Maria Fortes, 74 anos, não esquece a data na qual saiu do Bairro Esmeralda, em Santa Cruz do Sul, e passou a ocupar um dos quartos da Associação de Auxílio aos Necessitados (Asan). Era 11 de junho. Mas o tempo fez a idosa esquecer os anos. Tinha certeza que havia chegado lá há três. Espantou-se ao descobrir que já está na casa há cinco. De fala fácil e carinhosa, a aposentada cultiva amizades. E por isso decidiu fazer um pedido especial. Quer receber um buquê de rosas amarelas e uma caixa de bombons. Com as flores, pretende presentear uma pessoa especial. “Sou muito romântica.” Os doces vai comer junto com o filho, que também vive na instituição. “Sou gordinha e adoro chocolate”, confidencia entre risos.
Maria divide o quarto com outras duas residentes. Ela se diz sem paciência para pessoas “com a cabeça fraca”. Mas se preocupa com o abandono dos outros. Por isso, pede que as pessoas doem algo que não tem custo: amor. “Tem muita gente aqui que não sabe o que é isso. Eu tenho, mas e os outros? Certas pessoas não têm. Porque elas não se chegam muito. A cabeça, às vezes, não dá certo. Então eu digo sempre: se lá fora tem tanta gente que não tem parente, que adote um velhinho desses. Aqui tem bastante gente que não tem alguém pra dar um beijo e um abraço.”
Seu Arlindo Rodrigues, 77 anos, também se preocupa com os amigos. Quando pediu um churrasco, não estava pensando só nele.. “Pra todos que estão aí comer junto. É pra todo mundo.” Entre os homens, por sinal, os pedidos “gulosos” são muito comuns. Uma caixa de bombons e um refri de limão, uma cesta de chocolate, um litro de coca e pastel, estão na lista de desejos. O rádio a pilha também tem sido muito solicitado. É uma forma de manter o contato com o mundo. Há também quem peça sapatos ou roupas.
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Arlindo Rodrigues quer dividir o pedido com os amigos
Foto: Bruno Pedry
Conceição da Silva, 72 anos, quer um vestido, mas tem que ser com bolso. “Não vou mentir. Eu fumo. Então preciso de bolso pra guardar”, conta um tanto tímida. Quanto ao vestido, só faz mais uma exigência: “Não pode ser curto” Vaidosa, Idalina Izolina da Silva, 61 anos, leva as mãos, cheias de anéis, à cabeça coberta com um lenço branco. Para a campanha, ela pediu um sorvete, mas agora não tem certeza.“Eu ia escolher uma peruca. Não tem cabelo aqui desses lados. Eu ia dizer pra elas que eu queria uma peruca, mas eu não sabia. Aí não precisa eu andar só de lencinho na cabeça.” Quanto ao estilo, diz que pode ser escura, da cor dos cabelos. “Pode ser no lugar do sorvete.”
Com as flores que vai receber de presente, dona Maria espera poder retribuir o carinho que recebe. As rosas já têm dono. Ou melhor, dona. O buquê será entregue para uma das cuidadoras da casa. “Eu vou retribuir o meu amor nas rosas.” Quando fala sobre os pedidos, a idosa se empolga. Lembra que também tem outros gostos, além de chocolate. “A veia aqui gosta de perfume e creme pra passar no rosto. Só isso que ela gosta. Batom ela não gosta. Perfume eu adoro. Perfume e creme pra passar na cara. Pra esconder a velhice”, volta a rir.
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A lista de pedidos
Entre as mulheres, um dos pedidos preferidos foram anéis. Uma das residentes quer um que tenha a letra do seu nome. Roupas, bolsa e calçados também estão na lista feminina. Uma das idosas foi além: seu desejo é ficar uma mulher bonita e, para isso, vai receber um dia de beleza e roupas novas. Mas há também quem retorne à infância em seus anseios. Sandra Moraes, 51 anos, gostaria de ter uma boneca de cabelo azul. “É bem bonito”, define. Há também quem queira um caderno e lápis de cor. Outra manifestação que gerou comoção foi de uma mulher que pediu para rever a irmã. Além disso, guloseimas, sapatos, rádios e uma televisão também estão nas preferências.
Campanha busca padrinhos para todos
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Comovida com uma reportagem que assistiu em um programa de televisão, a auxiliar administrativa da Asan, Fátima Moraes, decidiu colocar em prática a ideia em Santa Cruz do Sul. Assim que a instituição concordou com a iniciativa, a equipe passou a entrevistar os idosos para descobrir qual o desejo de cada um. Com a lista em mãos, guardada a sete chaves, ela conta que a simplicidade dos pedidos comoveu até os organizadores.
O resultado da campanha também provocou surpresa. Assim que as fotos foram publicadas na página do Facebook da Asan, centenas de pessoas começaram a se voluntariar para atender aos pedidos. Por isso, todos aqueles que tiveram as primeiras fotos divulgadas já foram apadrinhados. Mas quem ainda quiser ajudar terá chance. Com 82 internos, o objetivo é conseguir atender o máximo de desejos possível. “Nós queremos agradecer às pessoas. A repercussão foi muito maior que a gente imaginava. E isso tem gerado uma rede de solidariedade. Muita gente tem vindo aqui. E o que eles mais precisam é disso. Dessa alegria.”
Fátima Moraes foi a idealizadora da iniciativa
Foto: Bruno Pedry
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Quer ajudar?
Quem quiser realizar algum dos desejos e apadrinhar um idoso deve entrar em contato com a associação pelo Facebook, ou pelo telefone (51) 3713-3990. A Asan pretende marcar uma data, na semana que antecede o Natal, para que todos os internos recebam os seus presentes ou tenham o seu desejo concretizado. Caso não consiga contribuir com a campanha, é importante lembrar que a associação também aceita outros tipos de doações, como alimentos.
ENTREVISTA
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Miriam Etges
Secretária executiva
Com 29 funcionários, sem parar aos fins de semana ou feriados, o ritmo na Asan é intenso. Mas o resultado de toda essa dedicação, garante Miriam Etges, secretária executiva, compensa e muito. Todos que ali trabalham têm consciência de que os residentes dificilmente vão sair do espaço para voltar às famílias.
Gazeta do Sul – Como vocês avaliam o resultado da campanha?
Miriam Etges – A surpresa foi muito grande. Para quem está ansioso em participar, também não precisa se preocupar porque falta muita gente para ser publicada. Nós temos mais de 80 residentes. Por enquanto, já foram publicados uns 20 ou 30 só. Então, ainda tem muita coisa para vir.
Gazeta – As pessoas estão praticamente em disputa para apadrinhar alguém.
Miriam – As pessoas estão solidárias. E isso nos remete a um pensamento de o quanto é simples a felicidade. Tem pessoas que vão dizer: quero comer uma torta. Todo mês nós temos uma festa temática. E sempre nessa festa temática tem torta. Mas acho que é aquela coisa assim, “ah, não, é uma torta pra mim. Eu estou ganhando aquela torta”. Aí, nas mulheres, a questão do anel. Ou coisas mais elaboradas, como uma viagem. Ou então, coisas extremamente sentimentais: “eu quero ver minha irmã, que faz muitos anos que eu não vejo”. Isso nos remete a um pensamento de que a vida é muito simples. Não é preciso grandes coisas para a gente ver o olhar brilhando de uma pessoa que está do nosso lado. Às vezes, é uma fatia de torta. Um abraço. Uma boneca de cabelo azul. São simbologias e muito simples.
Gazeta – Chama a atenção também que muitos pediram coisas que eles vão poder dividir.
Miriam – Em nível de legislação, para trabalhar com esse tipo de instituição há várias coisas que é preciso obedecer. Uma delas, preconizada fortemente, é manter a individualidade. Isso, num grande número de pessoas, é mais complicado. O nosso desafio é fazer com que cada um permaneça com sua identidade, apesar da coletividade. E ao mesmo tempo fazer com que cada um perceba que “se eu ganho, o meu amigo aqui do lado também ganha”. Então a minha felicidade é coletiva. Deixa de haver um pouco aquela questão da individualização, de olhar só o seu umbigo e esquecer quem está do lado. Também demonstra coisas que a gente vê pouco lá fora. Aquilo de olhar a pessoa ao seu lado e perceber que ela precisaria só de um sorriso para alegrar o dia.
Gazeta – E como vocês conseguem tocar essa casa, com mais de 80 pessoas?
Miriam – Eu digo para a equipe toda que dinheiro nenhum paga o cuidado que cada um tem com os residentes. Você se imagina tendo que alimentar, dar banho, trocar fralda de uma pessoa que não tem nenhum vinculo de sangue contigo. Isso é uma doação pessoal. Você cuidar do outro, com amor e carinho. Você está tirando de si e dando pra ele. Só que tudo que a gente dá, volta. Esse girar de energia faz com que lhe volte dobrado na maior parte das vezes.
Gazeta – Esse cuidado ao qual vocês se dedicam, muitas vezes, foi renegado a eles.
Miriam – No final do ano passado, eu fiz um levantamento. Na época dos quase 90 residentes, só 20 tinham pessoas que ligavam e vinham visitá-los frequentemente. Os outros são uma busca nossa. A gente liga, informa, chama. Para tentar minimizar esse processo de abandono. Na realidade, é abandono. Ele é um pouco minimizado porque se tem um grande coletivo aqui. Eles têm com quem rir, com quem brigar, sentar e conversar, com quem cantar. Mas sempre fica o seu lado pessoal.
Gazeta – Qual é o teu desejo para os idosos?
Miriam – Que cada vez mais as pessoas se deem conta de que precisamos mudar esse conceito de envelhecer. Tenho dito há um tempo que eu não tenho 52 anos, tenho menos 52. Eu já vivi 52 e não sei quantos vou viver. Nós precisamos ainda evoluir nessa questão. Que eu respeite o idoso. E que eu cuide dele. Eles, em algum momento, cuidaram e hoje precisam do cuidado. Aprender a envelhecer, acho que essa é a grande chave. O que desejo para todos aqui é que, cada vez mais, sirvam de estimulo e aprendizado para uma mudança de cultura com relação ao envelhecimento.
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