com mais perspectivas do que as luzes anteriores. Alguns acusam que não passa de um novo golpe da grande indústria para ganhar dinheiro. Espero que não.

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O Alzheimer é uma forma de morte em vida. Uma doença brutal que nos faz presenciar, lentamente, o desaparecimento de quem amamos. Achar uma medicação que controle isso não é negar o fim. Outras enfermidades, outras formas de partir sempre existirão. Mas essa degeneração humilhante e perturbadora eu não desejo para ninguém.
Um promissor 2024 para você.

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Guilherme Bica

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